Por Uirá Garcia*, no O Estado de S.Paulo
A notícia circulou em meio às festas de fim de ano. No dia de Natal, o município de Humaitá, no sul do Amazonas, passaria a ser conhecido como o local onde uma multidão furiosa incendiou as sedes e os equipamentos de órgãos do governo federal (Funai e Funasa). Carros, barcos e motos foram destruídos. Dois dias depois, cerca de 300 pessoas do município invadiram as aldeias da Terra Indígena Tenharim Marmelos e atearam fogo nas casas, destruindo os pedágios mantidos pelos indígenas tenharins no trecho de Rodovia Transamazônica que atravessa a reserva. Esse foi o início de uma série de acontecimentos que continuam em curso na região.
A revolta é atribuída ao desaparecimento de três homens há quase um mês. A população da cidade sustenta que foram assassinados em vingança pela morte do cacique Ivan Tenharim, falecido após um acidente de moto em 3 de dezembro. Os tenharins negam qualquer envolvimento, e a família do cacique morto, cujo luto foi interrompido por essa onda de fúria indômita, encontra-se perplexa pela acusação. Ninguém sabe qual será o desfecho da história e a Polícia Federal ainda não encontrou os desaparecidos. A população de Humaitá, contudo, alimenta a certeza de que os responsáveis pelas mortes foram os indígenas tenharins. O fato de os tenharins negarem qualquer envolvimento com o ocorrido parece não significar nada.
Ao ler sobre o horror desse caso recente, cujos desdobramentos ainda estão por vir, acabei associando-o a outra situação também em curso que venho acompanhando como pesquisador há alguns anos. Trata-se da desintrusão da Terra Indígena Awá.
Os awá-guajás vivem a milhares de quilômetros de distância dos tenharins, no extremo oposto da Amazônia. Mas os acontecimentos da TI Tenharim, tal como acontece na distante TI Awá, são a objetivação de uma violência fomentada por elites e pelas prefeituras dos municípios onde se encontram essas terras. O interesse é claro: a exploração desses territórios. Tem-se a ideia arraigada de que as terras indígenas são, no fundo, áreas ociosas, onde vive gente primitiva (ou até mesmo oportunista), os “índios”, que nem sequer contribuem para o desenvolvimento do País. Na cidade de Humaitá, por exemplo, ainda hoje os tenharins são “tratados como bichos”, tal o desabafo de uma liderança recentemente (As Estradas e os Índios, Egon Heck, site do Conselho Indigenista Missionário – Cimi).
O recente processo de desintrusão da Terra Indígena Awá, no noroeste do Estado do Maranhão, é acompanhado de perto pela imprensa mundial. Os awá-guajás, caçadores habilidosos, que viveram durante séculos exclusivamente de caça e de coleta, são tratados como “índios puros”, os “últimos caçadores coletores do Brasil”, seguindo uma velha dicotomia essencialista que define alguns povos como mais tradicionais que outros. Essa percepção mascara toda a multiplicidade criativa de povos que falam línguas e possuem soluções de vida muito diferentes entre si.
Em contraponto, o interesse crescente da mídia pelo caso é proporcional às críticas formuladas pela nobreza ruralista. A senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), lançou uma nota divulgada pela imprensa rebatendo a acusação do secretário nacional de Articulação Social da Secretaria-Geral da Presidência da República, Paulo Maldos, na qual ele afirma que na TI Awá só haveria “plantadores de maconha e madeireiros”. Se a declaração do secretario demonstra desconhecimento sobre a realidade em questão, isso não faz com que as críticas superficiais da CNA à desintrusão possam ser consideradas pertinentes.
A TI Awá é uma área repleta de ilícitos como extração ilegal de madeira, grilagem de terras públicas e plantação de maconha. Entre 2009 e 2010 a TI esteve em primeiro lugar na lista das mais desmatadas da Amazônia. De acordo com dados da Coordenação Geral de Monitoramento Territorial da Funai (CGMT), tem a maior taxa de desmatamento da Amazônia Legal. No entanto, muitos trabalhadores rurais tratados como “agricultores pobres enxotados de suas terras”, segundo nota da CNA, estão diretamente ligados a um pequeno grupo de fazendeiros e grileiros que puseram tais agricultores na TI, vendendo lotes como se fossem terras privadas. Tais lotes continuaram sendo vendidos a famílias pobres até o ano passado, mesmo quando todo o processo judicial pós-homologação já tinha sido finalizado.
Há tempos a tensão entre indígenas e pequenos produtores na Amazônia é mobilizada visando a interesses específicos. Isso ocorria durante a ditadura militar, na qual os “vazios demográficos” da Amazônia eram oferecidos a quem se interessasse em ocupar. E ocorre hoje, quando, por exemplo, a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Maranhão (Faema), entidade ligada à CNA, emite nota fazendo crer que o verdadeiro problema para os agricultores retirados da TI Awá são os indígenas, e não a concentração de terra, o latifúndio, a monocultura e a oligarquia que transformou o Maranhão no Estado mais pobre do Brasil.
Nos anos recentes, nos deparamos com os nomes tenharim, jiahui, awá-guajá, guarani-caiouá e munduruku não pelos motivos que gostaríamos, mas por suas tragédias, acompanhadas quase em tempo real. E, enquanto para alguns povos as terras ainda são motivo de ataque, contra outros, que vivem fora da região amazônica, como os guaranis que nem a terra possuem, só sobrou a fúria.
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*Uirá Garcia é antropólogo, doutor em Antropologia pela USP, professor, pós-doutorando na Unicamp. Trabalha com os Awá-Guajá desde 2006.