Nota de repúdio às declarações de Edward Luz na reportagem “Índios poderão tudo até que a sociedade dizer chega”, publicada pelo referido autor no site “Notícias Agrícolas”
Antes de entrar no tema proposto pela reportagem acima, cabe resolver um equivoco que as manifestações do senhor Edward Luz têm gerado. A Antropologia é uma Ciência e como tal é desprovida, pelo menos em tese, de orientação ideológica ou comprometimento com demandas de povos e segmentos sociais específicos. Ou seja, o antropólogo não é formado para defender os povos originários ou qualquer outro segmento social. Ele é formado para produzir conhecimentos sobre as formas de viver em sociedades.
As manifestações do senhor Edward Luz, propositalmente, simplificam e reduzem o campo de atuação dos antropólogos e atribuem a esses profissionais uma conduta norteada por motivações ideologias simplórias, guiada por princípios rasos e por interesses mesquinhos. O ponto central de nossas formações acadêmicas está direcionado para o que se convencionou chamar de diferença cultural. A antropologia produz conhecimentos cientificamente sistematizados sobre as distintas formas de organização social e sistemas culturais. No caso brasileiro, o exercício profissional dos antropólogos enquanto pesquisadores e produtores de conhecimento acadêmico e científico confere certa ênfase aos estudos dos povos originários. Mas é importante destacar que a antropologia brasileira é formada por vários campos de investigação e que a etnologia indígena é somente um dos seus ramos.
Também é importante frisar que o antropólogo não opera somente no campo acadêmico. Atua nas mais diversas áreas onde o conhecimento antropológico é requisitado, entre elas, como enfatiza o senhor Edward Luz, na assessoria de comunidades e organizações indígenas. Todavia, temos antropólogos trabalhando em grandes corporações, em instituições públicas e com os mais diferentes temas.
Implícita ou explicitamente nas alegações do senhor Edward Luz, está a ideia de que os antropólogos defendem os índios. Essa afirmação, embora não válida para todos os profissionais da área, tem um fundo de verdade e é guiada por fatores teóricos atinentes à Antropologia. No decorrer de nossas formações acadêmicas recebemos informações cientificamente respaldadas que nos mostram de forma muito clara as relações de poder que caracterizam as interações entre a sociedade nacional e os povos originários. Conhecemos os dados históricos que evidenciam como as populações que estavam na região hoje ocupada pelo Brasil foram massacradas. Lemos autores que nos mostram de forma muita clara e academicamente irrefutável qual é a natureza das relações que se estabeleceram entre os povos originários e os chamados colonizadores, mas que sempre agiram como conquistadores dos corpos, almas, terras e riquezas antes possuídas pelos povos indígenas.
Também temos acesso a farta bibliografia que nos indica e elucida as diferenças culturais e sociais que caracterizam os povos originários. Nossa formação nos mostra como esses povos representam a profunda complexidade social e cultural dos seres humanos e o quanto essa diferença é essencial para compreender a real magnitude do que é o humano.
Assim, quando se trata dos estudos antropológicos desenvolvidos atualmente junto aos povos originários, trabalhamos com dois eixos teóricos básicos: um que analisa a natureza das relações de poder que historicamente se estabeleceram entre povos colonizados (conquistados) e colonizadores (conquistadores) e o modo como essas relações repercutem nos dias atuais e, no segundo eixo, lidamos com o conceito de diferença cultural e social para compreender as sociedades originárias nos seus planos históricos, políticos, culturais e sociais.
O sr. Edward Luz, por outro lado, nega as evidências históricas e a natureza das relações de poder que foram instituídas pelo processo de colonização e se perpetuaram ao longo do processo de contato entre os povos originários e a sociedade nacional. No mesmo sentido, ele nega as profundas diferenças culturais e sociais que caracterizam os povos originários. Seu projeto, conforme fica claro no final de seu texto, é claramente integracionista, ou seja, sua proposta consiste em fundir os povos originários e sociedade nacional em um só corpo, desconsiderando todas as diferenças culturais e sociais que os separam e também as diferenças agregadas pelo processo histórico de contato. Sua proposta nada mais é do que um retorno ao projeto dos governos militares para os povos indígenas que, por sua vez, nada mais foi do que uma adaptação ao contexto brasileiro do Evolucionismo Cultural, doutrina travestida de pensamento científico que preconizava no final do século XIX e início do XX que as diferenças entre as sociedades humanas eram somente o reflexo dos distintos níveis de evolução e aprimoramento em que cada uma delas se encontrava. Deve-se destacar que essa forma de pensamento foi banida da cena científica na década de 20 do século passado em decorrência de seu caráter etnocêntrico e de suas fragilidades, impertinência e equívocos teóricos.
Com os esclarecimentos colocados acima pretendemos descolar a nossa prática profissional atual do nível mesquinho e raso no qual o senhor Edward Luz nos coloca. Agora vamos partir para algumas afirmações mais pontuais da reportagem propriamente dita.
O senhor Edward afirma que o povo Xerente, apesar de não ter suas terras afetadas pela UHE Luis Eduardo Guimarães, recebeu farto recurso do empreendedor e que não soube aplicá-lo. A verdade honesta sobre esses fatos indica que os Xerente tiverem sua subsistência afetada pela hidrelétrica. Eles tinham roça de vazante, plantavam nas áreas férteis deixadas pela cheias do rio Tocantins. Com a construção da UHE o regime hídrico do rio mudou e afetou diretamente o modo de subsistência dos Xerente. Para compensar esse dano inestimável, os empreendedores, em obediência à legislação brasileira, foram obrigados a custear programas de mitigação e compensação. Logo, ao contrário do que tenta afirmar o senhor Edward, não estamos lidando com índios que não sabem aproveitar os recursos dados pelos brancos empreendedores. Estamos falando de uma população que teve sua subsistência afetada por ações de segmentos específicos da sociedade nacional. Os Xerente não estão ganhando dinheiro, eles receberam uma compensação por danos profundos que a UHE provocou na sua subsistência.
Análises mais honestas mostram que os programas propostos para compensar e mitigar os impactos gerados não conseguiram devolver aos Xerente as suas condições que a UHE lhes tirou. A leitura respeitosa dessa ocorrência indica que no lugar de simples e irresponsáveis exploradores, como pretende o senhor Edward, os Xerente foram, mais uma vez, vítimas de um processo desenvolvimentista que não lhes atende em nada e que afetou diretamente suas condições de sobrevivência. Tal processo, não custa lembrar, é provocado pelo próprio Estado brasileiro.
Deve-se registrar que o entorno da Terra Indígena Xerente vem sendo paulatinamente ocupado por grandes empreendimentos, como plantio de soja e cana-de-açúcar pela empresa BUNGE, sem os devidos estudos de licenciamento e de impacto ambiental. Da mesma forma, a renovação da licença de funcionamento da UHE Luis Eduardo Magalhães foi emitida sem que novos estudos fossem realizados para verificar se os impactos provocados pela UHE haviam sido mitigados pelas ações realizadas nos primeiros dez anos, como estava previsto na primeira licença emitida no começo do funcionamento dela em 2001.
Outra inverdade emitida pelo Sr. Edward Luz refere-se a informação de que o território indígena Xerente é ocupado somente por velhos e crianças em idade não produtiva e que a metade da população indígena já deixou a área para viver nas cidades mais próximas. Esta informação não corresponde à verdade pois a maioria da população continua vivendo nas aldeias e trabalhando em suas roças, na produção de artesanatos e realizando atividades produtivas de subsistência, pois a lógica de mercado não é seguida pela maioria dos Xerente, nem pela maioria dos povos indígenas que vivem no Brasil. E essa inverdade demonstra o desrespeito desse senhor para com o povo que o acolheu em seu período de trabalho de campo para a realização de sua dissertação de mestrado em Antropologia, título com o qual ele agora utiliza para tentar dar ares de notoriedade ao seu discurso. Se ele fosse minimamente sério, respeitaria o povo que o acolheu, de forma que somente os Xerente sabem acolher.
O senhor Edward se aventura a emitir opinião sobre o processo de demarcação de Terras Indígenas. Cabe esclarecer que esse processo encontra lastro na Constituição Federal de 1988 e que o reconhecimento dos direitos fundiários dos povos originários remonta ao início do processo de colonização e formação do Brasil. Logo, as afirmações do senhor Edward assumem o tom de mera bravata quando deixa de considerar a real natureza desses procedimentos e dos direitos fundiários dos povos originários. Ao fazer isso, não reconhecendo que a Constituição é o marco maior do “contrato social” estabelecido no Brasil em 1988, o Sr. Edward Luz, junto com outros sujeitos e setores sociais no Brasil, esbarram na ilegalidade e na posição condenável de desrespeito às leis existentes.
Uma análise séria pode até concluir que os procedimentos de regularização fundiária do indigenato sejam soluções paliativas e incompletas para os problemas relativos aos embates entre povos indígenas e segmentos da sociedade nacional. Todavia, esses embates não serão resolvidos com a supressão dos direitos fundiários indígenas e com a inclusão dessas populações na lógica de mercado como parecem indicar as críticas da reportagem acima. O reconhecimento dos direitos fundiários dos povos indígenas representa uma conquista histórica profundamente importante que foi decidida em fóruns altamente qualificados e que contaram com a presença marcante de grandes expoentes e lideranças dos povos originários.
O Brasil de hoje vive um momento político intensamente desfavorável aos povos originários. Uma das principais estratégias políticas e ideológicas desse momento é a desconstrução da ideia de diferença cultural que esses povos representam. O senhor Edward limita a sua atuação profissional à criação de um discurso falso e frágil, voltado à legitimação de um processo político totalmente avesso ao respeito às particularidades sociais, culturais e históricas dos povos originários. A boa notícia é que outros tantos já tentaram atingir o mesmo objetivo e por pura falta de lastro não progrediram. A fragilidade das informações divulgadas acima indicam que a história do senhor Edward não será exceção. Trata-se de um profissional que recebeu formação teórica em uma grande universidade brasileira, mas isso não foi suficiente para desconstruir seu posicionamento ideológico e fundamentalista religioso que o leva para a discriminação e desrespeito às diferenças, contrariando toda a ética da profissão de antropólogo, o que levou à sua expulsão da Associação Brasileira de Antropologia. Seus argumentos são desprovidos das informações básicas e elementares para exercer sua profissão e são guiados por valores politicamente claudicantes e etnocêntricos.
Assinam essa nota os antropólogos e professores da Universidade Federal do Tocantins:
Odair Giraldin
Heber Gracio
André Demarchi
Odilon Morais
Reijane Pinheiro
Suiá Omim
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Para ler as declarações, basta clicar AQUI.
Sabe o quê nos falta muitoooooooooo educação, cultura, seriedade
inclusive atenção na hora das eleições. Vamos nos unir para não deixarmos brestas para seres como este nos defender. Somos Índios, pretos, amarelos, mulatos. Somos gente e brasileiros.
Apoio a nota de repúdio. Agronegócio é negócio – um governo decente submete os negócios às pessoas, aos povos, sem complacência com boboca endinheirado dizendo o que quer, prostitutriz.