Por Daniela Chiaretti em Valor
Previsão fácil para 2014, sem consultar astrólogos ou jogar búzios: a pressão sobre as terras indígenas vai recrudescer. É ano de Copa e de eleições, mas os conflitos que ficaram mal parados em 2013 têm potencial para se espalhar pelo país sem nem esperar que se apaguem os fogos de artifício. Terras indígenas estão na pauta ruralista, na mira de mineradoras e na arquitetura das hidrelétricas amazônicas. São muitas frentes abertas no Congresso, no campo e no governo. É um mosaico de argumentos que têm em comum a complexidade e a briga pela terra.
Há o conflito histórico dos guaranis e kaiowás no Mato Grosso do Sul, o conflito recente dos Tenharim no sul do Amazonas e uma miríade de outros casos. No Congresso, a bancada ruralista fechou o ano ressuscitando a PEC 215 – a Proposta de Emenda à Constituição que transfere do Executivo para o Legislativo a prerrogativa de demarcação de terras indígenas. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, cansou de dizer que a iniciativa é inconstitucional, enquanto sua pasta prepara uma proposta sobre o assunto. Em meio a essa agenda explosiva há a necessidade de se definir algo contemporâneo – a consulta aos povos indígenas quando forem afetados por algum projeto. Isso agrada ao setor elétrico e porções progressistas do governo, animou indigenistas e colocou à mesa lideranças indígenas – até o governo mandar uma mensagem ambígua e o diálogo ser rompido.
Nos últimos anos foi assim: nove entre dez ações judiciais que pretendiam suspender a usina de Belo Monte, no Pará, tinham um mantra por base – os índios não foram adequadamente consultados. Os empreendedores diziam que sim, os índios diziam que não, o governo acionava seus advogados e a maior obra do PAC seguia seu rumo até a próxima ação do Ministério Público.
A reclamação chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que em 2011 solicitou ao governo brasileiro a suspensão imediata do processo de licenciamento de Belo Monte. Deu uma confusão danada, o Itamaraty ficou “perplexo”, as remessas brasileiras de recursos à OEA foram suspensas, ouviram-se brados sobre a soberania nacional, blá-blá-blá, até que um dia a OEA voltou atrás.
É verdade que os empreendedores de Belo Monte se reuniram com índios da região, mas também é verdade que índios disseram que foram apenas informados que haveria uma obra. Informar não é consultar. O país está em um limbo até a hora em que definir que diabos é a tal consulta às comunidades, como deve ser feita, em qual momento, com quais procedimentos, para chegar onde e com quais limites.
Trata-se de pôr em prática o artigo 6 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O tratado versa sobre os direitos fundamentais dos povos indígenas e tribais, foi aprovado em 1989 e começou a vigorar em 1991. O Brasil foi um dos 20 países que ratificaram a convenção, com posterior aprovação no Congresso e promulgação pelo Executivo. Pelo direito brasileiro, quando isso acontece com uma convenção internacional, ela ganha status de lei.
A Convenção 169 é considerada progressista. Diz que a consulta aos povos afetados por algum projeto tem que ser feita de boa-fé. Alguns grupos resumem assim os artigos da convenção a esse respeito: tem que ser prévia, livre e consentida. A ideia do veto é debate superado: a meta é ter o consentimento dos afetados ou se chegar a um acordo. Mas se fala na necessidade da consulta, a convenção fica na generalidade. A partir daí é preciso criar um padrão, o que vários países fizeram, ou estão tentando fazer.
A Bolívia tem desde 2009 um decreto que regulamenta o procedimento, embora a norma tenha sido criticada pelos movimentos indígenas locais. O Peru fez suas regras em 2012, o Chile também avançou. No Brasil, um grupo de trabalho interministerial foi criado em 2012, co-presidido pela Secretaria-Geral da Presidência e pelo Itamaraty. A ideia era consultar as partes sobre como deve ser a consulta – o que pode parecer um pleonasmo público, mas é chave para dar legitimidade ao processo.
“A grande questão da regulamentação da consulta prévia é o ‘como'”, diz Paulo Maldos, secretário de Articulação Social da Secretaria-Geral da Presidência. “A chave da Convenção 169 é a construção do consenso, não é um instrumento plebiscitário. Seria genial se os engenheiros conhecessem a convenção na faculdade.”
A tarefa é montar uma arquitetura de regras que contemple a diversidade de centenas de culturas que lidam com o tempo e o espaço de forma diferente, que decidem de maneira particular, que possuem maneiras distintas de interlocução. Há povos indígenas espalhados por dezenas de aldeias – alguns têm uma liderança geral, outros não se sentem representados nem pela vizinha. São mais de 200 povos indígenas com 180 línguas diferentes, 2.300 comunidades quilombolas (segundo o governo) com territórios em diferentes fases de reconhecimento, comunidades de quebradeiras de cocos, seringueiros, castanheiros, caiçaras e muito mais.
Um grande seminário e uma série de reuniões foram feitas pra cá e pra lá. Textos da convenção produzidos pela OIT em língua ticuna e terena foram distribuídos. Tudo ia bem até julho de 2012, quando a Advocacia-Geral da União editou a Portaria 303, que permitiria ao governo que toque usinas, estradas e outras obras sem que as populações indígenas afetadas fossem previamente consultadas.
Fácil imaginar o que se seguiu. Cobrando coerência do governo, o movimento indígena abandonou o processo da consulta. Queriam que a portaria fosse revogada e não suspensa, como ocorreu. O diálogo foi quebrado e só continuou com os quilombolas. “É uma prioridade regulamentar a 169, fortalece as comunidades. É importante que os indígenas voltem”, diz Maldos.
Embora reconhecendo a importância do processo, organizações como o Instituto Socioambiental, o ISA, entendem que o Brasil recuou na agenda indígena. “É supérfluo falar de consulta prévia quando a terra não está garantida”, diz a advogada e cientista política Biviany Rojas Garzón, do ISA.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Henyo Barretto.