Mandado de Segurança e pedido de liminar contra a tramitação da PEC 215 no Congresso Nacional entregue ao STF

Abaixo, íntegra do Mandado de Segurança e pedido de liminar contra a instalação da comissão da PEC 215 no Congresso Nacional, impetrado pelo Deputado Federal Padre Ton (PT-RO), presidente da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da Câmara dos Deputados. Protocolados no STF segunda-feira, 19 de agosto, por uma comissão de representantes indígenas, acompanhados pela Drª Joênia Wapichana, junto ao Ministro Luis Roberto Barroso, responsável pela análise do pedido no Supremo. 

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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR MINISTRO PRESIDENTE DO EGRÉGIO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, MD JOAQUIM BARBOSA.

“uma Constituição escrita não configura mera peça jurídica, nem é simples estrutura de normatividade e nem pode caracterizar um irrelevante acidente histórico na vida dos povos e das nações. Todos os atos estatais que repugnem à Constituição expõem-se à censura jurídica – dos tribunais, especialmente – porque são írritos, nulos e desvestidos de qualquer validade. A Constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos e nem ao império dos fatos e das circunstâncias. A supremacia de que ela se reveste – enquanto for respeitada – constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades não serão jamais ofendidos” (ADI 293-7/DF – Decisão liminar – DJU de 16.04.1993 – p. 6429).

MARITON BENEDITO DE HOLANDA (Padre TON), brasileiro, solteiro, padre, portador da CI nº 939.780 – SSP/PI e CPF nº 339.633.123-00, atualmente no exercício do mandato de Deputado Federal pelo PT/RO, com domicílio na Câmara dos Deputados – Gabinete nº 280 – Anexo III – Câmara dos Deputados – Brasília – DF, vem perante Vossa Excelência, por intermédio dos advogados que a presente subscrevem (doc. 1), com fundamento nos artigo 5°, inciso LXIX, art. 102, I, “d”, combinado com artigo 1° da Lei 12.016, de 2009, impetrar

MANDADO DE SEGURANÇA

c/c Pedido de Liminar  

contra ato ilegal e abusivo, violador de direito e garantia individual (direitos fundamentais – cláusula pétrea), perpetrado pelos Senhores Presidentes da Câmara dos Deputados e da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, respectivamente senhores Henrique Eduardo Alves, brasileiro, Deputado Federal – PMDB/RN e Décio Nery de Lima, brasileiro, Deputado Federal, PT/SC, podendo ser encontrados na Câmara dos Deputados – Gabinetes nºs 539 e 218 (ambos no anexo IV), respectivamente, Brasília (DF), tendo em vista os fatos e fundamentos de direito adiante delineados.

I – Dos Fatos.

No dia 28 de março de 2000, foi apresentada e lida no Plenário da Câmara dos Deputados e no dia 19 de abril de 2000, foi publicada no Diário da Câmara dos Deputados (fls. 16399 e seguintes), a seguinte Proposta de Emenda à Constituição nº 215, de 2000, de autoria do Deputado Federal Almir Sá e outros (doc. 2):

“PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO

Nº 215, DE 2000

(Do. Sr. Almir Sá e outros).

Acrescenta o inciso XVIII ao art. 49; modifica o §4º e acrescenta o §8º ambos no art. 231, da Constituição Federal.

(Apense-se à Proposta de Emenda à Constituição nº 153, de 1995).

As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda ao texto constitucional:

Art. 1º Acrescente-se ao art. 49 um inciso após o inciso XV, renumerando-se os demais:

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

(…)

XVIII – aprovar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e ratificar as demarcações já homologadas;

Art. 2º O §4 do art. 231 passa a vigorar com a seguinte redação:

         Art. 231 (…)

         §4º As terras de que trata este artigo, após a respectiva demarcação aprovada ou ratificada pelo Congresso Nacional, são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

         §8º Os critérios e procedimentos de demarcação das Áreas Indígenas deverão ser regulamentados por lei.

Justificação

         No sistema de mútuo controle entre os Poderes da República, adotado pela Constituição Brasileira, busca-se o necessário equilíbrio para evitar que no desempenho desmedido das respectivas competências se criem entraves na área de atribuição de outro Poder ou de outra esfera de Poder. Assim, por exemplo, pode o Congresso sustar ato normativo do Executivo, sempre que este exorbite o poder regulamentar ou os limites da delegação legislativa; por sua vez, o Executivo dispõe do poder de edição de medidas provisórias, antecipando-se a, ou determinando, a iniciativa legislativa do Congresso.

         No caso da demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, verifica-se que implementada a atribuição pela União Federal no caso, por meio do Poder Executivo – sem nenhuma consulta ou consideração aos interesses e situações concretas dos estados-membros, tem criado insuperáveis obstáculos aos entes da Federação. No fim e ao cabo, a demarcação das terras indígenas consubstancia-se em verdadeira intervenção em território estadual, com a diferença fundamental de que, nesse caso e ao contrário da intervenção prevista no inciso IV do art. 49, nenhum mecanismo há para controla-la, ou seja, a falta de critérios estabelecidos em lei torna a demarcação unilateral.

         Por isso, e valendo-se do próprio precedente constitucional, que exige a aprovação congressual para a intervenção federal, é que se propõe a presente emenda à Constituição, para que o Congresso, em conjunto com as partes interessadas na demarcação, passem a aprovar a demarcação das terras indígenas. É mantida a atribuição da União Federal e, assim, preservada a separação entre os Poderes, ao mesmo tempo em que se estabelece um mecanismo de co-validação ao desempenho concreto daquela competência.

         Coerentemente, prevê-se que o Congresso ratifique as demarcações já homologadas.

         Ao contrário do que a alguns possa parecer, com tal providência outorga-se um inédito nível de segurança jurídica às demarcações das terras indígenas, na medida em que, tendo-se pronunciado sobre elas o Poder que representa o povo e as unidades federativas, ficarão absolutamente isentas de qualquer questionamento.

         Por tais razões, a que se espera o acréscimo das demais que inspirem os nobres pares, solicita-se a aprovação desta proposta.

         Sala de Sessões, 28 de março de 2000 – Deputado Almir Sá”. (grifos nossos).

A proposição tramitou regularmente na Câmara dos Deputados, tendo sido arquivada e desarquivada nos termos regimentais e, finalmente, após diversos pareceres exarados e não votados, teve sua admissibilidade aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, na sessão de 21 de março de 2012, através do parecer do eminente Deputado Federal Osmar Serraglio – PMDB/PR. (doc. 3)

Destaca-se, pela pertinência, o conteúdo do voto que admitiu a tramitação da PEC ora hostilizada:

 “(…)

II – VOTO DO RELATOR

Compete a este Órgão Técnico o exame da admissibilidade de propostas de emenda à Constituição, a teor do disposto no art. 202, caput, do Regimento Interno.

Analisando as Propostas sob esse aspecto, não vislumbro nenhuma ofensa às cláusulas invioláveis do texto constitucional, à luz do disposto no § 4º do art. 60 da Constituição Federal. As PECs em consideração não ofendem a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais, com ressalva da possibilidade de o Congresso Nacional rever as demarcações já concluídas, prevista na PEC nº 215/00.

Com efeito a ratificação das demarcações já homologadas pelo Congresso Nacional implicaria o reexame de atos jurídicos consumados, constitutivos de direitos para a União e para as comunidades indígenas usufrutuárias dessas terras, em violação ao disposto no inciso XXXVI do art. 5º da Constituição Federal. Tal modificação constitucional, portanto, não passa pelo crivo da admissibilidade, por contrariar frontalmente o art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal.

Continuando a análise dos requisitos constitucionais, verifico que o número de assinaturas confirmadas, na proposição principal e apensadas, é suficiente para a iniciativa de proposta de emenda à Constituição, contando mais de um terço dos membros da Câmara dos Deputados, conforme informação da Secretaria-Geral da Mesa, obedecendo-se a exigência dos arts. 60, I, da Constituição Federal e 201, I, do Regimento Interno.

Não há, outrossim, nenhum impedimento circunstancial à apreciação da Proposta de Emenda à Constituição: não vigora intervenção federal, estado de defesa ou estado de sítio.

As proposições em análise são, portanto, admissíveis, sob a ótica constitucional, pelos motivos a seguir expostos.

Primeiramente, cabe ressaltar que a inclusão da participação do Congresso Nacional no processo de demarcação de terras indígenas não viola o princípio da separação dos Poderes.

Na dicção do art. 231 da Lei Maior, o Legislador Constituinte atribuiu à União a competência para a demarcação das áreas tradicionalmente ocupadas pelos índios.

A demarcação das terras indígenas tem dois distintos momentos. Primeiro, fixa-se a delimitação, que pode levar em conta acidentes geográficos ou linhas geométricas. O segundo momento corresponde à localização, concreta, da linha divisória. Esta ultima ação é, necessariamente, atuação do Poder Executivo. Já a definição do âmbito territorial da reserva, tanto pode ser por lei como por ato administrativo, segundo preconize a Constituição.

O Legislador Constituinte não especificou a qual Poder do Estado compete a demarcação das terras indígenas. Coube, então, o Legislador ordinário dispor sobre a matéria, como o fez ao editar o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001, de 19.12.1973), cujo art. 19 concede ao Poder Executivo a atribuição de realizar administrativamente a demarcação de terras indígenas. Nada há que impeça submissão à apuração, por lei, daquele polígono territorial indígena.

Pretende-se, portanto, alterar norma constitucional e essa norma não se refere a qual Poder da República cabe a demarcação de terras indígenas. Assim, não há obstáculos à propositura de novo texto ao art. 231, conferindo ao Poder Legislativo a competência de aprovar as demarcações das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

Concordamos, portanto, com o Relator da matéria que nos antecedeu nesta Comissão, Deputado GERALDO PUDIM, no sentido de que a competência para a demarcação de terras indígenas não integra o núcleo imodificável de atribuições do Poder Executivo, pois tal competência não lhe é atribuída por norma constitucional, mas sim por lei ordinária, oriunda de regime constitucional já extinto.

Nesse ponto, cabe transcrever excerto do bem elaborado parecer do Deputado GERALDO PUDIM, pela importante contribuição ao esclarecimento do tema:

“A interpretação da Constituição a partir de norma infraconstitucional – no caso, o Estatuto do Índio – deve ser enfaticamente recusada pois, como observa Gomes Canotilho, “uma interpretação autêntica da constituição feita pelo legislador ordinário é metodicamente inaceitável”. Tal inversão equivocada atenta contra a supremacia da Constituição e viola a unidade da ordem jurídica, à medida que possibilita a um poder constituído sobrepor-se indevidamente ao Constituinte, para criar novos sentidos não previstos no texto constitucional. Em suma, na feliz expressão de Sérgio Sérvulo da Cunha, “nem a doutrina, nem o legislador, passam à frente da lei magna. Essa, aliás, a verdadeira „interpretação conforme à Constituição?.

Quanto ao princípio federativo, as proposições não maculam seu núcleo essencial, eis que a competência é originalmente da União e continuará a ser, conforme os textos ora analisados.

A discussão da matéria pelo Poder Legislativo não fere o pacto federativo. Ao contrário, poderá contribuir para o aprimoramento do Estado Federal, com a participação ativa da representação dos Estados membros no Congresso Nacional, o Senado Federal.

De fato, a demarcação de terras indígenas provoca impacto significativo em vários aspectos da vida das unidades federadas, havendo até os que comparam os efeitos da demarcação territorial nos Estados-membros com a intervenção federal.

A submissão da demarcação de terras indígenas às Assembléias Legislativas estaduais, pretendida pela PEC nº 257/04, também não viola o pacto federativo. Como já ocorre na consulta aos Legislativos locais, na hipótese de criação, desmembramento e incorporação de Estados membros (art. 18 da CF), a consulta às Assembléias estaduais na criação de reservas indígenas terá caráter meramente opinativo para o Congresso Nacional, respeitando-se as prerrogativas da União.

Impende notar, outrossim, que a exigência de que o Presidente da República efetue demarcações de terras indígenas apenas mediante iniciativa de projeto de lei não configura violação à separação de Poderes. A Constituição Federal proíbe alterações tendentes a abolir os bens jurídicos tutelados pelas cláusulas pétreas, mas não as alterações que protegem o núcleo essencial dos princípios constitucionais. No caso, as prerrogativas de independência orgânica e especialização funcional que caracterizam a divisão de Poderes restaram intocadas.

Por fim, adotamos a emenda sugerida no parecer do Deputado GERALDO PUDIM, no sentido de excluir do texto da PEC principal a ratificação das demarcações já homologadas pelo Congresso Nacional, por violação ao disposto no art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal.

Diante do exposto, manifestamo-nos pela admissibilidade da Proposta de Emenda à Constituição n.º 215, de 2000, na forma da emenda apresentada, e das Propostas de Emenda à Constituição nº 579, de 2002; nº 156, de 2003; nº 257, de 2004; nº 275, de 2004; nº 319, de 2004; nº 37, de 2007; nº 117, de 2007; nº 161, de 2007; nº 291, de 2008; nº 411, de 2009; e nº 415, de 2009”.

É de se destacar que o parecer do relator na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, conquanto tenha sido no sentido da admissibilidade da proposição, já expurgou desde loco, da deliberação da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, a escancarada, data vênia, inconstitucionalidade de parte da proposição, consistente na submissão das demarcações de terras indígenas já realizadas, à homologação do Congresso Nacional.

Aprovada a admissibilidade da Proposta de Emenda Constitucional na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, o Exmo. Senhor Presidente da Câmara dos Deputados determinou a criação da respectiva Comissão Especial, cuja instalação restou suspensa, apenas temporariamente, tendo em vista um acordo formulado entre os parlamentares e algumas lideranças indígenas, após intensa mobilização dos índios.

Indica-se então, como autoridades coatoras no presente mandamus o Exmo. Senhor Presidente da Câmara dos Deputados – Deputado Federal Henrique Eduardo Alves e o Exmo. Senhor Presidente da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, Deputado Décio Vieira, bem como o Presidente da Comissão Especial que eventualmente, o que se admite apenas para argumentar, vier a ser instalada com vistas a proferir parecer de mérito na Proposta de Emenda Constitucional nº 215/2000.

O fato é que a proposição encontra-se atualmente no aguardo da criação de Comissão Especial para discussão e votação do mérito da matéria (conforme tramitação legislativa anexa – doc. 4).

Esse é o quadro fático existente. Contudo, conforme se verá adiante, a mencionada Proposta de Emenda Constitucional, na medida em que viola cláusula pétrea, não poderia, como de fato não pode, sequer tramitar na seara do Congresso Nacional, sob pena de grave violação à ordem Constituição instaurada no País.

Com efeito, demonstrar-se-á na presente inicial que a mera tramitação da referida PEC nº 215/2000, já viola frontalmente direitos e garantias individuais da população indígena, de modo que se fere de morte cláusula pétrea inscrita no texto da Constituição Federal.

Objetivamente, a tramitação da referida Proposta de Emenda Constitucional tem o condão de relativizar cláusula petrea (ainda que fora de catálogo), consubstanciada na totalidade do conteúdo do artigo 231 da Constituição Federal. É  o que se passa a demonstrar em seguida.

II – Da legitimidade do Impetrante e do cabimento do presente writ.

Busca-se com o presente mandamus garantir-se ao Impetrante o direito líquido e certo, como Deputado Federal legitimamente eleito e legalmente investido de mandato ainda em vigor, de ver respeitada a Constituição Federal no que diz respeito aos Poderes de Emenda atribuídos aos Legisladores constituintes derivados e à própria estabilidade das cláusulas erigidas pela ordem constitucional como imutáveis, pétreas. Enfim, busca-se afirmar a estabilidade e a força normativa da ordem constitucional vigente.

É inequívoca a legitimidade e o interesse de membro da Câmara dos Deputados para se valer de mandado de segurança com o fito de questionar atos lesivos a direito subjetivo próprio de parlamentares.

Com efeito, durante o julgamento do MS nº 20.452, acolheu o Sr. Ex-Ministro Aldir Passarinho então relator, o parecer da Procuradoria-Geral da República, que assim se pronunciou sobre preliminar de legitimidade suscitada em relação a quem não detinha a condição de parlamentar, verbis:

“A questão se situa no âmbito interno do Congresso Nacional e os seus membros é que possuem, em princípio, por suas prerrogativas, interesse intrínseco para a impugnação de ato praticado no Parlamento. O direito, acaso violado, é exclusivo do membro do Congresso Nacional, a quem compete o exame e votação de emenda constitucional”. (RTJ, vol. 116, pág. 54, 1ª col.).

Este remédio constitucional tem sido invariavelmente reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal que só a nega quando entende tratar-se de questão interna corporis  (RTJ 102/27, 112/598, 112/1023 e 116/67), o que efetivamente não se vislumbra no caso ora vergastado, onde estão postas grandes possibilidades de afronta à ordem e à estabilidade de direitos e garantias individuais assegurados na Carta Constitucional.

Quanto à possibilidade de se atacar atos do Poder Legislativo mediante mandado de segurança, ensina HELY LOPES MEIRELLES, verbis:

“Vê-se, portanto, que o objeto normal do mandado de segurança é o ato administrativo específico, mas por exceção presta-se a atacar as leis e decretos de efeitos concretos, as deliberações legislativas e as decisões judiciais para as quais não haja recurso capaz de impedir a lesão ao direito subjetivo do impetrante (…) Por deliberações legislativas atacáveis por mandado de segurança entendem-se as decisões do Plenário ou da Mesa ofensivas de direito individual ou coletivo de terceiros, dos membros da Corporação, das Comissões, ou da própria Mesa, no uso de suas atribuições e prerrogativas institucionais. As Câmaras Legislativas não estão dispensadas da observância da Constituição, da Lei, em geral, e do Regimento Interno em especial. A tramitação e a forma dos atos do Legislativo são sempre vinculadas às normas legais que os regem; a discricionariedade ou soberania dos corpos legislativos só se apresenta na escolha do conteúdo da lei, nas opções da votação e nas questões interna corporis de sua organização representativa. Nesses atos, resoluções ou decretos legislativos caberá a segurança, quando ofensivos de direito individual público ou privado do Impetrante, como caberá, também, contra a aprovação da lei, pela Câmara, ou sanção, pelo Executivo, com infringência do processo legislativo pertinente, tendo legitimidade para a impetração tanto o lesado pela aplicação da norma ilegalmente elaborada, quanto o parlamentar prejudicado no seu direito público subjetivo de votá-la regularmente” (in DO MANDADO DE SEGURANÇA, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção e Habeas Data, RT, 15ª Ed., pág. 29/30). (grifos nossos).

 

De igual forma, o ensinamento do Professor português JORGE MIRANDA, verbis:

“O que terá de haver sempre, ainda quando o órgão Constituinte, altere as regras orgânicas e processuais que o precedem, será a vinculação a regras de Direito e mesmo às regras que ele próprio venha a editar (assim, a vinculação de uma assembléia constituinte ao seu regimento e a outras normas internas e sua autoria). O que terá de haver sempre – salvo ruptura ou revolução – será julgamento dessas regras e das formas de agir do órgão constituinte à idéia de Direito que o suporta e em face da qual deve conceber-se como órgão constituinte. E, a esta luz, a doutrina do poder constituinte acaba por se reconduzir a uma doutrina de limitação do poder”. (in REVISTA DE DIREITO PÚBLICO, vol. 80, pág. 26).

No mesmo sentido da possibilidade da ação mandamental em casos como o presente se alinham as respeitadas opiniões de SEABRA FAGUNDES, CASTRO NUNES E CRETELLA JÚNIOR, para as quais o Judiciário jamais se recusou a confrontar um ato praticado com as prescrições constitucionais, legais ou regimentais, que estabeleçam condições, forma ou rito para o seu cometimento, sejam eles praticados pelo Plenário, pela Mesa ou pelos Presidentes das Câmaras Legislativas.

Resta, pois, no nosso entender, incontroverso o direito líquido e certo do Impetrante de ver respeitado as soberanas decisões do verdadeiros detentores do Poder  Constituinte Originário – O POVO do qual são eles (parlamentares) representantes, mandatários.

Logo, cabível, o presente mandado de segurança, para o qual concorrem todas as condições da ação.

Ora, a Presidência da Câmara dos Deputados, com supedâneo no parecer de sua Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, permitiu a  criação de Comissão Especial para estudar e dar parecer nesta proposta de emenda à Constituição que “Transfere para o Poder Legislativo Federal os Atos finais, a própria homologação,  relativos à Demarcação de Terras Indígenas” no Brasil.

Deriva daí a presente impetração, que visa preservar os direitos e garantias individuais do Parlamentar Impetrante em ver respeitados os salutares princípios estruturadores da ordem constitucional em nítido processo de violação com a tramitação dessa mencionada Proposta de Emenda Constitucional nº 215/2000.

No caso presente, o direito subjetivo do Impetrante, como deputado federal, restará violado na medida em que se autoriza como supostamente compatível com a ordem constitucional a regular tramitação de proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais das populações indígenas.

Tem o Impetrante, pois, direito líquido e certo de não permitir a votação dessa matéria e de impedir a consumação do processo legislativo que, só por si, constitui grave ofensa à Constituição.

Não se busca com a vertente impetração, à toda evidência, a mera impugnação de questões interna corporis do Parlamento. Ao contrário, investe o Impetrante contra a tramitação da proposta de emenda tendente a macular direitos e garantias individuais inscritos no texto da Constituição Federal pelo legislador constituinte originário.

Sobre tema idêntico ao ora guerreado, o ex-Ministro Moreira Alves reconheceu cabível o mandado de segurança, na hipótese em que se pretendia obstar a deliberação do Congresso Nacional sob a alegação de ser a emenda tendente à abolição da Republica (RTJ 99/1031).

Ponderou o eminente Magistrado a respeito da tramitação de projeto de lei ou proposta de emenda constitucional, colidente o seu conteúdo ou a sua forma com algum princípio constitucional, verbis:

“Diversa, porém, são as hipóteses como a presente, em que a vedação constitucional se dirige ao próprio processamento da lei ou da emenda, vedando a sua apresentação como é o caso previsto no parágrafo único do artigo 57) ou a sua deliberação (como na espécie). Aqui, a inconstitucionalidade diz respeito ao próprio andamento do processo legislativo, e isso porque a Constituição não quer – em face da gravidade dessas deliberações, se consumadas – que sequer se chegue à deliberação, proibindo-a taxativamente. A inconstitucionalidade, neste caso, já existe antes de o projeto ou de a proposta se transformarem em lei ou em emenda constitucional, porque o próprio processamento já desrespeita, frontalmente, a Constituição.

E cabe ao Poder Judiciário – nos sistemas em que o controle da constitucionalidade lhe é outorgado – impedir que se desrespeite a Constituição. Na guarda da observância desta, está ele acima dos demais Poderes, não havendo, pois, que falar-se, a esse respeito, em independência de Poderes. Não fora assim e não poderia ele exercer a função que a própria Constituição, para a preservação dela, Ihe outorga

4. Considero, portanto, cabível, em tese, o presente Mandado de Segurança.” (RTJ, vol. 99, pág. 1040, 2ª col.). – grifou-se –

Não podemos esquecer, outrossim, que o art. 47, § 1°, do ordenamento constitucional outrora vigente (EC n° 01, de 1969), assim como o atual, no seu art. 60. § 4°, não permitia e o vigente não permite que as matérias neles previstas sejam objeto de “deliberação“, a significar revestirem-se elas de tamanha magnitude que sequer podem ser discutidas e muito menos votadas.

E, conforme acentuou o ex-Ministro Moreira Alves, se a inconstitucionalidade reside no próprio processo legislativo, conducente à elaboração da emenda, tal exame é passível de ser feito, previamente, através do mandado de segurança, visto como, insista-se, é a própria deliberação que por si assume contornos de inequívoco desrespeito a Lei Maior em seu núcleo imodificável, pelo poder constituinte derivado.

No mesmo sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal, em acórdão unânime, relatado pelo então ministro Thompsom Flores, quando entendeu que o Poder Judiciário pode verificar se o ato legislativo atendeu ao processo previsto na Constituição (Revista de Direito Administrativo, 126/117 e seguintes).

Mais recentemente essa Corte Suprema, nos autos do Mandado de Segurança nº 32033 de autoria do Senador Rodrigo Rollemberg – PSB/DF, não obstante tenha ao final denegado a ordem, admitiu e reconheceu a plena legitimidade de Parlamentar integrante do Congresso Nacional de se insurgir, via Mandado de Segurança,  contra a tramitação de qualquer proposta legislativa (inclusive as emendas à Constituçião), que tenham o condão de violar, de alguma forma, cláusula pétrea.

Tudo isso está a revelar que o controle exercido pelo Supremo Tribunal Federal sobre essa espécie de atos atentatórios à Constituição há de ser, para tornar-se eficaz, necessariamente, preventivo, a priori, e não a posteriori, após a prática da inconstitucionalidade que se buscava evitar.

Logo, além da incontestável legitimidade do Impetrante, também é cabível o presente mandado de segurança, para evitar a tramitação de matéria tendente a abolir cláusula pétrea, não obstante fora de catálogo, consubstanciada na totalidade do art. 231 da Constituição Federal.

III – Da violação ao art. 60, §4º, IV da Constituição Federal – Proposta de Emenda tendente a abolir direito fundamental – garantias individuais das populações indígenas – art. 231 do Estatuto Maior.

A Proposta de Emenda Constitucional – PEC Nº 215, de 2000, de autoria do Sr. Deputado Almir Sá e outros, inclui dentre as competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e, em seu texto original prevê inclusive a ratificação das demarcações já homologadas, ou seja, transfere do Poder Executivo para o Poder Legislativo a prerrogativa de decidir, por derradeiro, sobre o direito dos índios às terras que originalmente ocupam, levando em consideração, como se colhe da justificativa, não os interesses indígenas, mas os interesses dos Estados Membros e, por conseguinte, dos particulares exploradores ou interessados na exploração das terras indígenas.

As ofensas ao texto constitucional que aqui serão demonstradas podem ser mais bem visualizadas no quadro abaixo:

 

Texto da Constituição Federal de 1988 Texto da Proposta de Emenda à Constituição nº 215/2000 Texto do Substitutivo adotado na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados – Proposta de Emenda à Constituição nº 215/2000.
Art. 49. É da Competência exclusiva do Congresso Nacional:

(…)

Inciso XVIII – (sem correspondente)

Art. 49. É da Competência exclusiva do Congresso Nacional:

(…)

XVIII – aprovar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e ratificar as demarcações já homologadas.

Art. 49. É da Competência exclusiva do Congresso Nacional:

(…)

XVIII – aprovar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

 

Art. 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

 

 

 

§8º.(sem correspondente).

Art. 231 (…)

 

 

 

 

 

 

 

§4º As terras de que trata este artigo, após a respectiva demarcação aprovada ou ratificada pelo Congresso Nacional, são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

 

§8º Os critérios e procedimentos de demarcação das Áreas Indígenas deverão ser regulamentados por lei.

Art. 231 (…)

 

 

 

 

 

 

 

§4º As terras de que trata este artigo, após a respectiva demarcação aprovada pelo Congresso Nacional, são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

 

 

 

 

Os objetivos da proposta de Emenda Constitucional, longe de proteger os interesses da população indígena, visam assegurar, sobre as terras historicamente ocupadas pelos índios, interesses econômicos dos Estados Membros e dos particulares interessados na exploração ou que já estão na exploração das referidas terras, consoante se colhe da própria justificativa apresentada pelo autor da PEC, verbis:

 “No caso da demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, verifica-se que implementada a atribuição pela União Federal no caso, por meio do Poder Executivo – sem nenhuma consulta ou consideração aos interesses e situações concretas dos estados-membros, tem criado insuperáveis obstáculos aos entes da Federação.”

Ora, a Constituição Federal, na questão da proteção aos indígenas, veiculou uma série de direitos e prerrogativas inerentes a essa população, visando a preservação da sua cultura, costumes, modo de vida e substancialmente, a defesa das terras que ocupam desde tempo imemoriais.

Nesse sentido, diversas são as passagens constitucionais que mostram o amplo trabalho do legislador constituinte originário no sentido de deferir à comunidade indígena, a máxima proteção constitucional, na perspectiva do seu reconhecimento histórico e social na formação da sociedade brasileira. Nesse sentido, destacamos as seguintes passagens constitucionais que dão guarida ao direito indigenista constitucional brasileiro:

“(…)

Art. 20. São bens da União:

XI – as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

XIV – populações indígenas;

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

XVI – autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais;

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

XI – a disputa sobre direitos indígenas.

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

V – defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;

Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.

§ 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o “caput” deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.

Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.

§ 2º – O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º – O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º – São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º – As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3º – O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4º – As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 5º – É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6º – São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

§ 7º – Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

ADCT

Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.(…)”

A ampla proteção constitucional deferida às populações indígenas foi objeto de acirrado debate na Assembléia Nacional Constituinte, conforme se verifica do trecho do Relatório abaixo destacado (VII – COMISSÃO DA ORDEM SOCIAL – VII C SUBCOMISSÃO DOS NEGROS, POPULAÇÕES INDÍGENAS, PESSOAS DEFICIENTES E MINORIAS – ANTEPROJETO – RELATÓRIO – Volume 196): (doc.5)

“(…)

                     No que se refere às Populações Indígenas, que apesar de estarem sob a Tutela do Estado desde o princípio do século, tem sido, de um lado exterminadas, e de outro, incorporadas de forma marginal à sociedade envolvente, a formulação e aplicação imediata de princípios constitucionais que preservem seus costumes e defendam suas terras, mantendo, enfim, sua identidade cultural, é a única garantia de que sobreviverão como Povos Indígenas.

                     Para se ter uma idéia da situação desoladora do índio no Brasil, basta registrar o fato espantoso de que, à época do descobrimento, existia mais de cinco milhões de índios no Brasil, número reduzido, atualmente, a 220.000.

                     PARECER

                     Comento, a seguir, os aspectos incluídos no Anteprojeto de Constituição, relativamente a cada um dos grupos sociais enfocados.

                     (…)

                     A proteção aos direitos das Populações Indígenas se deu amplamente, no reconhecimento do caráter pluriétnico da sociedade brasileira e no tratamento dos dois principais problemas que afetam tais populações: a questão da Terra e a questão da terra e a questão da proteção jurídica dos índios.

                     Quanto à terra, reconhecendo-se que para os índios ela significa a própria vida, estipulou-se que eles têm o direito à sua posse permanente, e procurou-se garantir sua demarcação definitiva, estabelecendo-se o prazo máximo de 4 (quatro) anos para realização desse trabalho pelo Estado, garantindo-se que, iniciados os trabalhos, um mínimo de 25% (vinte e cinco por cento) do total das terras por eles ocupadas deva ser demarcado anualmente.

                     A fixação do prazo de 4 (quatro) anos se baseou no potencial de terras indígenas existentes, estimadas atualmente em 79 (setenta e nove) milhões de hectares, pela FUNAI, dos quais 25 (vinte e cinco) milhões de hectares já demarcados. A exigência da demarcação anual de 25% (vinte e cinco por cento) do total das terras ocupadas garante aos índios a possibilidade de acompanhar o cumprimento da determinação constitucional e, em curto prazo, se for o caso, questionar a sua execução.

                     Ainda sobre o assunto, garante-se às populações indígenas, com exclusividade, o usufruto das riquezas do solo, subsolo e dos cursos fluviais de suas terras, – salvo nos casos de relevante interesse nacional, quando apenas à União, após aprovação do Congresso Nacional, caso a caso, e das populações indígenas envolvidas, será possível promover a pesquisa, lavra ou exploração de riquezas naturais – reconhecendo-se que qualquer outra atitude, nesse campo, é incentivar medidas de invasão por empresas mineradoras, empresas madeireiras, garimpeiros, decretando o extermínio total dessas populações.

                     Complementarmente, criminaliza-se a invasão das terras, responsabilizando-se, inclusive, as autoridades eventualmente envolvidas nas ações desse tipo.

                     Relativamente à proteção jurídica, transfere-se ao Ministério Público a atuação na defesa dos índios, corrigindo-se a esdrúxula situação atual em que os índios, por estarem sob a tutela da FUNAI, não conseguem, por exemplo, recorrer judicialmente contra ela.

                     Algumas propostas oriundas de comunidades e intelectuais ligados à causa indígena não puderam ser considerados, como atribuir-se às nações indígenas, o STATUS de estado soberano e independente da sociedade brasileira, medida que, se de um lado colocaria os índios sob seu exclusivo arbítrio, choca-se, por outro, com a organização política da sociedade brasileira, desmembrando lhe o território e descaracterizando a participação dos índios na comunidade nacional. (…)”

Conquanto o texto final da Constituição Federal tenha sido publicado com adaptações ao texto discutido na subcomissão, o fato é que o legislador constituinte originário expressou de modo incontestável, a ampla proteção deferida às comunidades indígenas, notadamente no que se refere à demarcação das terras que originariamente e historicamente ocupam.

O Artigo 231 da Constituição Federal, como estruturado pelo legislador constituinte originário, representa uma conquista inigualável das populações indígenas, além de corrigir uma omissão histórica do País para com esses primevos habitantes do território nacional.

Assim, a demarcação das terras das populações indígenas, cuja competência constitucional é atribuída à União, que o faz através do Poder Executivo, após regular processo administrativo definido por legislação específica, onde são analisadas diversas variáveis e realizados vários estudos direcionados ao tema por especialistas, constitui-se em providência constitucional de ampla proteção, impossível de submissão aos ditames da conveniência dos interesses econômicos de Estados e/ou de particulares, sob pena de grave retrocesso social e menoscabo às garantias individuais dos índios.

O que se afirma é que, em relação à demarcação das terras indígenas, o Congresso Nacional, através do Poder Constituinte Originário já se manifestou de forma definitiva sobre o tema, estabelecendo o direito incondicional dos índios às terras que originalmente e historicamente ocupam, de modo que não se defere ao poder constituinte derivado rever novamente a temática, notadamente para criar condicionantes ou ressalvas no tocante à demarcação, como, por exemplo, para contemplar os interesses dos Estados Membros ou quiçá particulares (v.g., fazendeiros) eventualmente interessados ou afetados, como  objetiva a questionada Proposta de Emenda Constitucional nº 215/2000.

Em outras palavras, afirma o Impetrante e toda a comunidade indígena que a cabeça do art. 231 da Constituição Federal e todos os seus parágrafos estão protegidos pela imutabilidade das cláusulas pétreas, fora do catálogo do art. 5º da Constituição Federal, porque visam resguardar, na ordem constitucional vigente e da forma como estruturado, a dignidade humana e a própria existência da população indígena no Brasil.

Nessa perspectiva, não há amparo constitucional sequer para a tramitação de Proposta de Emenda Constitucional tendente a restringir ou mitigar o direito fundamental da população indígena à demarcação das terras que originalmente e historicamente ocupam, cabendo, tão somente ao Poder Executivo, sem interferir no direito fundamental propriamente dito, estabelecer as formalidades inerentes ao processo de demarcação.

O art. 231 da Constituição Federal constitui-se num estatuto mínimo de garantia, proteção e defesa da dignidade humana e da própria sobrevivência das comunidades indígenas no Brasil e, nesse diapasão, não pode ser objeto de qualquer restrição, salvo aquelas já apostas no texto constitucional pelo próprio legislador constituinte originário. Daí sua qualificação como cláusula pétrea fora do rol do art. 5º da Constituição Federal, plenamente admitida pela Constituição Federal.

Nesse sentido, destaca-se trecho do voto do então Ministro Ilmar Galvão proferido por ocasião da apreciação do pedido liminar nos autos da ADI 939-7/DF:

“(…)

A Constituição de 1988 ampliou consideravelmente o núcleo dos limites materiais ao poder de reforma de seu texto, ao estipular explicitamente, no art. 60, §4º, que ‘não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais.”.

A vedação, no ensinamento de José Afonso da Silva (Curso, 5ª ed., pág. 59), não proíbe apenas emendas que se destinem a suprimir, expressamente, os princípios enumerados, atingindo, por igual, a pretensão de modificar qualquer elemento conceitual da Federação, ou do voto direito, ou que, indiretamente, redunde em restrição à liberdade religiosa, de comunicação, ou a outro direito e garantia individual, bastando, pois, que a proposta de emenda se encaminhe, ainda que remotamente, para sua abolição.

A nova Carta enumerou os direitos e garantias individuais em seu art. 5º. Fê-lo de maneira minuciosa, mas não exaustiva, já que, no §2º, deixou ressalvado que ‘os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte’.

Repare-se que o texto não refere direitos e garantias expressos no art. 5º, mas na Constituição, querendo significar, portanto, que o mencionado dispositivo não é exaustivo em relação aos direitos expressos na Carta. (…)”

Na mesma assentada, colhe-se excertos do voto Ministro Celso de Mello:

“(…)

É preciso não perder de perspectiva que as emendas constitucionais podem revelar-se incompatíveis, também elas, com o texto da Constituição a que aderem. Daí, a sua plena sindicabilidade jurisdicional, especialmente em face do núcleo temático protegido pela cláusula de imutabilidade inscrita no art. 60, §4º, da Carta Federal.

As denominadas cláusulas pétreas representam, na realidade, categorias normativas subordinantes que, achando-se pré-excluídas, por decisão da Assembléia Nacional Constituinte, do poder de reforma do Congresso Nacional, evidenciam-se como temas insuscetíveis de modificação pela via do poder constituinte derivado.

Emendas à Constituição podem, assim, incidir, também elas, no vício da inconstitucionalidade, configurado este pela inobservância de limitações jurídicas superiormente estabelecidas no texto constitucional por deliberação do órgão exercente das funções constitucionais primárias ou originárias (…)”

O artigo 231 da Constituição Federal está imune a quaisquer alterações constitucionais que visem restringir ou mitigar, em verdadeiro retrocesso social e risco da própria extinção dos índios, direitos fundamentais afetos a essa população, notadamente no que se refere ao reconhecimento à titularidade das terras que originalmente e secularmente ocupam.

É a própria dignidade humana dos índios que está intrinsicamente vinculada à higidez das garantias mínimas asseguradas no texto do artigo 231 da Constituição Federal.

Restringi-las, de qualquer forma, significa uma clara declaração do Estado brasileiro no sentido de que – na contramão do que estatui a Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, firmadas pelo Brasil – a proteção dos direitos das populações indígenas não é prioridade e que o reconhecimento de seus direitos estão à mercê ou na dependência dos interesses econômicos superiores das unidades da federação e de determinados grupos econômicos.

Assevera o Impetrante que não é esse o caminho indicado pelo legislador constituinte originário e nem é o caminho que deseja ser seguido pelo Estado Brasileiro.

Assim, não há espaço para se considerar ou vislumbrar, em relação às terras ocupadas pelos índios, quaisquer interesses econômicos dos Estados membros ou supostos direitos de particulares (fazendeiros, madeireiros etc) às terras por eles ocupadas. E é isso que objetiva a proposta de emenda constitucional ora hostilizada, ou seja, submeter a demarcação das terras indígenas aos interesses diversos dos estados e dos particulares eventualmente afetados economicamente com o processo demarcatório.

O direito fundamental dos índios às terras que tradicionalmente ocupam, como postulado da própria dignidade humana precisa ser assegurado pelo Estado brasileiro. É o que acertadamente afirma o jurista Robério Nunes:

“(…)

Como de pode facilmente notar a partir da sua simples leitura, a Constituição de 1988 foi a que mais se ocupou do tema relativo aos índios e seus direitos: manteve as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios no domínio da União (art. 20, XI) e a competência privativa desta para legislar sobre populações indígenas (art. 22, XIV); estabeleceu a competência exclusiva do Congresso Nacional para autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais (art. 49, XVI); determinou a competência da Justiça Federal para processar e julgar a disputa sobre direitos indígenas (art. 109, XI); conferiu ao Ministério Público a função institucional de defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas (art. 129, V); afirmou que a pesquisa e a lavra de recursos específicas legalmente previstas quando das atividades se desenvolverem terras indígenas (art. 176, §1º); assegurou às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem, inclusive no ensino fundamental regular (art. 210, §2º); determinou que o Estado protegerá as manifestações das culturas indígenas (art. 215,§1º); consagrou a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições indígenas (art. 231, §1º) e disciplinou cuidadosamente o seu regime jurídico (art. 231, §§2º, 3º, 4º, 5º e 6º e 7º), além de ter estipulado a competência da União para demarca-las (art. 231, caput) no prazo máximo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição (art. 231, caput, e 67 do ADCT); outorgou legitimamente às comunidades e organizações indígenas para ingressaram em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo (art. 232).

Este conjunto de normas forma o que se pode chamar de direito constitucional indigenista brasileiro atual, cujos princípios seriam: a) princípio do reconhecimento e proteção do Estado à organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos índios originários e existentes no território nacional; b) princípio do reconhecimento dos direitos originários dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam e proteção de sua posse permanente em usufruto exclusivo para os índios; e c) princípio da igualdade de direitos e da igual proteção legal. Esses princípios são facilmente identificáveis à luz da análise do texto constitucional. Em relação ao último deles, vale desde logo afirmar que é inegável que os índios usufruem todos os princípios e direitos constitucionais comuns aos demais brasileiros. Assim, por exemplo, os seus direitos estão também protegidos pelo art. 5º da Constituição, bem como se lhes aplicam as consequências da adoção do princípio da dignidade da pessoa humana. Ademais, incide também em matéria indígena o que a doutrina chama de princípio da proteção da identidade, ou de direito à alteridade, ou seja, de ser diferente. A nosso ver, há mais um princípio na Constituição, que é o da máxima proteção aos índios, do qual deveria o in dubio pro indígena bem como a conclusão de que as normas protetivas que o texto constitucional consagra representam um standart mínimo que pode ser ampliado pela legislação ordinária.

(…)

O impacto dessa guinada constitucional nas relações jurídicas envolvendo os índios no Brasil é enorme. A Constituição, adotando uma postura de respeito à diversidade cultural brasileira, assegura o direito de os índios serem e permanecerem diferentes, afastando a possibilidade de qualquer forma de discriminação, como decorrência direta da liberdade e da igualdade. É o  princípio da proteção da identidade, já mencionado retro. Está constitucionalmente vedado qualquer entendimento jurídico que implique em afirmar direta ou indiretamente a superioridade cultural da sociedade envolvente em relação aos grupos indígenas. Isso significa que o modo de ser e de viver dos índios deve ser respeitado e protegido, e não destruído, sendo-lhes garantido o pleno exercício dos seus direitos culturais. É dever do Estado não só proteger as manifestações culturais indígenas como também apoiar e incentivar a valorização e a difusão das mesmas, consoante determina o art. 215 e seus parágrafos da Constituição de 1988, a qual, de resto, ainda que implicitamente no art. 216, inclui a cultura indígena no patrimônio cultural brasileiro. Tais determinações conferem uma maior visibilidade a essas populações.

O texto brasileiro atual se alinha ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos, que nas últimas décadas buscou assegurar a igualdade material a partir de uma visão de justiça que exige não só a redistribuição econômica, mas também o reconhecimento das identidades. Importante deixar claro, assim, que o direito constitucional indigenista brasileiro encerra normas que possuem natureza de direitos fundamentais. Como se sabe, o catálogo constitucional de direitos fundamentais é aberto, não se limitando às disposições constantes do Título II, conforme deixa claro o §2º do art. 5º. O que importa para se atestar a fundamentalidade de um direito é a sua imprescindibilidade à realização da dignidade humana. E a dignidade das pessoas que compõem os povos indígenas depende diretamente da satisfação dos direitos que a Constituição lhe confere. (…)” (grifos finais nosso). (ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Breve balanço dos direitos das comunidades indígenas: alguns avanços e obstáculos desde a Constituição de 1988. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 2, n. 8, out./dez.2008. Disponível em :http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=56008. Acesso em: 3 jul. 2013.

A tramitação e eventual aprovação da hostilizada proposta de emenda constitucional terá o condão de fazer com que o direito dos indígenas à permanência nas terras que ocupam desde tempos imemoriais e após regular homologação pelo Poder Executivo, fique condicionada à não afetação dos interesses econômicos e políticos de Estados membros e dos particulares (fazendeiros, madeireiros, comerciantes, investidores diversos etc).

A só tramitação da PEC 215/2000 e sua eventual aprovação significará o esvaziamento por completo do rol das garantias mínimas hoje existentes para os índios, podendo acarretar ou inviabilizar a vedação de novas demarcações e, o que é mais grave, a própria extinção das populações indígenas no País num espaço de tempo bastante reduzido.

Na verdade, a PEC 215/2000 fundamenta-se numa premissa assaz equivocada, quando admite submissão do direito dos índios à ocupação e permanência nas terras que originalmente ocupam aos interesses, declarados na fundamentação da PEC, dos Estados Membros e à toda evidência, de particulares economicamente interessados na exploração das referidas terras.

Entretanto, sobre essas terras e em face dos direitos das populações indígenas, não tem o legislador constituinte derivado qualquer margem de liberdade para alterar essa realidade constitucional insculpida no art. 231 da Constituição Federal que, como dito, constitui-se apenas num estatuto mínimo de proteção da existência e da própria sobrevivência das populações indígenas no País.

É o que afirma o constitucionalista Tércio Sampaio:

 “(…)

O art. 231 da CF fala em direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.

Trata-se de direitos subjetivos, reconhecidos (‘São reconhecidos aos índios…’). Ao reconhece-los, não os cria, mas os aceita tal como preexistiam. A formulação não deixa de ser ambígua, posto que implicaria, de um lado, o uso de uma expressão cuja formação é própria da cultura ocidental (direito subjetivo, direito natural) e, de outro, sua aplicação a uma situação subjetiva própria, que não se confunde com aquela conformação dada pela civilização. Na verdade, o que se reconhece é um direito num sentido transposto, uma situação jurídica de contornos dados pela noção técnica, de cultura ocidental, de diversidade. Trata-se da afirmação da capacidade humana de reger o próprio destino, expressando sua singularidade, ser distinto entre seus iguais. De um lado, direito num sentido desenvolvido pela técnica jurídica civilizada, mas esclarecido conforme o modo de ser dos índios.

Nesse sentido, tais direitos não são estruturalmente diferentes dos direitos fundamentais do art. 5º, da CF, estes também, como afirma dominantemente a doutrina, reconhecidos. Portanto, não se lhes sobrepõem nem lhes são subordinados, mas equiparam-se a eles em dignidade. No particular, têm a ver com a proscrição da discriminação e a proteção das minorias.

Tais direitos são originários. Não se trata de direitos adquiridos, pois não pressupõem uma incorporação ao patrimônio (econômico e moral), embora, ressalvadas as peculiaridades constitucionais, devam ser tratados em harmonia com esses. Cabe aqui a mencionada noção de indigenato, entendido por João Mendes Junior como título distinto da ocupação (ob.cit., p. 49) e que tem por base a noção de habitat, equilíbrio ecológico entre o homem e seu meio. Nesse sentido, não é fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como fato posterior depende de requisitos que o legitimem. (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A demarcação de terras indígenas e seu fundamento constitucional. Revista Brasileira de Direito Constitucional. N. 3 – Jan./Jun. – 2004).

A Proposta de Emenda Constitucional nº 215/2000 objetiva relativizar aquilo que a Constituição Federal diz que não pode ser relativizado, ou seja, o rol, catalogado ou não, dos direitos e garantias fundamentais que balizam a dignidade humana, cerne de todo o texto da Carta Federal, titularizado, no caso das populações indígenas, através do art. 231 da Constituição Federal.

A relevância protetiva do art. 231 da Constituição Federal para os índios e a inviabilidade de se modificar esse núcleo essencial já foi objeto de diversas manifestações desse Egrégio Supremo Tribunal Federal que, muito embora ainda não tenha declarado sua natureza de cláusula pétrea, tem-se pronunciado no sentido da sua alta relevância, como afirmado, para assegurar a própria existência das populações indígenas no Brasil.

Com efeito, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 183.188-0/MS, o Ministro Celso de Mello (Relator) expressou toda a importância do art. 231 da Constituição Federal e do seu papel de suporte da própria sobrevivência dos índios em nossa Nação. Destaca-se, pela relevância, alguns excertos desse voto:

“(…)

                     A Carta Política, na realidade, criou, em seu art. 231, §1º, uma propriedade vinculada ou reservada, destinada, de um lado, a assegurar aos índios o exercício dos direitos que lhes foram outorgados constitucionalmente (CF, art. 231, §§2º, 3º e 7º) e, de outro, a proporcionar às comunidades indígenas bem-estar e condições necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (CF, art. 231, caput e seu §1º).

                     Daí a advertência de LUIZ FELIPE BRUNO LOBO (‘Direito Indigenista Brasileiro’, p. 53, 1996, Ltr, para quem A propriedade das terras indígenas outorgadas à União nasce com o objetivo de mantê-las reservadas a seus legítimos possuidores. Há um vínculo indissociável entre a reserva a que se destina e a natureza desta propriedade. Por esta razão são terras inalienáveis, indisponíveis, inusucapíveis e os direitos sobre elas são imprescritíveis’. (grifei).

                     Emerge claramente do texto constitucional que a questão da terra representa o aspecto fundamental dos direitos e das prerrogativas constitucionais assegurados ao índio, pois este, sem a possibilidade de acesso às terras indígenas, expõe-se ao risco gravíssimo da desintegração cultural, da perda de sua identidade étnica, da dissolução de seus vínculos históricos, sociais e antropológicos e da erosão de sua própria percepção e consciência como integrante de um povo e de uma nação que reverencia os locais místicos de sua adoração espiritual e que celebra, neles, os mistérios insondáveis do universo em que vive.

                     É por essa razão – salienta JOSÉ AFONSO DA SILVA (‘Curso de Direito Constitucional Positivo’, p. 780, item n. 3, 12ª ed., 1996, Malheiros) – que o tema concernente aos direitos sobre as terras indígenas transformou-seno ponto central dos direitos constitucionais dos índios’, eis que, para eles, a terra ‘tem um valor de sobrevivência física e cultural’. É que – prossegue o eminente constitucionalista – não se ampararão os direitos dos índios ‘se não se lhes assegurar a posse permanente e a riqueza das terras por eles tradicionalmente ocupadas, pois a disputa dessas terras e de sua riqueza (…) constitui o núcleo indígena hoje do Brasil’(grifei).

                     A intensidade dessa proteção institucional revela-se tão necessária que o próprio legislador constituinte pré-escluiu do comércio jurídico as terras indígenas, proclamando a nulidade e declarando a extinção de atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse de tais áreas, considerando, ainda, ineficazes as pactuações negociais que visem a exploração das riquezas naturais nelas existentes, sem possibilidade de quaisquer consequências de ordem jurídica, inclusive aquelas concernentes à recusa constitucional do direito à indenização ou do próprio acesso a ações judiciais contra a União Federal, ressalvadas, unicamente, as benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (CF, art. 231, §6º).

                     Cumpre ter presente, por isso mesmo, a correta advertência feita por DALMO DE ABREU DALLARI (‘O que são Direitos das Pessoas’, p. 54/55, 1984, Brasiliense):

                     ‘(…) ninguém pode tornar-se dono de uma terra ocupada por índios. Todas as terras ocupadas por indígenas pertencem à União, mas os índios têm direito à posse permanente dessas terras e a usar e consumir com exclusividade todas as riquezas que existem nelas. Quem tiver adquirido, a qualquer tempo, mediante compra, herança, doação ou algum outro título, uma terra ocupada por índios, na realidade não adquiriu coisa alguma, pois estas terras pertencem à União e não podem ser negociadas. Os títulos antigos perderam todo o valor, dispondo a Constituição que os antigos titulares ou seus sucessores não terão direito a qualquer indenização’. (grifei).

                     É por tal razão que já se decidiu, no regime constitucional anterior – em que havia norma semelhante (CF/69, art. 198,§1º) à que hoje se acha consubstanciada no art. 231, §6º da Carta Federal de 1988 – que a existência de eventual registro imobiliário de terras indígenas em nome de particular qualifica-se como situação juridicamente irrelevante e absolutamente ineficaz, pois, em tal ocorrendo, prevalece o comando da norma constitucional referida, ‘que declara nulos e sem nenhum efeito jurídico atos que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas por silvícolas’. (Revista do TFR, vol. 104/237).   

 

Diante de tudo quanto destacado, afirma o Impetrante que o artigo 231 da Constituição Federal constitui-se como cláusula pétrea fora de catálogo, e portanto está inserido na vedação inscrita no artigo 60, §4, IV da Constituição Federal, de modo que a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional nº 215/2000 deve ser obstada no âmbito da Câmara dos Deputados. É o objetivo divisado com a impetração deste mandamus.

IV – O tratamento constitucional da questão indígena nas constitucionais brasileiras e o atual processo demarcatório que assegura, em plenitude, os direitos constitucionais da população indígena.

A Ampla proteção constitucional que o legislador constituinte originário de 1988 deferiu às populações indígenas representa o reconhecimento da Nação brasileira acerca da importância dessa comunidade para a formação do nosso País e de nossa população e, também, a admissão de que historicamente a Nação vinha sendo negligente no reconhecimento dos direitos inerentes a esse povo.

Sobre a evolução constitucional afeta à questão indígena no País, Edson Ferreira de Carvalho assevera:

“(…)

A Constituição Brasileira de 1934 determinava que fosse respeitada a posse de terras dos silvícolas nelas permanentemente localizados, vendando à alienação das mesmas. A Constituição de 1934 reconheceu, que, sendo os silvícolas os primeiros ocupantes das terras, em caráter permanente,  não se poderia turbar a posse mansa e pacífica, tradicionalmente mantida por eles. Ao não poder alienar suas terras, era lhes outorgado o direito ao usufruto. Essa vedação, na concepção da época, visava proteger os nativos, impedindo que viessem a ser ludibriados pelos compradores, uma vez que os silvícolas não possuíam discernimento o bastante para negociarem.

A Constituição de 1946, em seu art. 216, impôs igualmente o respeito à posse das terras indígenas, estatuindo que seria respeitada a posse das terras indígenas, onde esses povos se achassem permanentemente localizados com a condição de não a transferirem. Assim, desde que houvesse posse e localização permanente, a terra pertenceria aos silvícolas, sendo vedada alienação de terras por parte deles. Dessa forma o art. 216 reconheceu a posse imemorial dos donos das terras indígenas e dos sucessores daqueles que primeiro a povoaram.

A Constituição Federal de 1967, em seu art. 186, igualmente assegurou aos indígenas a posse permanente das terras por eles habitadas. Declarou, no art. 198, sua inalienabilidade, outorgando-lhes a sua posse permanente e o reconhecimento do direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes. Essa Constituição foi mais adiante ao estabelecer que, se provado que os indígenas tivessem sido expulsos da terra, à força ou não, não se poderia admitir que houvessem perdido a posse, nem mesmo podiam desistir de tê-la como própria. Entretanto, como seres humanos tutelados, pouco os índios puderam fazer para defender, juridicamente, sua posse.

As Constituições acima citadas apresentavam uma visão bastante redutora, uma vez que só contemplava a posse do silvícola, considerado aquele que habitava a selva. Ora se índio é todo descendente indígena, seja silvícola ou não, a posse do índio foi deixada ao arbítrio da legislação ordinária (FALCÃO, 1995).

A Constituição Federal de 1988 assegura, no caput do art. 231, os direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, que são aquelas por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (§1º do art. 231).

A Carta de 1988 consagrou aos índios os direitos originários sobre as terras por eles ocupadas tradicionalmente. Segundo Santilli (2000), isso significa que os direitos indígenas sobre essas terras são considerados primários e congênitos, pois são anteriores à própria criação do Estatuto brasileiro. Na visão da autora, esse direitos independem de legitimação ou qualquer reconhecimento formal por parte do próprio Estado. São direitos legítimos por sei e não se confundem com direitos adquiridos. Nesse caso, quando os direitos de propriedade e uso dos povos indígenas originam de direitos preexistentes à existência dos Estados, estes deverão reconhecer ditos títulos como permanentes, exclusivos, inalienáveis e imprescritíveis. (…)” (CARVALHO, Edson Ferreira de. A tutela jurídica das terras indígenas no ordenamento jurídico brasileiro. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 5, n. 29, set./out. 2006. Disponível em http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=37936. Acesso em: 3 jul.2013.)

Acertadamente, o Juiz Federal de Bauru/SP, no artigo “A Proteção dos Direitos dos Índios (http://6ccr.pgr.mpf.mp.br/documentos-e-publicacoes/docs_artigos/A_Protecao_dos_Direitos_dos_Indios.pdf – acesso em 22 jul. 2013), afirma o seguinte:

“A Constituição de 1988 assegurou aos índios o direito à diferença, o direito dos índios receberem tratamento diferenciado, é dizer, a Constituição reconhece aos índios direito de terem cultura diferente, relações diferentes e direitos diferentes. A Constituição reconheceu multietnicidade do país, rompeu e relativizou a postura universal predominante excludente das diferenças, imposta por regras fundadas em ideologia homogeneizante, criadoras do sujeito abstrato, individual e formalmente igual. (…) O desafio atual não mais se relaciona à inclusão jurídica, ao reconhecimento dos direitos indígenas, mas com a real e efetiva aplicação dos direitos já consagrados. (…)”

A proposta de emenda constitucional ora questionada promove, nessa seara, como já afirmado ao norte, um grande retrocesso no caminho constitucional percorrido pela Nação brasileira em relação à proteção dos índios existentes em nosso território.

No que diz respeito ao processo demarcatório, cerne da Proposta de Emenda Constitucional nº 215/2000, o ataque aos direitos fundamentais das populações indígenas é ainda mais agressivo, na medida em que submete os interesses da referida população aos interesses particulares, econômicos, políticos, de Estados e do capital econômico (fazendeiros, grandes produtores rurais, madeireiros, garimpos etc).

O processo demarcatório atual, conquanto ainda não atenda em plenitude as garantias fundamentais asseguradas aos índios no texto constitucional, promovem uma relativa proteção a tais direitos, que serão suplantados com a eventual aprovação da proposta de emenda constitucional nº 215/2000.

Pela pertinência, fazemos um breve destaque do processo demarcatório atual:

“(…)

Procedimento demarcatório

Compete à União demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas (CF, art. 231). Tal procedimento é exclusivamente administrativo, a ser desempenhado pelo Poder Executivo Federal.

A regulamentação jurídica do procedimento de demarcação de terras indígenas se encontra no art. 19 da Lei nº 6.001/73 – Estatuto do Índio – e Decreto nº 1.775/96.

Diz o Estatuto do Índio:

              Art. 19 As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo.

              §1º A demarcação promovida nos termos deste artigo, homologada pelo Presidente da República, será registrada em livro próprio do Serviço do Patrimônio da União (S.P.U) e do registro imobiliário da comarca da situação das terras.

              §2º Contra a demarcação processada nos termos deste artigo não caberá a concessão do interdito possessório, facultado aos interessados contra ela recorrer à ação petitória ou à demarcatória.

Em síntese, conforme o disposto no Decreto nº 1.775/96, o procedimento de demarcação dá-se da seguinte maneira:

– a orientação do procedimento é feita pela FUNAI, por ser o atual órgão federal de assistência ao índio (art. 1º);

– há participação necessária do grupo indígena envolvido (art. 2º, §3º); e participação voluntária dos Estados e Municípios em que se localize a área sob demarcação, bem como demais interessados, pessoas naturais ou jurídicas (art. 2º, §8º);

– a base para a demarcação será um estudo antropológico de identificação das terras, feito por antropólogo de qualificação reconhecida, designado pelo presidente da FUNAI (art. 2º);

– paralelamente ao estudo antropológico, a FUNAI deve designar grupo técnico especializado, composto preferencialmente por servidores do próprio quadro-funcional, coordenado por antropólogo, com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação (art. 2º, §1º);

– concluídos os trabalhos de identificação e delimitação o grupo técnico deverá apresentar relatório circunstanciado ao presidente da FUNAI (art. 2º, §6º);

– sendo o relatório aprovado pelo presidente da FUNAI, este determinará a publicação no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localizar a área sob demarcação, acompanhado de memorial descritivo e mapa da área, devendo a publicação ser afixada na sede da Prefeitura Municipal da situação do imóvel (art. 2º, §7º);

– concluído o procedimento, na FUNAI, os autos são remetidos ao Ministro da Justiça, que, em 30 dias, decidirá: 1) pela aprovação de suas conclusões, o que fará mediante portaria; 2) ou pela requisição de novas diligências; 3) ou pela sua rejeição (art. 2º, §§9º e 10);

em caso de aprovação pelo Ministro da Justiça, a demarcação das terras indígenas será homologada mediante decreto do presidente da República (art. 5º);

– por fim, far-se-á a promoção do registro em cartório imobiliário da comarca correspondente e na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Fazenda (art. 6º).

Impossibilidade de remoção dos índios de suas terras

As comunidades indígenas sentem-se integrantes das terras que ocupam, numa interação harmoniosa. Assim, reconhecendo o seu direito às suas tradições e cultura, em geral, o constituinte estabeleceu, mais uma vez no art. 231, §5º a sua inamovibilidade:

§5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ‘ad referendum’ do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

Sejam postos em destaque, todavia, os requisitos exigidos para a remoção excepcional:

– em caso de catástrofe ou epidemia, que ponha em risco sua população, mediante decreto do Poder Executivo, submetido a referendo, pelo Congresso Nacional;

– no interesse da soberania do País, mediante deliberação do Congresso Nacional.

(GAZOTO, Luís Wanderley. Terras Indígenas. Universitas JUS, Brasília, n. 13, p. 155-172, jan./jun. 2006).

Em brilhante artigo versando sobre os direitos naturais das comunidades indígenas às terras que originalmente ocupam e a relevância constitucional de se manter a higidez do atual artigo 231 da Constituição Federal, o ex-Ministro Ilmar Galvão assevera com grande propriedade:

 “(…)

2. PRIMEIRA LEI DE TERRAS. TERRAS DEVOLUTAS.

(…)

Entre as terras concedidas pelo Governo, antes da referida Lei n. 601/1859, contavam-se as terras ocupadas pelos índios.

Com efeito, trata-se de terras acerca das quais D. Pedro, Príncipe de Portugal e dos Algarves, como Regente e sucessor, determinou, ‘para que os … Gentios… melhor se conservem nas Aldêas’, pelo ‘Alvará do 1º de Abril de 1680’, in verbis:

  ‘Hei por bem, que sejão senhores de suas fazendas, como o são no Sertão, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre elas se lhes fazer moléstia. E o Governador… assignará aos que descerem do Sertão, lugares convenientes para nelles lavrarem e cultivarem; e não poderão ser mudados dos ditos lugares contra sua vontade, nem serão obrigados a pagar foro, ou tributo algum das ditas terras, ainda que estejão dadas em sesmarias a pessoas particulares, porque na concessão destas se reserva sempre o prejuízo de terceiro, e muito mais se entende, e quero se entenda ser reservado o prejuízo e direito dos Índios, primários e naturaes senhores delas.’…sustentando-se os Índios, a cujo favor se fizerem as ditas demarcações, no inteiro domínio e pacífica posse das terras, que se lhes adjudicarem para gozarem delas per si e todos seus herdeiros.’

3. O INDIGENATO

Por meio do Alvará sob enfoque – expedido inicialmente para o ‘Estado do Grão-Pará e Maranhão’ e, posteriormente, estendido a toda a Colônia, por alvará de 08 de maio de 1758, de D. José, Rei de Portugal e Algarves – foi reconhecido aos índios o domínio sobre as terras por eles habitadas.

Trata-se, aí, da figura do indigenato que, diferentemente da ocupação, não estava sujeita à legitimação, visto cuidar-se de título congênito, ao passo que a ocupação era título adquirido, como esclarece João Mendes Júnior, nestes termos:

       ‘Não quero chegar até o ponto de afirmar, como P.J. Proudhon, nos Essais d’une philos. Populaire, que – ‘’o indigenato é a única verdadeira fonte jurídica da posse territorial’’; mas, sem desconhecer as outras fontes, já os philosophos gregos afirmavam que o indigenato é um título congênito, ao passo que a ocupação é um título adquirido. Conquanto o indigenato não seja a única verdadeira fonte jurídica da posse territorial, todos reconhecem que é, na frase do Alv. De 1º de Abril de 1680, ‘a primária, naturalmente e virtualmente reservada’, ou, na frase de Aristóteles (Polít., I, n. 8), – ‘um estado em que se acha cada ser a partir do momento do seu nascimento’. Por conseguinte, o indigenato não é um facto dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como facto posterior, depende de requisitos que a legitimem’.

Procurando traduzir o significado, para os índios, das terras por eles ocupadas, ou, mais precisamente, o espírito do indigenato, Carlos Minc, citado por Luís Felipe Bruno, transcreve parte da resposta enviada ao Presidente dos Estados Unidos pelo Chefe da Nação Seattle, em face da proposta de aquisição de parte do território por eles ocupado, a qual, por oportuno, vale aqui transcrever:

                   ‘Como se pode comprar ou vender o firmamento, ou ainda o calor da terra? Tal idéia nos é desconhecida (…) Somos parte da terra, do mesmo modo que ela é parte de nós próprios. As flores, o urso e a águia são nossos irmãos (…). Sabemos que o homem branco não compreende nosso modo de vida porque ele vê um estranho que chega de noite e tira da terra o que ele necessita (…). Trata sua mãe, a terra, e a seu irmão, o firmamento, como objetos que se compram, se exploram e se vendem (…) o seu apetite devorará a terra, deixando atrás de si só o deserto. (…) só de ver as vossas cidades, entristecem-se os olhos do pele vermelha. (…) o homem branco não parece estar consciente do ar que respira; como um moribundo que agoniza durante muitos dias é insensível ao mau cheiro (…). Tudo quanto acontecer |à terra continuará aos filhos da terra (…) isto sabemos: a terra não pertence aos homens: os homens pertencem à terra’ (América, 1854)”

4.AS RESERVAS INDÍGENAS

A Lei n. 601/1850, ao tempo em que excluiu dentre as terras devolutas as que haviam sido objeto de concessão, no art. 12, mandou reservar ‘as que julgar necessárias: 1º, para a colonização dos indígenas’.

Assim, além das terras onde se achavam permanentemente localizados, cujo domínio foi reconhecido aos índios pela Coroa Portuguesa, como primários e naturais senhores delas, restaram instituídas pela referida lei as reservas indígenas.

O Decreto n. 1.318, de 30.01.1854, que regulamentou a Lei n. 601/1950, dispôs, no art. 23, que ‘os que tiveram terras havidas por sesmarias e outras concessões… não têm precisão de revalidação, nem de legitimação, nem de novos títulos…’, estabelecendo, ainda, nos arts. 72, 74 e 75, que ‘as terras reservadas para colonização de indígenas, e por eles distribuídas, são destinadas ao seu usufruto’.

Fora de dúvida, portanto, que essas terras, quer as da primeira espécie, quer as da segunda, enquanto habitadas pelos índios, não se incluíam entre as terras devolutas, visto, no primeiro caso, haverem sido reconhecidas pela Coroa como pertencentes aos índios, como ‘primários e naturais senhores delas’ e, no segundo, terem sido destinadas ao usufruto dos aborígenes.

5.ALDEAMENTOS E RESERVAS INDÍGENAS EXTINTAS. REDUÇÃO DAS TERRAS À CONDIÇÃO DE DEVOLUTAS.

É certo que, ao longo do tempo, foi ocorrendo a extinção de antigos aldeamentos e, consequentemente, o abandono das antigas ocupações e reservas pelos indígenas, seja por haverem passado a integrar o meio civilizatório, seja por efeito da expulsão e, mesmo, de dizimação, determinada, em alguns casos, por ordem do próprio Governo, como a contida nas Cartas Régias de 1808, 1809 e 1811, de D. João VI, contra os Botocudos.

(…)

Vê-se, portanto, que somente foram arrecadadas, como terras devolutas, os aldeamentos extintos ou as reservas abandonadas, permanecendo o remanescente das terras da primeira espécie como de domínio dos índios e, as da segunda, como terras públicas afetadas a um objetivo de interesse público.

(…)”

(GALVÃO, Ilmar – Ministro aposentado do STF – Terras Indígenas. Doutrina do Superior Tribunal de Justiça – Edição Comemorativa – 15 anos – 2005 – Brasília – DF).

A reforçar tudo quanto se afirma:

“(…)

Para os povos indígenas, a terra é muito mais do que simples meio de subsistência ou uma propriedade, na medida em que representa o suporte da vida social e está direta e ontologicamente ligada ao sistema de crenças e conhecimento. Não é apenas um recurso natural, mas sócio-cultural.

Como afirmava Orlando Villas-Boas, citado pro Samia Borges Jordy Barbieri: ‘O índio só sobrevive em sua própria cultura’.

Desse modo, a terra para esses povos não é apenas um bem material, mas um elemento indispensável de sobrevivência.

Em recente artigo sobre o tema, Christian Courtis nos lembra que:

La tierra constituy uno de los rasgos identificatorios de los pueblos y comunidades indígenas definitórios de su modo de vida y sua cosmovisión. La tierra tiene, para los pueblos y comunidades indígenas, um significado religioso, y constituye aldemas la base de sua Deconomia, que está pautada generalmente por los ciclos de la naturaleza. Una cararacteristica particular de las reivindicaciones indígenas sobre la tierra es el reclamo de su propriedade coletiva, a nombre del Pueblo ou la comunidade como sujeto titular; y no em términos de propriedade individual de los miembros da la comunidade. Por otro lado, no resulta difícil advertir que, em América Latina, la tierra ancestral de los pueblos y comunidades indígenas ha sido objeto frecuente de despojo y de expoliación por parte de autoridades estatales y de terceiros. La estrecha relación de los pueblos e comunidades indígenas com la tierra há llevado a señalar que ele reconocimiento de sua propriedade colectiva constituye una condición para la misma supervivencia de aqullos publos o comunidades’.

(…)

Como lembra Lásaro Moreira da Silva o Texto Constitucional impõe à União o dever de proteger os direitos indígenas para que eles possam continuar existindo com seus costumes, línguas e tradições, reconhecendo-lhes sua organização social, admitindo a existência no Brasil de povos culturalmente diferenciados e autônomos, ‘porque a vontade do texto constitucional não é de considerar a igualdade formal dos índios, abandonando-os à própria sorte na selva capitalista, em que imperam a ambição desenfreada, a busca da lucratividade a qualquer custo’, mas de protege-los respeitando as suas normas e os seus valores culturais o que, como lembrou mais uma vez o Ministro Gilmar Mendes no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, o Estado não tem cumprido deixando os indígenas ‘jogados à própria sorte’. (…)

(LIMA FILHO, Frranciso das C. O Dever Constitucional de o Estado Brasileiro Demarcar as Terras Indigenas. Revista Juridica UNIGRAN. Dourados, MS. V. 11, n. 22, jul./Dez. 2009.)

Não há, desta feita, no rol dos direitos fundamentais expressos e implícitos no texto da Constituição Federal guarida para a tramitação e quiçá, a eventual aprovação da proposta de emenda constitucional nº 215/2000.

V- Da Vedação retrocesso social.

A simples tramitação da PEC nº 215/2000 já promove, como se vislumbra acima, um verdadeiro retrocesso social no que diz respeito aos direitos das populações indígenas às terras que originalmente ocupam, relativizando com a mesma intensidade, o rol de proteção existente no texto constitucional em relação às populações indígenas.

A vedação ao retrocesso social constitui-se num princípio implícito da Constituição Federal, cuja finalidade é a proteção e efetiva concretização dos direitos fundamentais, especialmente aqueles vinculados à dignidade humana, em toda a sua extensão.

Com efeito, conforme afirmado acima, o art. 231 da Constituição Federal veicula apenas um núcleo mínimo de proteção dos direitos das populações indígenas.

A ora contestada proposta de emenda constitucional nº 215/2000 rompe com a higidez desse núcleo protetivo mínimo existente na Constituição Federal em relação às populações indígenas, permitindo, por exemplo, que a demarcação de terras historicamente reivindicadas pelos índios, que vierem a ser realizadas pelo Poder Executivo, possam ser inviabilizadas pela não homologação do Congresso Nacional, se em seu juízo político tal decisão puder interferir, de alguma forma, nos interesses de Estados das unidades da federação ou quiçá dos interesses econômicos de particulares.

Vê-se então que as normas de proteção hoje existente em relação aos direitos fundamentais das populações indígenas, cuja efetivação ainda demanda longo caminho em nosso País, poderão ser consideravelmente reduzidas com a aprovação da PEC, promovendo-se um inconstitucional retrocesso social nos direitos e garantias dos índios que habitam o território nacional.

A Constituição Federal abarca claramente o princípio e, nessa quadra, veda a promoção de retrocesso social na ordem constitucional vigente, notadamente na temática dos direitos fundamentais. Nesse sentido:

“(…)

                   No plano doutrinário, inicia-se pela profícua lição de Luis Roberto Barroso que tem influenciado o cenário jurídico nacional. O notável constitucionalista se manifestou sobre o princípio da proibição de retrocesso social, in verbis:

            ‘[…] Por este princípio, que não é  expresso, mas decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser arbitrariamente suprimido.

                     A noção de proibição de retrocesso social tem sido reconduzida à idéia que JOSÉ AFONSO DA SILVA apresenta como sendo um direito subjetivo negativo, no sentido de que é possível impugnar judicialmente toda e qualquer medida que se encontre em conflito com o teor da Constituição (inclusive com os objetivos estabelecidos nas normas de cunho programático), bem como rechaçar medidas legislativas que venham subtrair supervenientemente a uma norma constitucional o grau de concretização anterior que lhe foi outorgado pelo legislador.

                     Vale assinalar a posição de INGO WOLFGANG SARLET, segundo o qual, apoiado nas lições de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, as normas constitucionais que reconhecem direitos sociais de caráter positivo implicam uma proibição de retrocesso, pois uma vez dada satisfação ao direito, este se transforma em direito negativo ou direito de defesa, ou seja, num direito a que o Estado se abstenha de atentar contra ele (ao adotar medidas de cunho retrocessivo que tenham por escopo a sua destruição ou redução).

           FELIPE DERBLI aduz que o princípio da proibição de retrocesso social é um princípio constitucional, com caráter retrospectivo, na medida em que se propõe a preservar um estado de coisas já conquistado contra a sua restrição ou supressão arbitrária. E, além disso, consigna que o princípio em tela não se traduz numa mera manutenção do status quo, antes significando também a obrigação de avanço social.

                     E, ainda, segundo INGO WOLFGANG SARLET, a proibição de retrocesso não se restringe aos direitos sociais fundamentais, estendendo-se, na verdade, a todos os direitos fundamentais, muito embora sua repercussão seja maior na aplicação das normas que concernem aos propósitos constitucionais de justiça social. Para ele, o princípio da proibição de retrocesso social decorre implicitamente do ordenamento constitucional brasileiro, o qual se infere, segundo o jurista, designados princípios e argumentos de matriz jurídico-constitucional a seguir parafraseados, notadamente:

a)       Do princípio do Estado Democrático e Social de Direito que impõe um nível mínimo de segurança jurídica, a que necessariamente abarca a proteção da confiança e a manutenção de um padrão mínimo de segurança contra medidas retroativas e atos retrocessivos em geral;

b)       Deriva do princípio da dignidade da pessoa humana que ao exigir medidas positivas do Estado em favor dos particulares (que se apresentam primordialmente por meio dos direitos sociais fundamentais), com vistas na existência digna de todos, tem como reflexo, na sua perspectiva negativa, a impossibilidade de medidas que se situem abaixo do nível mínimo;

c)       Do princípio da máxima eficácia e efetividade dos direitos fundamentais (art. 5º, §1º, da CF/1988) e que essencialmente abrange também a maximização da proteção dos direitos fundamentais. Logo, a otimização da eficácia e da efetividade do direito à segurança jurídica envolverá também a proteção contra medidas de cunho retrocessivo.

d)       Das normas constitucionais expressamente dedicadas à proteção contra a retroatividade (entre as quais se inclui a salvaguarda) do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada) São insuficientes para alcançar todas as situações que integram uma noção mais ampla de segurança jurídica.

e)       Do princípio da proteção da confiança, como elemento nuclear do Estado de Direito, impõe ao Poder Público o respeito à confiança depositada pelos indivíduos da certa estabilidade e continuidade da ordem jurídica no todo em das relações especificamente clarificadas.

f)        O Estado, precipuamente, como corolário da segurança nuclear e da proteção da confiança, vincula-se não apenas às imposições constitucionais, mas também se submete à certa altura aos órgãos legislativo, como também aos executivos e jurisdicionais.

g)       Negar a existência do princípio da proibição de retrocesso social significaria dizer que o legislador, apesar de estar inquestionavelmente vinculado aos direitos fundamentais e às normas constitucionais poderia livremente decidir em flagrante contrariedade às prescrições do Poder Constituinte ao frustrar a efetividade da Constituição.

h)       Do sistema internacional, especialmente no plano dos direitos econômicos, sociais e culturais, o que impõe a progressiva realização efetiva da proteção social pelos Estados e que, implicitamente, está vedado o retrocesso em matéria de direitos sociais já concretizados.

Logo, INGO WOLFGANG SARLET entende que o princípio da proibição de retrocesso social também deflui (deriva) diretamente do princípio constitucional da maximização da eficácia dos direitos fundamentais (art. 5º, §1º, da CF/1988). Segundo ele, o princípio em comento assume feições de verdadeiro princípio constitucional fundamental implícito, o qual pode ser reconduzido ao princípio do Estado de Direito (na esfera de proteção da confiança e da estabilidade das relações jurídicas concernente à segurança jurídica) quanto ao princípio do Estado Social (voltado para a salvaguarda da manutenção dos padrões mínimos de segurança social alcançados).

ANA CRISTINA COSTA MEIRELES, na esteira dos raciocínios expendidos acima, ressalta com acerto que o princípio da proibição de retrocesso social pode ser subsumido (concebido, acolhido) do nosso sistema constitucional que agasalhou o modelo de Estado de Bem-Estar Social. Este tem como um dos princípios gerais de direito a possibilidade de contagiar todas as suas normas, o princípio da segurança, o qual pode ser buscado, de forma expressa, no preâmbulo da Constituição e no caput do art. 5º, além de outros dispositivos constitucionais específicos que o desenvolvem (art. 5º, II, XXXVI, XXXIX, XK, XLV a XLVIII, LI e LII, LIV e LV, bem como o art. 6º, que, como desenvolvimento do princípio geral da segurança, refere-se à segurança social). (CARVALHO, Osvaldo Ferreira e COSTA, Eliane Romeiro. A Segurança Jurídica e o Princípio da Proibição de Retrocesso Social na Ordem Jurídico-Constitucional Brasileira. Revista de Direito Social – Ano VIII – Jul./Set. 2008 – nº 31).

Na mesma perspectiva são os textos abaixo:

“(…)

O garantismo negativo apresenta-se como a proibição de excesso, e o garantismo positivo, como a adequação e a necessidade de proteção do mínimo existencial, isto é, como a proibição de proteção deficiente. Essa relação pode se extrair das palavras de Bernal Pulido (2007, p. 807): ‘na dogmática alemã já é bem conhecida a distinção entre duas versões distintas do princípio da proporcionalidade: a proibição de excesso (Übermabverbot) e a proibição de proteção deficiente (Üntermabverbot)’. Portanto, é possível explicar a proibição de retrocesso social através dos postulados da proibição de proteção deficiente e da proibição de excesso. Pela proibição de proteção deficiente tem-se que o Estado, mediante suas prestações sociais (políticas públicas) tem o dever de procurar maximizar o mínimo existencial, ou, por outra, tornar máxima a efetividade dos direitos minimamente exigíveis, de maneira que aquilo que já foi garantido ou concretizado não pode vir a ser suprimido ou limitado por qualquer ato estatal, isto é, não se podem utilizar medidas retroativas. E, pela proibição de excesso, é vedado ao Estado utilizar meios de caráter retrocessivo, que, embora não atinjam aqueles direitos que já foram concretizados, possam promover uma involução social, porque houve uma intervenção na sociedade além do que era necessário (BARNES, 1994, p. 510).

Portanto, a proibição do retrocesso social consiste em que o Estado não pode se furtar dos deveres de concretizar o mínimo existencial, de maximizá-lo e de empregar os meios ou instrumentos cabíveis para sua promoção, sob pena de a sociedade vir a experimentar uma imensa limitação no exercício de todos os seus direitos”. (HOMEM DE SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro. Da reserva do possível e da proibição de retrocesso social. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Jul./Ago./Set. 2010, v. 76, n. 3 – ano XXVIII).

“(…)

A doutrina não se reconduz apenas a garantir o denominado ‘mínimo existencial’, mas também vincula a ‘proibição do retrocesso’ à garantia do núcleo essencial de direitos. Esta ideia de proteção contra restrições a direitos fundamentais encontra guarida na já clássica formulação da teoria dos limites Schranken-Schranken, teoria esta construída em solo alemão e que tem como fundamento a noção de núcleo essencial dos direitos fundamentais. Com base na Lei fundamental de Bonn, que em seu art. 19, inc. II, dispõe que em caso algum poderá um direito fundamental ser atingido em seu núcleo essencial, criou-se o entendimento doutrinário no sentido de que o conteúdo essencial do direito fundamental Wesensgehalt constituiria o elemento restritivo à atividade limitadora dos Poderes constituídos no âmbito dos direitos fundamentais (PIEROTH; SCHLINK, 2005, p. 65). Mesmo em se tratando de caso em que o legislador está constitucionalmente autorizado a editar normas restritivas, já que pacífico na doutrina a inexistência – pelo menos em princípio – de direitos absolutos, imunes a qualquer espécie de restrição, ele permanece vinculado à salvaguarda do núcleo essencial dos direitos restringidos (CANOTILHO, 2003, p. 481). Nesse sentido, podemos ainda colacionar os lições de Ingo Sarlet quanto à limitação da liberdade de conformação do legislador no âmbito da proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais (SARLET, 2008, p. 126-127), ipsis litteris:

(…) eventuais medidas supressivas ou restritivas de prestações sociais implementadas (e, portanto, retrocessivas em matéria de conquistas sociais) pelo legislador haverá de ser considerada inconstitucional por violação do princípio da proibição de retrocesso social, sempre que com isso restar afetado o núcleo essencial legislativamente concretizado dos direitos fundamentais.

Por fim, avulta o argumento baseado na proibição de recriar omissões legislativas inconstitucionais. Neste diapasão, como sustenta a doutrina dominante, o direito social concretizado em sede legislativa assume a condição de um direito subjetivo negativo, no sentido de que se abre a possibilidade de impugnação judicial contra toda e qualquer medida que se encontre em conflito com o texto constitucional, assim como qualquer medida que venha, pura e simplesmente, suprimir o grau de concretização outorgado à norma constitucional. Como afirma José Vicente Mendonça (2003, p. 222-223).

Se a Constituição não é apenas um ser, mas também um dever ser, e se adquire força a partir do momento em que logra realizar sua pretensão de eficácia, nada mais natural do que obstar a simples revogação de lei que concretize alguns de seus comandos. O contrário seria inverter prioridades e achar que o legislador não constituinte pode frustrar uma efetividade e uma eficácia constitucional já adquiridas.

A partir dessa perspectiva, o Estado não pode desfazer o que há havia realizado no cumprimento de tarefas constitucionais, concretas e determinadas, pondo-se, novamente, na situação de devedor, circunstância, por si, ensejadora da censura em sede de inconstitucionalidade por omissão. O princípio da proibição do retrocesso social contém um conteúdo finalístico de proteção aos direitos já concretizados. Essa finalidade, no entanto, se traduz primordialmente numa limitação negativa, apontando antes um estado de coisas a ser alcançado, a proibição de que se retorne a um estado de coisas mais afastado do ideal (DERBLI, 2007, p. 294-295).

(FUHRMANN, Italo Roberto. O princípio da proibição do retrocesso social como categoria autônoma no Direito Constitucional brasileiro? Conceito, fundamentação e alcance normativo frente à atual dogmática dos direitos fundamentais. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC. Belo Horizonte, ano 6, n. 23. Jul./set. 2012).

Assim, a proibição do retrocesso representa um marco da conquista civilizatória, já que os direitos fundamentais, uma vez reconhecidos, não podem ser abandonados nem diminuídos: o desenvolvimento atingido não é passível de retrogradação. Há aqui uma proteção traduzida pela proibição de retrocesso, sendo que essa eficácia impeditiva (negativa) é imediata e por si só capaz de sustentar um controle de constitucionalidade (tanto em relação à ação quanto à omissão indevidas).

Percebe-se que, no plano normativo, a eficácia impeditiva de retrocesso fornece diques contra a mera revogação de normas que consagram direitos fundamentais, ou contra a substituição daquelas por outras menos generosas para com estes; e, no plano dos atos concretos, a proibição de retrocesso permite impugnar, por exemplo, a implementação de políticas públicas de enfraquecimento dos direitos fundamentais.

A eficácia impeditiva de retrocesso vale igualmente para a excepcional possibilidade de restrição de direito fundamental, que jamais poderá avançar sobre o estádio de desenvolvimento jurídico-normativo por este atingido. Também sobre a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais repercute a proibição de retrocesso, pois – para citar – serve esta de parâmetro à aferição da constitucionalidade em abstrato, bem como protege os direitos a prestações e garantias institucionais.

Aliás, é importante frisar que o Brasil assinou, igualmente, o Protocolo de San Salvador, formulado no ano de 1988 como instrumento adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 – nominada de Pacto de San José da Costa Rica –, em razão do que se recepcionou, expressamente, o princípio da proibição do retrocesso social ou da aplicação progressiva dos direitos sociais.

Desse modo, a tentativa de supressão ou alteração prejudicial do alcance dos direitos fundamentais das populações indígenas, depois de se obter a sua conquista por meio de mecanismos legais e político-sociais, é vedada pela norma internacional integrada ao Direito Pátrio. A liberdade do legislador teria como limite o núcleo essencial já realizado.

Assim, os direitos consagrados pelo legislador constituinte originário aos índios no art. 231 constituem-se como cláusula pétrea constitucional (proteção de direitos fundamentais), não podendo ser atingidos pelo poder reformador derivado, entendimento que se lastreia, em síntese, nas seguintes considerações:

(a)  a instituição do Estado brasileiro como um Estado Social;

(b) a inserção, na Carta Magna, do Título II, versando especificamente sobre os “Direitos e Garantias Fundamentais’, incluídos neste rol os Direitos Sociais, com a consagração da fundamentalidade dessa dimensão de direitos e, assim, da certeza de integrarem o núcleo de elementos essenciais que dão identidade à própria Constituição;

(c) a primazia da dignidade humana como princípio fundamental e base da ordenação constitucional brasileira, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico, e a integração dos Direitos Sociais em sua essência, ao lado dos Direitos clássicos de Liberdade;

(d) a norma encartada no § 2º do artigo 5º da Constituição Federal, estabelecendo uma enumeração meramente exemplificativa dos direitos e garantias fundamentais individuais e sociais, sem excluir outros decorrentes do regime, dos princípios adotados e dos tratados internacionais;

(e) o equívoco de uma visão estritamente literal da disposição do artigo 60, § 4º, inciso IV, da Carta Magna, e a necessidade de se lhe imprimir uma interpretação adequada e coerente com os critérios sistemático e teleológico, à luz dos princípios da unidade e da concordância prática, que são específicos da hermenêutica das normas constitucionais;

(f) a posição doutrinária majoritária quanto à aceitação de limites materiais implícitos à reforma constitucional, com o assentimento de neles estarem incluídos os Direitos Sociais como decorrência do princípio do Estado Social;

(g) a circunstância de que todos os Direitos Fundamentais consagrados na Constituição da República são, em última análise, direitos de titularidade individual, ainda que alguns sejam de expressão coletiva ou social;

(h) a normativa internacional adotada pelo Brasil, com a sua incorporação ao Direito Pátrio, passando a integrar o sistema jurídico nacional (Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948; Pactos Internacionais dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, de 1966; Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969; Protocolo de São Salvador, de 1988; Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993);

(i) a concepção contemporânea dos direitos humanos introduzida por tais documentos e normas, estabelecendo a universalidade, a indivisibilidade e a interdependência dos Direitos Humanos (em todas as suas dimensões) – não se concebendo a sua compartimentalização, separação ou hierarquização –, como expressão da essencialidade da dignidade da pessoa humana em todas as suas projeções, nos campos individual e social; e

(j) a adoção expressa, no plano normativo das garantias dos Direitos Humanos, da cláusula de proibição de retrocesso social, estabelecendo preceito restritivo da iniciativa de desconstituição ou aviltamento dos Direitos Sociais.

(l) a adesão do Brasil à Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais e Resolução referente à ação da OIT;

(m) a vinculação do Brasil à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

Em síntese, o que se afirma é que a simples tramitação da proposta de emenda constitucional nº 215, de 2000, já é capaz de projetar um grave retrocesso num dos direitos inerentes à própria existência das populações indígenas, ou seja, o direito à permanência e fixação nas terras que preteritamente ocupam no território nacional.

VI – Ofensa aos Princípios da Proporcionalidade/Razoabilidade – Proibição de Proteção Deficiente.

Afirma-se por outro lado que as restrições que a PEC 215/2000 tenta impor ao livre exercício dos direitos fundamentais da população indígena, também macula o princípio da proporcionalidade/razoabilidade, principalmente na sua vertente da proibição de proteção deficiente.

O princípio da proporcionalidade, que corresponde, no dizer da doutrina alemã, a uma moeda de duas faces: de um lado, proíbe-se o excesso (übermassverbot); de outro, proibe-se a proteção deficiente (untermassverbot). O princípio da proporcionalidade serve como limite à limitação de direitos fundamentais, isto é, é com base nele que se poderá verificar até que grau se poderá restringir a eficácia de um determinado princípio ou direito. Ele limita o cerceamento a direitos fundamentais.

Na lição do agora Ministro Luis Roberto Barroso (Fundamentos Teóricos e Filosóficos do novo direito constitucional brasileiro – Revista Interesse Público, vol. 11 – 2001 – p. 66), “o princípio da razoabilidade é um mecanismo para controlar a discricionariedade legislativa e administrativa. Ele permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: (a) não haja adequação entre o fim perseguido e o meio empregado; (b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo caminho alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito individual; (c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida tem maior relevo do que aquilo que se ganha.”

Por sua vez, Caio Tácito (O princípio da legalidade: ponto e contraponto”, in Temas de Direito Público – Estudos e Pareceres, Rio de Janeiro, Renovar, 1997, pp. 341-342) assevera:

                     “O diagnóstico de compatibilidade da substância dos atos administrativos, com a finalidade legal a que são adstritos, conduz a que o exame de sua validade não se contenha nos aspectos exteriores da manifestação de vontade. O controle de legalidade evoluiu para verificar a existência real dos motivos determinantes da decisão administrativa, a importar no acesso à motivação expressa ou implícita do ato administrativo. A motivação é, em certos atos, exigência legal de sua validade. Mesmo, porém, quando não exigida, cabe ao intérprete, atento aos antecedentes que condicionam a emissão do ato de vontade do administrador, verificar se os motivos são verdadeiros e aptos a produzir o resultado. E, mais ainda, o exame da motivação do ato permitirá ao controle de legalidade avalizar se o nexo causal entre os motivos e o resultado do ato administrativo atende a dois outros requisitos essenciais: o da proporcionalidade e o da razoabilidade, que são igualmente princípios fundamentais condicionantes do poder administrativo. O conceito de legalidade pressupõe, como limite à discricionariedade, que os motivos determinantes sejam razoáveis e o objeto do ato proporcional à finalidade declarada ou implícita na regra de competência..(…) Os princípios de que a ação administrativa deve conduzir a um resultado razoável e proporcional à finalidade da lei inibe o abuso de poder e o arbítrio da autoridade, permitindo ao administrado a lícita fruição de seus direitos e interesses legítimos”.

A proposta de emenda constitucional nº 215/2000 relativiza, dificulta o exercício de direitos fundamentais dos índios, já cristalizados, protegidos, na atual quadra constitucional. Há, portanto, uma verdadeira tentativa de cercear, sabotar, data vênia, os objetivos da Constituição, cujo legado nos foi imposto pelo constituinte originário. A PEC expõe ao ataque direitos fundamentais da população indígena, quando a Constituição, pelos constituintes primeiros, se esforça para protege-los de modo suficiente e adequado.

Em reforço ao que se afirma, traz-se à baila a lição do voto do Ministro Gilmar Mendes na ADI 3510:

                     “(…)

                     A dimensão objetiva dos direitos fundamentais legitima a idéia de que o Estado se obriga não apenas a observar os direitos de qualquer indivíduo em face das investidas do Poder Público (direito fundamental enquanto direito de proteção ou de defesa – Abwehrrecht), mas também a garantir os direitos fundamentais contra agressão propiciada por terceiros (Schutzpflicht des Staats).

                     A forma como esse dever será satisfeito constitui, muitas vezes, tarefa dos órgãos estatais, que dispõem de alguma liberdade de conformação. Não raras vezes, a ordem constitucional identifica o dever de proteção e define a forma de sua realização.

                     A jurisprudência da Corte Constitucional alemã acabou por consolidar entendimento no sentido de que do significado objetivo dos direitos fundamentais resulta o dever do Estado não apenas de se abster de intervir no âmbito de proteção desses direitos, mas também de proteger tais direitos contra a agressão ensejada por atos de terceiros.

                     Essa interpretação da Corte Constitucional empresta sem dúvida uma nova dimensão aos direitos fundamentais, fazendo com que o Estado evolua da posição de ‘adversário’ para uma função de guardião desses direitos.

                     É fácil ver que a idéia de um dever genérico de proteção fundado nos direitos fundamentais relativiza sobremaneira a separação entre a ordem constitucional e a ordem legal, permitindo que se reconheça uma irradiação dos efeitos desses direitos sobre toda a ordem jurídica.

                     Assim, ainda que não se reconheça, em todos os casos, uma pretensão subjetiva contra o Estado, tem-se, inequivocamente, a identificação de um dever deste de tomar todas as providências necessárias para a realização ou concretização dos direitos fundamentais.

                     Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Utilizando-se da expressão de Canaris, pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Ubermassverbote), mas também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote).

                     Nos termos da doutrina e com base na jurisprudência da Corte Constitucional alemã, pode-se estabelecer a seguinte classificação do dever de proteção:

A) Dever de proibição (Verbotspflicht), consistente no dever de ser proibir uma determinada conduta;

B) Dever de segurança (Sicherheitspflicht), que impõe ao Estado o dever de proteger o indivíduo contra ataques de terceiros mediante a adoção de medidas diversas;

C) O dever de evitar riscos (Risikopflicht) que autoriza o Estado a atuar com o objetivo de evitar riscos para o cidadão em geral mediante a adoção de medidas de proteção ou de prevenção especialmente em relação ao desenvolvimento técnico e tecnológico.

Discutiu-se intensamente se haveria um direito subjetivo à observância do dever de proteção ou, em outros termos, se haveria um direito fundamental à proteção. A Corte Constitucional acabou por reconhecer esse direito, enfatizando que a não observância de um dever de proteção corresponde a uma lesão do direito fundamental previsto no art. 2, II, d Lei Fundamental.

Assim, na dogmática alemã é conhecida a diferenciação entre o princípio da proporcionalidade como proibição de excesso (Ubermassverbot) e como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). No primeiro caso, o princípio da proporcionalidade funciona como parâmetro de aferição da constitucionalidade das intervenções nos direitos fundamentais como proibições de intervenção. No segundo, a consideração dos direitos fundamentais como imperativos de tutela (Canaris) imprime ao princípio da proporcionalidade uma estrutura diferenciada. O ato não será adequado quando não projeta o direito fundamental de maneira ótima; não será necessário na hipótese de existirem medidas alternativas que favoreçam mais a realização do direito fundamental; e violará o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito se o grau de satisfação do fim legislativo é inferior ao grau em que não se realiza o direito fundamental.”.

O Impetrante, nesse sentido, bate às portas do Poder Judiciário para buscar uma proteção eficiente com vistas a resguardar o direito fundamental ao livre exercício decorrente da ‘titularidade’ que historicamente ocupam os índios em relação às terras que habitam.

 

VII – Da medida liminar.

Da exposição feita sobressai a fumaça do bom direito, pois, sem a menor sombra de dúvidas, o ato de submeter-se à deliberação da Câmara dos Deputados proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais da população indígena atenta flagrantemente contra o disposto no art. 60, § 4°, IV da Constituição Federal.

Por outro lado, está a proposta de emenda na iminência de produzir seus danosos efeitos, eis que se encontra na perspectiva de tramitar em Comissão Especial, segundo o Regimento Interno da Câmara dos Deputados.

Com efeito, tramitando na Comissão Especial a proposta de emenda constitucional será submetida à discussão e votação do Plenário, com grave lesão ao exercício do mandato do Deputado Impetrante, que será chamado a se pronunciar sobre matéria não autorizada pela própria Constituição, ferindo direito líquido e certo de não ser compelido a deliberar.

A liminar, por outro lado, evita a discussão que se travou no MS n° 90.257 (RTJ 99/1031), sobre se não deferida ela e consumado o ato, o mandado de segurança há de ser julgado prejudicado, subsistindo o ato lesivo, ou se este pode ser desfeito por se transformar aquela medida judicial de preventiva em restauradora da legalidade malferida.

É da jurisprudência pacífica dessa Suprema Corte, mister salientar, que, se os fundamentos deduzidos na ação direta de inconstitucionalidade – o que se aplicaria por identidade de razões ao presente mandado de segurança – são relevantes, em confronto com as normas constitucionais acoimadas de infringência, se impõe a suspensão, ou a impossibilidade de praticar-se o ato.

No caso, como a Constituição veda a “deliberação”, é imperativo que se mantenha a situação atual até o julgamento do writ.

Demonstrados os seus pressupostos, requer-se a concessão de medida liminar, para obstar a criação de Comissão Especial e posterior tramitação, discussão e votação da Proposta de Emenda Constitucional n° 215, de 2000.

Em resumo, o ato coator não merece prevalecer, por contrariar frontalmente o artigo 60, § 4°, inciso IV, da Constituição Federal.

Espera-se, assim, a concessão da segurança, para determinar à Mesa, através de seu Presidente, que exclua da deliberação da Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição n° 215/2000, que objetiva restringir, minorar, retirar, condicionar direitos seculares e originários da População Indígena brasileira.

VIII – Do pedido definitivo.

Os atos praticados pelas autoridades coatoras não podem prevalecer, por contrariar frontalmente a Constituição Federal e a soberana vontade manifestada pelo povo. Diante disso, é o presente writ para requerer dessa Suprema Corte se digne:

a) seja, ao final concedida em definitivo a segurança buscada, ratificando-se a liminar concedida, para o fim de :

– vedar a criação de Comissão Especial para analisar e proferir parecer na Proposta de Emenda Constitucional hostilizada.

– excluir da deliberação da Câmara dos Deputados a proposta de emenda constitucional 215/2000, de modo a garantir ao Impetrante o exercício de todas as prerrogativas do seu mandato e de modo a garantir a estabilidade constitucional e os direitos, mínimos, da população indígena no País.

b) sejam notificadas as autoridades coatoras para, querendo, prestarem as informações que entenderem cabíveis, no prazo legal;

c)   seja ouvido o Procurador-Geral da  República.

Requer a comprovação dos fatos alegados pelos documentos anexos, bem como por todos os meios de prova não vedados em direito.

Dá-se à causa o valor de R$ 100,00 (cem reais)

Termos em que

Pede Deferimento

Brasília (DF), 06 de agosto de 2013.

Mariton Benedito de Holanda – Padre Ton

Deputado Federal – PT/RO

 

Alberto Moreira Rodrigues

OAB/DF – 12.652

 

Eneida Vinhais Bello Dultra

OAB/BA – 13.993

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