Inferno astral de Cabral atinge até mesmo a política de UPPs

Foto: Governo do Estado do Rio de Janeiro
Foto: Governo do Estado do Rio de Janeiro

Vitrine de uma política que em geral reduziu os índices de criminalidade no estado, nem mesmo as UPPs, no entanto, foram capazes de evitar que a avaliação sobre a segurança pública sucumbisse ao inferno astral que parece ter tomado conta do governo Cabral desde que este se tornou alvo preferencial das manifestações de rua iniciadas em junho

Maurício Thuswohl – Carta Maior

Rio de Janeiro – A joia da coroa do governo de Sérgio Cabral é a segurança pública, setor que durante anos a fio foi considerado o calcanhar-de-aquiles de qualquer político que se dispusesse a governar o Rio de Janeiro. Entre todas as iniciativas tomadas pelo governador durante seus seis anos e meio de gestão que possam ser consideradas bem-sucedidas, a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em áreas do estado antes controladas pelo tráfico de drogas fortemente armado sempre foi a que recebeu os maiores e mais merecidos elogios – conseqüência dos efeitos benéficos trazidos a diversas comunidades até então conflagradas. Vitrine de uma política que em geral reduziu os índices de criminalidade no estado, nem mesmo as UPPs, no entanto, foram capazes de evitar que a avaliação sobre a segurança pública sucumbisse ao inferno astral que parece ter tomado conta do governo Cabral desde que este se tornou alvo preferencial das manifestações de rua iniciadas em junho. Desde então, o desgaste já resultou na troca da cúpula da Polícia Militar, e mais mudanças podem vir por aí.

Se a sensação de segurança proporcionada pelas UPPs nas comunidades beneficiadas e bairros adjacentes é inegável – os números estão aí para comprovar a redução de roubos, estupros e mortes – também é evidente que a política de policia pacificadora entrou em uma fase de mais difícil execução desde o final de 2011, quando chegou a grandes centros de distribuição de armas e drogas como Rocinha, Mangueira, Manguinhos e Complexo do Alemão. Problemas de relacionamento entre a polícia e as comunidades se tornaram freqüentes, confrontos com traficantes que ainda atuam nas favelas passaram a ocorrer e mortes a acontecer em uma espiral que culminou em 14 de julho com o desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza (após ter sido levado por policiais da UPP da Rocinha) e contribuiu para a acentuada queda de popularidade de Cabral nas últimas semanas.

A rejeição popular à atuação da polícia de Cabral se tornou mais evidente durante as manifestações, mas já vinha em um processo de acúmulo. Antes de Amarildo, os casos de violência policial nas áreas “pacificadas” se sucederam. Em abril, os jovens negros Aliélson Nogueira e Mateus Casé, segundo relatos de moradores de Manguinhos, foram executados por policiais da UPP que havia sido instalada na comunidade apenas três meses antes. Em novembro do ano passado, no Complexo do Alemão, Mário Lucas Pereira, de 18 anos e sem antecedentes criminais, foi morto em casa, enquanto dormia. Segundo o relato de moradores, o crime foi cometido por um policial da UPP que se desentendera com o jovem dias antes, durante um jogo de futebol.

Mesmo depois da atenção mundial despertada pelo desaparecimento de Amarildo, as denúncias de abuso policial nas favelas equipadas com UPP continuam. Moradores da favela do Andaraí denunciam que policiais da UPP ali instalada elaboraram um “lista de pessoas marcadas para morrer” e estariam aterrorizando jovens da comunidade. Nesta quarta-feira (14), exatamente um mês após o sumiço de Amarildo na Rocinha, moradores do Complexo do Alemão fecharam ruas e incendiaram ônibus na Zona Norte do Rio em protesto pela morte de Laércio Hilário Neto, de 17 anos, que, segundo relatos, teria sido levado na véspera por policiais da UPP da Vila Cruzeiro, uma das favelas que compõem o complexo.

Na mesma Vila Cruzeiro, em maio, um intenso tiroteio entre traficantes e policiais da UPP chamou a atenção da mídia e da população por ter sido travado exatamente no momento da largada da maratona Desafio da Paz, que aconteceu nas proximidades do Complexo do Alemão. A ação que causou mais comoção na população, entretanto, ocorreu em uma comunidade que se preparava para receber a próxima UPP. Em junho, em retaliação ao assassinato do sargento Ednelson Jerônimo, dezenas de homens do Batalhão de Operações Especiais da PM (Bope) invadiram o Complexo da Maré e mataram dez pessoas, entre elas o menino Jonatha da Silva, de 16 anos. A selvageria ímpar dos policiais dentro da favela – algumas vítimas foram degoladas – trouxe aos cariocas a lembrança ainda muito viva de um Rio que a propaganda oficial insiste em dizer que só existe no passado.

Recursos
Outro problema inerente às UPPs é sua ausência, ou seja, o fato de que as favelas não beneficiadas pela política de segurança pública do governo estadual tenham se tornado um atrativo natural para os traficantes que deixaram as comunidades ocupadas pela polícia. Estudos da Secretaria de Segurança Pública revelam o aumento da presença de bandidos e da ocorrência de diversas modalidades de crime em alguns pontos da Zona Oeste da capital e da Baixada Fluminense e também em alguns bairros da Zona Norte como Lins, Costa Barros e Pavuna, entre outros. A percepção dos moradores dessas regiões (somados, são milhões) sobre a política de segurança pública de Cabral certamente não é das mais positivas.

Na realidade, Cabral ou qualquer outro governador que pretenda tornar perene a política de UPPs no Rio de Janeiro terá que equacionar o desafio de expandir sua abrangência por todo o estado e, para isso, atender a uma demanda por recursos financeiros e humanos que jamais deixará de crescer. Segundo o novo comandante da PM, coronel José Luís Castro Menezes, a pacificação dos complexos do Lins e da Maré, objetivos imediatos do governo, exigirá a formação de mil e quinhentos novos policiais para atuarem nos dois conjuntos de favelas. Inicialmente prevista para agosto, a ocupação da Maré foi adiada por tempo indeterminado. Atualmente, segundo a Secretaria de Segurança Pública, as 33 UPPs já instaladas no estado mobilizam um efetivo total de 8.591 policiais. O plano de expansão do governo prevê um contingente de 12,5 mil policiais nas UPPs do Rio até o fim de 2014.

Ainda não existe uma estimativa oficial dos gastos que serão efetuados com as UPPs nos próximos anos, mas eles serão consideráveis. Em 2013, segundo o governo, os investimentos em segurança pública ultrapassarão os R$ 7 bilhões. De acordo com o Relatório de Gestão de Contas da Secretaria Estadual de Fazenda, no ano passado foi especificamente destinado às UPPs o montante de R$ 3,4 milhões (cerca de meio por cento do orçamento total), valor menor do que o destinado em 2011 (R$ 5,3 milhões). O programa de polícia pacificadora, no entanto, tem ainda outras fontes de financiamento. Uma delas, a parceria com a empresa OGX de Eike Batista, que representava um repasse anual de R$ 20 milhões às UPPs, foi oficialmente encerrada em 10 de agosto.

Manifestações
Durante as manifestações que começaram em junho, as imagens do despreparo da polícia do Rio de Janeiro ganharam o mundo através das redes sociais. Câmeras (da prefeitura, de emissoras de tevê, de coletivos de mídia livre, de telefones celulares) flagraram policiais do Batalhão de Choque e de outras unidades da Polícia Militar cometendo uma série de excessos, notadamente no uso indiscriminado de equipamentos não letais, como gás lacrimogêneo e balas de borracha, contra vândalos e pessoas que se manifestavam de forma pacífica. No caso mais grave, estilhaços de uma bomba lançada pela PM provocaram a perda da visão de um olho da publicitária Renata da Paz Ataíde, de 26 anos. O desastrado desempenho policial foi reconhecido publicamente por Cabral, o que não impediu que a seqüência de trapalhadas da PM continuasse nos dias seguintes.

As grandes manifestações do centro do Rio migraram para o Palácio Guanabara e para o bairro chique do Leblon, onde o protesto se concentrou, literalmente, às portas da residência do governador, para desespero de seus vizinhos, em manifestações diárias que incluíram um acampamento permanente. Na noite de 17 de julho, o protesto ganhou a participação de grupos de vândalos organizados. Acusada de truculência, desta vez a PM assistiu de braços cruzados a um quebra-quebra nas lojas do bairro que escandalizou as “pessoas de bens” da cidade (a destruição da loja de grife Toulon, por exemplo, foi mais pranteada pela mídia do que o desaparecimento do pedreiro Amarildo) e elevou a níveis de Himalaia a rejeição de Cabral entre os eleitores mais abastados. O episódio serviu também para aumentar a fervura no Comando da PM.

A série de desmandos policiais durante os protestos contra o governo continuou durante a visita do Papa Francisco, em julho. Mais uma vez com o auxílio das imagens captadas pelos coletivos de mídia livre e propagadas pelas redes sociais, se descobriu que policiais do Serviço Reservado da PM, conhecido como P-2, infiltrados em uma manifestação, teriam atirado coquetéis molotov contra a própria barreira de policiais, o que provocou como resposta uma chuva de bombas de gás contra os manifestantes e deixou um saldo de 60 feridos hospitalizados. Apesar da evidência das imagens, o Comando da PM disse em nota não ser possível afirmar se as pessoas que aparecem nas filmagens são de fato policiais. As imagens estão sendo investigadas pela Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas (CEIV), criada por Cabral após as primeiras manifestações.

Também foram parar no CEIV as imagens que comprovam a inocência do estudante Bruno Ferreira Teles, de 25 anos, que foi preso durante a mesma manifestação por supostamente ter atirado um coquetel molotov na polícia, além de ter sido autuado por porte de artefato explosivo e desacato. Os policiais que efetuaram a prisão informaram ter encontrado com Bruno uma mochila com onze coquetéis molotov, mas imagens captadas no momento de sua prisão comprovaram que essa versão era uma farsa, o que trouxe ainda mais constrangimento ao Comando da PM. Abalado, o então comandante da corporação, coronel Erir da Costa Filho, acusou as comissões de Direitos Humanos da OAB e a da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) de não terem contido o quebra-quebra “como havia sido combinado”, declaração que deixou pasmos representantes das duas entidades. Dias depois, ao decidir unilateralmente anistiar policiais punidos por delitos leves (atrasos, faltas disciplinares, etc), Costa Filho foi exonerado por Cabral.

Comments (1)

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.