A cidade e a aldeia

Na prática, o que temos visto nas últimas décadas é o etnocídio dos índios americanos, no qual o Brasil é singularmente eficaz entre os países da América Latina

Luciane Soares da Silva* – Brasil de Fato

Como hierarquizamos nossa adesão a causas, movimentos sociais ou tragédias anunciadas na sociedade moderna? A adesão política, perceptível na mobilização das redes sociais, mídia alternativa e mesmo jornais de grande circulação em favor da aldeia Guarani-Kaiowá, no segundo semestre de 2012, serve como bom indicador sobre este problema. O anúncio dos índios de um suicídio coletivo gerou uma das mais fortes campanhas vistas até então nestas novas plataformas de protesto. Os comentários de fervoroso engajamento reconheciam o que a Constituição do Brasil de 1988 estabelece em seu artigo 231: “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradição, e os direitos originários das terras que tradicionalmente ocupam, competindo a União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Em documento, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Ayres Brito, explicita que os artigos 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidaria. A preocupação, segundo o ministro, seria com a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade cívico-moral das minorias.

Toda esta retórica, todas estas palavras parecem esvaziadas de qualquer efetividade real diante dos acontecimentos envolvendo terras ou espaços de preservação da cultura indígena no Brasil. Os recentes fatos sobre os índios da Aldeia Maracanã, na cidade do Rio de Janeiro, apenas reforçam uma percepção histórica sobre o tratamento dispensado pelo Estado às “minorias étnicas”. Antes de prosseguir, é preciso pontuar o óbvio: o uso do termo “minorias étnicas” deve ser problematizado, pois sua definição está intimamente vinculada as relações de poder no mundo contemporâneo. Mas na forma de autodeclaração da população, pretos, pardos e indígenas superam a porcentagem de brancos. Então, podemos deduzir que minorias étnicas só fazem sentido dentro de um discurso que pensa ativamente estas relações de poder na sociedade brasileira.

Quando pensamos relações de poder, especificamente no caso das grandes cidades e dos megaeventos, devemos elencar quem são os principais atores das decisões que deslocam famílias de bairros periféricos para a passagem de novas linhas de transporte, que desalojam agricultores para construção de megaportos ou que desapropriam comunidades tradicionais para remodelação urbana. Veremos o governador, o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, seu aparato repressivo, entre outros personagens menores que se engajam para legitimar as ações do Estado.

Se lembrarmos rapidamente os pronunciamentos e ações do governador durante a greve dos Bombeiros, em 2012, veremos aí a face de um chefe político que não poupou tempo para impor punições severas àqueles que, no uso de seu direito, ousaram manifestar contrariedade, através da greve. Aquele foi outro momento central para pensar as atuais formas de engajamento do cidadão médio fluminense à vida política do Rio de Janeiro. Apoio de artistas, fitas vermelhas que ainda podem ser vistas em carros de passeio, manifestação de parlamentares favoráveis aos bombeiros. O chefe teve de recuar, com muito ódio. O que havia de diferente neste caso? As representações sociais sobre os dois grupos.

No caso dos guarani-kaiowá, certamente a possibilidade de prática de um suicídio coletivo teria um custo alto demais para o país – não só porque sensibilizaria uma opinião pública de classe média, católica, urbana, mas também pela visibilidade na mídia internacional. Nem tudo é pragmatismo político, tampouco ingenuidade desinteressada. Não fosse a decisão dos índios de um ato extremo, morreriam aos poucos, como muitos outros de sua tribo: ou por suicídio individual ou na mão de pistoleiros. No segundo caso, a representação dos bombeiros como heróis demonstrava o necessário nível de coesão para que uma sociedade não se desintegre. Alguns valores devem ser resguardados, transcendendo classe, gênero ou raça. Era prazeroso engajar-se numa causa nobre. E a cidade o fez como um legítimo exercício cívico.

No caso da Aldeia Maracanã, mesmo com a forte mobilização de parte da juventude, movimentos sociais e mídia alternativa, não seria possível afirmar que a sociedade civil mais ampla, (esta cuja opinião importa aos jornais e ao Estado), engajou-se. As opiniões emitidas nas colunas de grandes jornais e revistas, os comentários nas praças e filas de banco, seguiram o mesmo padrão utilizado em relação aos moradores de favela. A criminalização do grupo. Entre as opiniões mais frequentes encontramos estas: “não são mais índios, são invasores, desocupados”. Em comentários mais recentes (já após a desocupação), no jornal de maior circulação na cidade do Rio de Janeiro, são classificados como “pilantras, pseudo-índios, aproveitadores, alcoólatras e ladrões”.

Parte do discurso favorável à ação do Estado pode ser compreendida como resultado do equacionamento dos altos índices de criminalidade urbana. A segurança pública tornou-se o principal, se não o único, pilar de legitimação desta política de governo, através das Unidades de Polícia Pacificadora. Elas possibilitaram a recuperação de áreas degradadas em bairros da grande Tijuca, mas também em Laranjeiras, Copacabana, bairros da zona sul que vivem o boom imobiliário. Esta euforia urbana, vivida pelos proprietários de imóveis, donos de hotéis e especuladores em geral, colabora para a consolidação de uma impressão dita de várias formas nos jornais: que importa se um “bando” de índios será desapropriado de uma área da cidade?

Ao falar de fraternidade e solidariedade, Ayres Brito explicita uma posição em relação aos índios: vamos acolher estes grupos, historicamente massacrados. Mas o texto constitucional é preciso: que o Estado demarque os territórios ocupados por eles tradicionalmente. Ocupar a Aldeia Maracanã tem um importante significado: estes grupos indígenas afirmaram “estamos aqui e vamos permanecer”. Como a razão de Estado age nestes casos? No arranjo urbano atual, a justificativa estatal explicita o quanto estão ávidos por crescimento e modernização dos espaços. Nossos complexos de vira-lata gritam que é chegada a hora: o país do futuro, agora. Mesmo com a Constituição, os movimentos sociais e a organização juvenil, não parece haver espaço na cidade do Rio de Janeiro para gente “sem fé, sem lei e sem rei”, como observara Clastres em seu estudo sobre as sociedades indígenas.

Esta é uma situação típico-ideal: todas as ações do Estado na Aldeia Maracanã foram justificadas publicamente como necessárias para a cidade e seus grandiosos eventos. No meio deste caminho, índios demonstraram forte oposição à ordem dada de desocupação. A intensidade da ação policial não seria diferente. Era preciso usar desta truculência para lembrar que em nosso país as formas de resolução de conflito seguem um padrão cultural invariante. Nem leis, tratados ou comoção internacional alterariam tais procedimentos. Se, em estudos etnológicos, os índios são classificados como sociedades pré-políticas pela ausência de um Estado centralizador, nas sociedades modernas, é urgente perguntar: a quem este Estado representa? Administra o direito à terra destas minorias, mas na prática o que temos visto nas últimas décadas é o etnocídio dos índios americanos, no qual o Brasil é singularmente eficaz entre os países da América Latina.

*Professora da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro.

Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.

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