do site do CIMI
Por Ruy Sposati,
de Dourados (MS)
A população indígena Kaiowá do tekoha – ‘terra sagrada’, a aldeia – Passo Piraju volta a temer por seu futuro. Na última sexta-feira, 5, o Tribunal Regional da 3a. Região (TRF-3) publicou um acórdão derrubando a decisão que garantia a posse do território para os indígenas. São 20 hectares ocupados hoje pela comunidade, de uma área reivindicada pelos índios e ocupada por fazendas de soja e cana.
A terra, localizada às margens do rio Dourados, entre os municípios de Dourados e Laguna Carapã, na região conhecida por Porto Kambira, foi retomada pelos Kaiowá em 2004.
“Quando amanhecemos hoje de manhã, levantamos e já escutamos a história. Leram a notícia: tem um despejo na aldeia Passo Piraju. Leu, leu, repetiu 50 vezes, tomando mate”, conta Carlito de Oliveira, principal liderança da aldeia. “Nós queremos explicação. Nós não mexemos em nada. Tão plantando todo esse canavial dentro da nossa aldeia e nós não quebramos nem uma cana, nem um broto. Respeitamos a decisão. E por que que agora começaram a mexer de novo com esse despejo?”, questiona.
Carlito se refere ao Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), estabelecido pelo Ministério Público Federal (MPF) com a Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2007, para que fossem constituídos grupos técnicos para identificação e delimitação das terras indígenas, no sentido de agilizar o trabalho de demarcação de terras reivindicadas pelos Kaiowá e Guarani. Do TAC, surgiriam os grupos de trabalho que elaboraram os relatórios corroborando Passo Piraju como território tradicional dos Kaiowá.
Decisão
Hoje, laudos antropológicos em fase de publicação comprovam a ocupação histórica dos Kaiowá naquele território. Os indígenas estão produzindo na terra, sem ultrapassar os limites do TAC. Estão em área de preservação e protegem a mata de invasores e exploração ilegal. Já tem a posse do território consolidada e muitas benfeitorias, como poço, posto de saúde, escola de alvenaria e plantações de mandioca, batata, milho, arroz, feijão, cana e frutas, além de bovinos, equinos, suínos e ovinos. Uma rede de distribuição de água e uma caixa d’água estão em fase de construção.
No entanto, o TRF-3 decidiu contrariamente à apelação do MPF, que garantia a posse do território aos indígenas, julgando a favor dos fazendeiros. Segundo a publicação, a posse da terra em nome do invasor estaria “suficientemente provada através de cópias da escritura pública do imóvel, do memorial descritivo, bem como da Declaração Anual do Produtor Rural do ano de 2002”. Também afirma que “o esbulho [pelos indígenas] foi comprovado através de cópia do Boletim de Ocorrência e notícias publicadas na imprensa local(…)”. O desembargador conclui que “deve ser mantida a sentença que determinou a reintegração de posse aos autores [fazendeiros]”.
Os subsídios que levaram o desembargador Federal Nelton dos Santos a tomar a decisão, contudo, passam longe da história contada pelos índios. “Esse juíz está dizendo que isso aqui nunca foi terra do índio. Que toda vida foi dos fazendeiro. Aí começa a cobrar para sair do lugar. Eu vou contar a história”, começa.
“Antes tudo morava aqui, era região cheia. Meus parente tudo”. Carlito volta à primeira metade do século 20 para introduzir o histórico de pressões e espoliações que sua família sofreu por conta das invasões de fazendeiros e das políticas de captura e confinamento do antigo órgão indigenista oficial do Brasil, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
Alinhado ao espírito integracionista do Estado brasileiro, o SPI expulsava e encurralava os indígenas em pequenas teras, estabelecendo uma relação de dependência com as comunidades indígenas, que se transformaria em fonte de mão de obra desqualificada e barata para servir aos fazendeiros. A família de Carlito, nesse contexto, foi se dispersando.
“Quando começou, começou como agora, essa notícia que apareceu hoje cedo chegou igual naquele ano. Eu saí daqui guri de 12, 13 anos. Eu saí daqui empurrado junto com meus pais, que já morreram. Naquele tempo chamava captura. É a mesma coisa”, compara. “Era uma montoeira de cavaleiro falando para o finado meu pai, finado meu tio, dizendo que era para deixar fazenda”.
Carlito teme reviver mais uma vez as violências pelas quais seu povo vem passando: “Naquela vez eu escutei a mãe falando para o pai: ‘vamos levar nossas criança, porque os homens já avisaram vocês, eles vão vir fazer as coisas erradas com nós’. E era verdade. Quando nós passamos para lá do rio, escutamos aqui tiroteio. À noite. No escurecê, uma base das 9 para as 10 horas da noite. Foi tiro. Ficou assim umas horas. E queimando as ogapysy (casa Kaiowá onde morava a família extensa). Só fogo naquelas ogapysy“.
No entanto, o indígena retorna ao presente e crava: “Se a lei vai ter poder de tirar de nós o Passo Piraju, eu quero que a lei retire só as minhas crianças. Eu quero deixar a minha carne, o meu osso em cima dessa terra aqui. Eu vou deixar. Podem vim fazer o despejo. Só que daqui eu não saio. Eu quero que a morte, que minha catacumba seja no rio. Quero que minhas crianças, quando elas voltarem de novo, que elas cacem o meu osso para plantar de novo na aldeia. Eu quero que me plante aqui na aldeia Passo Piraju, porque aqui que eu nasci, daqui que fui expulso, aqui que eu vou poiá a minha catacumba. De novo aqui na aldeia Passo Piraju [chora]. Por que que eu estou chorando? Porque os finados meus avôs, não sei onde que está a catacumba deles. Nunca mais encontrei eles. Nunca mais encontrei minha vó, meus tios. Eu vou ser assim também. Eu quero”.
Engessamento
Os estudos sobre Passo Piraju fazem parte de um dos seis grupos de trabalho (GT) criados pela Funai em 2008 com o objetivo de identificar as terras Kaiowá Guarani no cone sul, conforme estabelecido pelo TAC.
O prazo original do acordo exigia que a Funai iniciasse o procedimento de regularização das terras indígenas junto ao Ministério da Justiça até abril de 2010. Como os prazos não foram cumpridos, o MPF executou judicialmente o termo – que previa multa diária acumulativa de um mil reais no caso de descumprimento – e estabeleceu um novo cronograma de trabalho para o órgão indigenista.
No caso de Passo Piraju, terra incluída no GT Dourados-Amambaipeguá, o Relatório Circunstanciado de Identificação (RCID) foi entregue pelo antropólogo à Funai em outubro de 2011. No entanto, segundo o último cronograma apresentado pela Funai na Aty Guasu de Rancho Jacaré, em julho, ainda não há previsão para a aprovação e a publicação dos relatórios.
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