Uma história de luta e dignidade

Autora conta o que ocorreu depois que denunciou rede de pedofilia em livro reportagem 

Sílvia Laporte

Em abril de 2004, uma garotinha de 11 anos segurou as mãos de Lydia Cacho e, olhando-a nos olhos, perguntou: “Você não vai deixar que nos machuquem mais, não é?”. Naquele momento, a vida da jornalista mexicana virou de pernas para o ar e, oito anos depois, ainda não voltou ao normal.

E provavelmente nunca será como antes: ao denunciar, no livro-reportagem ‘Los demonios del Edén’ (Os demônios do Éden, em tradução livre, ainda não editado no Brasil), uma rede de poderosos pedófilos que violaram, espancaram e humilharam seguidamente aquela e centenas de outras crianças – meninos e meninas –, Lydia acendeu o estopim de um escândalo que expôs não apenas as libertinas relações entre criminosos disfarçados de empresários e corruptos usando máscaras de políticos, juízes, promotores e policiais, mas também as contradições da Justiça no seu país.

Foi sequestrada e torturada psicologicamente, ameaçada de morte. Quando nada disso a fez calar, sentiu o peso do poder econômico de seus algozes: de vítima passou a ré, acusada de calúnia e difamação, e gastou o que tinha e o que não tinha para pagar a sua defesa. Embora no ano passado finalmente o cabeça da gangue de agressores sexuais, Succar Kuri, tenha sido condenado a 113 anos de prisão, Lydia Cacho ainda corre perigo.

Coordenadora do Centro Integral de Atenção à Mulher (Ciam) no seu país e ganhadora de vários prêmios por sua atuação na defesa da liberdade de expressão e das mulheres e crianças – entre eles o Human Rights Watch Award, em 2007, e o Prêmio Mundial da Liberdade de Imprensa, em 2008 –, a jornalista foi obrigada a deixar o México, em agosto deste ano, devido a uma nova rodada de ameaças de morte que vem recebendo, desta vez por ter levado o seu caso à Corte Internacional dos Direitos Humanos. “Se eu ganhar, o governo terá que agir contra eles”, disse Lydia, da Colômbia, em entrevista exclusiva ao caderno Feminino & Masculino que reproduzimos a seguir.

Os fatos que você narra em ‘Memórias de uma infâmia’ ocorreram há cinco anos. Como se sente hoje em relação a isso?
Devo dizer que conhecer todas aquelas meninas pequenas mudou a minha vida para sempre, não apenas porque assim que comecei a escrever sobre os criminosos no jornal recebi sérias ameaças de morte, mas também porque mesmo nas horas mais sombrias elas insistiram em me contar a história inteira, com uma condição: que eu fizesse o meu melhor para garantir que Succar Kuri (o cabeça da quadrilha) e seus cúmplices não estuprariam ou venderiam outra garota enquanto fossem vivos. Tive que manter a promessa de nunca abandoná-las. Levei as ameaças muito a sério, especialmente depois de uma malsucedida tentativa de assassinato perpetrada quando meu caso estava em todos os jornais. Queria continuar viva, mas mesmo que as máfias políticas acabassem me matando em nome das causas nas quais acredito, a história dos poderes que protegem os traficantes de sexo e abusadores de crianças estaria documentada. Ser um bom repórter implica  investigar a verdade e nunca esquecer a condição humana daqueles que lhe confiam as histórias de suas vidas.

Os pedófilos que denunciou foram punidos?
Kuri foi sentenciado a 113 anos de prisão no ano passado. Sinto-me orgulhosa por minha matéria ter ajudado a conseguir a primeira sentença histórica para casos de pornografia infantil no México. Na infância, minha mãe me ensinou que a minha dignidade nunca deveria ser negociada. Se a minha não era, por que as vidas e a dignidade dessas meninas deveria ser vendida? Porque elas eram pobres? Para mim, isso é uma questão de ética, um modo de viver.

E você? Onde vive agora? 
Ainda vivo em Cancún, no México, embora recentemente tenha sido obrigada a partir, depois de mais uma ameaça de morte, mas voltarei assim que esteja segura novamente. Meus telefones, o celular e o do escritório, estão grampeados. Mudo constantemente o meu endereço eletrônico por razões de segurança. No entanto, não sou a única jornalista em perigo no México. Em abril, Regina Martinez, uma amiga e colega, foi assassinada em casa quando investigava as conexões entre os traficantes de drogas e o governo local. Nos últimos seis anos, 47 jornalistas foram mortos no México, 13 desapareceram e ocorreram 40 ataques a sedes de jornais. Para entender o que nós, repórteres investigativos, passamos, você precisa saber que o sistema de justiça criminal do país está ruindo por causa da corrupção que alimenta a impunidade, e não é a polícia, mas os jornalistas que vêm fazendo as verdadeiras investigações.

Meu trabalho como jornalista é perigoso. Afinal investigo redes de pornografia infantil e traficantes de sexo em um contexto de incrível impunidade – 95,5% de todos os crimes não são investigados e nem punidos no meu país). Com meu último livro, ‘Esclavas del poder: un viaje al corazón de la trata sexual de mujeres en el mundo’ (Escravas do poder: uma viagem ao coração do tráfico sexual de mulheres no mundo, em tradução livre), que será publicado em breve no Brasil, expus o que o governo vem negando por um longo tempo: os cartéis de drogas estão envolvidos no tráfico sexual. Também dei os nomes de traficantes poderosos da Argentina que atuam no México. As redes criminosas não gostam de mim. Alguns mafiosos, incluindo um ex-governador (Mario Marin) e atual senador do Partido Revolucionário Institucional (PRI, que governou o país de 1929 a 2000 e que acaba de reassumir a Presidência com o atual governante, Enrique Peña Nieto), me querem morta, porque estou levando o caso para a Corte Internacional dos Direitos Humanos, e se eu ganhar, o governo terá que agir contra eles.

Houve alguma melhora na forma como a violência contra mulheres e crianças é tratada no México?
Sim, com certeza, e isso ocorreu principalmente graças aos movimentos feministas no país, que não pararam nem por um minuto de colocar pressão nos legisladores para que emitissem novas leis que abolissem a violência contra mulheres e meninas, contra a escravidão humana, contra a pornografia infantil. Mas há necessidade de discutir o lado econômico das atividades criminosas contra a mulher, para que se entenda que as máfias são movidas pelo lucro. Se os homens parassem de comprar mulheres, meninas e meninos, as máfias eventualmente iriam procurar um outro negócio. Não nos enganemos, porém: toda a sociedade tem que trabalhar na prevenção e na educação sexual para assegurar que não esses indivíduos não caiam na retórica das máfias sexuais de que a prostituição é uma forma de liberação feminina. Não há nada mais eficaz (nesse contexto) do que ser dono de seu próprio corpo, da sua vida erótica e da sua liberdade. Precisamos abordar questões relacionadas à masculinidade, precisamos que homens de todo o mundo questionem os posicionamentos uns dos outros em relação à masculinidade, ao erotismo e à sua percepção das mulheres, precisamos que eles assumam a responsabilidade de alimentar uma indústria criminosa e façam a sua parte para acabar com ela.

O uso do sexo como forma de oprimir ou subjugar os indivíduos vem dos tempos antigos. Você acredita que, um dia, pessoas como você e tantas outras engajadas nessa luta poderão, finalmente, relaxar?
Relaxo de vez em quando, mas nunca pararei. Quero trazer evidências mais concretas para o debate em torno do tráfico humano e sexual, que inclui a pornografia infantil. Quero lembrar às pessoas que a indústria do sexo criou um sistema estruturado de comércio humano. Todos os dias, vemos mulheres famosas viciadas em exposição na mídia hipersexualizada, temerosas de envelhecer e fascinadas por cirurgias cosméticas, vaginoplastia, implantes de silicone etc. Elas se tornaram modelos do sexismo mas, mais importante, funcionam como perfeitas “vacinas” contra a horrível verdade sobre a “coisificação” sexual feminina. Para cada mulher que glamouriza a pornografia, o sexo violento e a prostituição há centenas de outras que são escravizadas e forçadas a entrar em algo que, eu asseguro, está muito longe de ser glamouroso. Sinto a necessidade de reivindicar o nosso direito de afirmar que esse não é um debate moralista, é ético, porque há 1,4 milhão de pessoas lá fora que são escravas dos valores culturais, escravas da indústria do sexo, da apatia da sociedade diante da dor e da violação dos direitos de outras pessoas. A escolha que a economia mundial dá a esses indivíduos é se tornarem escravas, as máfias sabem disso, dos cartéis mexicanos à Yakuza, e sorriem o tempo todo diante do dinheiro que lavam nos bancos, eu os vejo rindo. Nosso silêncio e nosso medo dão poder a eles. Somente se os mostrarmos como realmente são – mercadores de escravos humanos – tiraremos o poder das mãos deles.

Leitura de revirar o estômago
‘Memórias de uma infâmia’  (Editora Bertrand Brasil, 251 páginas, R$ 32) é um livro que, inicialmente, provoca um sentimento de revolta. Como é possível que homens adultos, e pais, sintam prazer em fazer crianças pequenas sentirem dor e medo? À medida que as folhas passam, a indignação só faz crescer. Confiantes na impunidade reservada a amigos e “provedores” de ocupantes de cargos importantes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, os monstros denunciados em Os demônios do Éden (ainda não lançado no Brasil) sumiram com testemunhas e riram na cara da sociedade mexicana. É essa história que Lydia Cacho conta.

Embora sempre tenha acreditado que “o jornalista não deve se transformar em personagem de suas reportagens”, Lydia escreveu ‘Memórias…’ na primeira pessoa. Segundo ela, em primeiro lugar para testemunhar “o que muitos mexicanos sofrem sem ter a possibilidade de denunciar ou demonstrar”; em segundo, “porque ser sobrevivente é um fato que implica responsabilidades”; e, em terceiro, “para que não prevaleça, como costuma acontecer, a versão dos poderosos, dos que sempre ganham”.

Ao fazer isso, ela oferece muito mais ao leitor. Inclusive uma compreensão mais profunda dos mecanismos de poder em sociedades nas quais homens (e mulheres) públicos se acham no direito de usar o que é de todos como se a eles pertencente. Os brasileiros estão mais do que familiarizados com esse tipo de comportamento, embora gostem de pensar que, por aqui, a situação seja mais amena.

Ao reproduzir um trecho do seu diário em ‘Memórias de uma infâmia’, Lydia leva o leitor brasileiro a refletir se não está sendo complacente com as mazelas de cá: “Essa capacidade mexicana excepcional de banalizar assuntos graves como esse, o da corrupção, é o que fortalece a desumanização, a falta de compaixão e a mediocridade em que o México está mergulhado. Tudo eventualmente se transforma em brincadeira, em piada, se normaliza, se desqualifica, se dissolve na falta de desejo por nos transformar”, escreve ela.

Todos nós já assistimos a esse filme e sabemos como ele acaba. Por aqui, a esperança, agora, está centrada no julgamento do mensalão, que para os mais otimistas pode vir a se tonar um marco histórico de transformação da cultura de tratar o que é do povo como patrimônio pessoal de partidos ou governantes. No México, é nos ombros de guerreiros como Lydia Cacho que cai essa expectativa. Mesmo não querendo ser e recusando o título, ela é uma heroína para aqueles que não têm voz. (SL).

http://impresso.em.com.br/app/noticia/toda-semana/feminino-e-masculino/2012/10/07/interna_femininoemasculino,53093/uma-historia-de-luta-e-dignidade.shtml

Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.

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