Exemplo de dignidade imperdível: “Do amor e do ódio e do índio, por Dora Martins, Juíza”

Entre os dias 27 e 30 de abril uma comissão de Juízes da Associação de Juízes para a Democracia – AJD visitou as comunidades indígenas Kaiowá e Guarani no sul de Mato Grosso do Sul. Quatro juízes e uma desembargadora puderam conhecer e conviver com comunidades indígenas confinadas, espoliadas, acampadas, refugiadas, resistentes e esperançosas. Abaixo, a partilha desta vivência nas palavras de Dora Martins.

Do amor e do ódio e do índio. Mba’éichapa!

Por Dora Martins

Foi uma experiência de amor; amor que nos remete a nós mesmos, e que nos alimenta com a possível esperança de um mundo de diferentes que se mirem sem medo ou ódio.

Voltamos, hoje, da viagem aos diferentes e humanos Guaranis Kaiowá, em Mato Grosso do Sul. Viagem de fundo amoroso, sem dúvida, em que pese o amor doer com a dor do outro e que isso nos remeta à nossa humanidade, tão singela, tão impotente por vezes.

O ódio aos Guaranis está em todo canto por aquele Estado tão cheio de verde da cana e da soja e do dinheiro. E, com o encanto dos que lutam junto dos Guaranis seguem a ameaça, a interdição, o assombro.

Emocionante ver os indígenas nos receberem com rituais e danças e celebrações. Que se espantem todos os espíritos do mal! Dançamos, pisamos na terra deles, com eles. Ouvimos e fomos ouvidos. Foi emoção enrolada em emoção. Fizemos um minuto de silêncio, em meio à mata verde, em círculo, no centro o local onde o Nisio Gomes sangrou e sangrou.

Crianças tão pequenas e nada temerosas, com abraços e risos e danças também. Muitos líderes falaram, e “porque a justiça não se concretiza se nós, indígenas, aceitamos a lei do branco”? E nós, juízes, ali, “veneno e antídoto” a engolir em seco lágrimas insuspeitas. Conseguimos, estou certa, nos fazer ver além e através da toga. E foi bom.

E o líder Jorge bradou justiça com a Constituição na mão, e as mulheres fizeram, na história, sua segunda ATY GUASU (assembleia) para discutir o medo de não terem terra, alimento, saúde e identidade. Mulheres indígenas com voz. Homens indígenas que querem voltar a ocupar seu território sagrado e tão vilipendiado. E as atrocidades se repetem compassadamente.

Nos agradeceram os companheiros brancos, que lá nos receberam, e nos presentearam com a fala de que, com toda certeza, nós, juízes brancos, ao irmos até lá “fizemos história na história deles”. Mais lágrimas e legítimas. E foi tocante saber que eles acharam honroso e importante que juízas e um juiz que lá estiveram se fizeram acompanhar por familiares, crianças e filhos. E tudo ficou tão familiar, tão igual, tão brasil profundo de brancos e índios… Um alento, para todos, e em especial para aqueles que lá, guerreiros bravios, lutam em prol da causa Guarani; lá, em Mato Grosso do Sul, onde juízes decidem os processos de uma perspectiva tão divorciada da terra e dos humanos valores indígenas, a ponto de entenderem que quando a prova é apenas a “fala do índio”, ainda que sejam dezenas deles, alega-se “falta de prova” para por fim ao caso… Afinal, para esse cego olhar da justiça de branco, palavra de índio não vale!

Dora Martins, Juíza.

http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=6235&action=read

Comments (5)

  1. É bom. E oxigena o nosso cérebro e, quem sabe o daqueles que se não DEUSES, se acham na condição de DEUS ao julgar em nome do Estado.
    Sem dúvida ganhei o dia ao ler o texto da Juiza Dora Martins. E, mais ainda ao ver que junto a ela uma comissão de Juizes, ousaram a tirar a toca e sair da “toca” para ver em loc a situação problema, objeto do seu fazer justiça.

    Parabéns à Dra Dora e seus colegas, isso nos engrandece e inaugura um jeito novo de agir daqueles que, em nome do Estado devem fazer JUSTIÇA!!!!!!!!!!!

    Sem perder a ternura.

    J Climario
    Advogado – especialista em Dto do Trabalho e processo do Trabalho.
    Especializando-se em Gestão Pública

  2. Dra.Juíza Dora Martins,
    demos muitas graças pela visita de Vossas Mercês ao território Guarani, em Mato Grosso.É extraordinário o que realizaram, sobretudo numa época em que a luta dos Povos Indígenas caminha a duras penas. Seria importante que esse exemplo possa ser conhecido por outros Juízes e Juízas neste nosso Brasil. Vamos torcer para que esse exemplo tão importante crie raízes e se espalhe.
    Aqui no Ceará, viveram 42 Povos Indigenas. A matança que se realizou, com a chegada dos europeus, eliminou, sobretudo no Nordeste, grande parte desses Povos, apesar das lutas de resistência que ainda hoje continuam. Com a força dos “Encantados” dos Ancestrais Indigenas, estão identificados dezesete (17) Povos, embora somente um Povo Indígena no Ceará tem suas terras demarcadas, homologadas. Mas a luta continua!
    A criminalização é violenta demais tanto com as Lideranças indigenas como sobre os seus apoiadores.
    Esta vitória importante da presença de Vossas Mercês na terra Guarani, vai fazer parte da história de resistencia desses Povos. Muita força do nosso Deus para vocês.
    Maria Amélia, Missionária Indigenista – Fortaleza, Ceará.

  3. Contamos sempre, Madza. Não apenas no Currículo Global mas, sobretudo, no dia a dia das lutas das nossas vida. TP.

  4. Orgulho da Juiza Dora e de outros que buscam concretizar a Justiça Social e Ambiental.Textos como esse devem ser difundidos nas escolas , onde os indios continuam sendo vistos , na maioria dos casos, como abstrações , não como seres humanos de carne , osso, sonhos , esperanças , crenças , dor e alegria . Contem comigo no Projeto Curriculo Global http://www.globalcurriculum.net

  5. Parabéns a estes juízes(as) que tem realmente compromisso no “fazer a justiça”…

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