Paulo Moreira Leite*
O julgamento sobre cotas é uma boa oportunidade para se discutir um aspecto essencial da vida brasileira – o racismo.
A noção de que vivemos numa democracia racial chega a ser patética num país onde mais de 90% dos brasileiros disseram ao DataFolha, em 2008, na passagem dos 120 anos da abolição, que vivemos num país racista.
A visão é comprovada pelos fatos. Os negros estão nos piores empregos, nas piores escolas, nos piores bairros. Têm 30% da renda embora representem 50% da população.
Nessa situação, chega a ser risível ouvir a crítica de que as políticas de ação afirmativa irão criar um ambiente de “tensão racial”, ameaçar a “democracia racial” e forjar uma situação cultural chamada de “racialismo.” Essa noção existe desde a abolição quando, ao menos formalmente, os negros deixaram a condição de “coisa” para se transformar em “pessoas.”
As pessoas convencidas de que somos um país tão tolerante em relação a estas diferenças que elas se tornaram invisíveis poderiam, por exemplo, prestar atenção nos boletins de ocorrência de uma delegacia. Ali, todo brasileiro é identificado pela “cútis” como branco, pardo ou preto. Será que isso diz alguma coisa? Ou é apenas uma necessidade “técnica”?
É apenas indecoroso sustentar que vivemos num país onde o racismo não faz parte do cotidiano. Nem nossas leis anti-racistas, supostamente tão severas, conseguem ser cumpridas como se deve.
Isso se comprova até nos casos em que celebridades negras são vítimas, como aconteceu com o craque Grafite, do São Paulo, chamado de negro de merda e macaco durante um jogo de futebol, mas que desistiu de levar em frente uma ação na Justiça porque as chances de ser vitorioso eram quase nulas, como demonstrou reportagem de Solange Azevedo. Embora tivesse sido agredido por um jogador argentino, o que poderia ter sua utilidade neste caso, nem assim Grafite animou-se. Concluiu que estava perdendo tempo.
O racismo está na economia e na vida social, onde os negros foram discriminados na saída da escravidão, quando eram proibidos de ter acesso aos títulos de terra. E tiveram dificuldades muito maiores para conseguir empregos na indústria.
Levantamento do brasilianista George Reid Andrews em empresas de São Paulo dos anos 30 mostra que os negros eram os mais disciplinados no trabalho e os mais pontuais, quem sabe por ter consciência dos riscos maiores que corriam. Mas eram os que tinham mais dificuldade para serem promovidos e eram demitidos com maior facilidade.
E é claro que há muito o racismo foi incorporado ao Estado, como demonstram as estatísticas da violência policial, das prisões sem julgamento, das execuções. Nem vale a pena lembrar quem são os alvos permanentes abusos, não é mesmo?
O racismo também se encontra em nossa cultura, mesmo em autores fundamentais como José Alencar – que defendia escravidão como forma de civilização – e também Monteiro Lobato, que chegou a admitir em cartas pessoais que tinha inveja dos brancos norte americanos que criaram a organização de terror racista Ku Klux Klan. Quer mais?
Euclides da Cunha era adepto do racismo científico. Gilberto Freyre, o pai de nossa democracia racial, estava convencido de que as raças tem existência biologica, ou seja, há raças inferiores e superiores, e também dizia que o negro fora geneticamente dotado para o “trabalho pesado” nos trópicos, até porque conseguia suar por todas as partes do corpo e não apenas pelas axilas. Achou esquisito? Vai lá na Biblia do Demóstenes Torres, Casa Grande & Senzala. É um livro com méritos, como reconhecer o lugar do negro em nossa cultura, mas é absurdo imaginar que seja um retrato do Brasil.
A noção de democracia racial de Gilberto Freyre teve uma manifestação definitiva no fim de sua vida, quando ele defendia a surpremacia do colonialismo português sobre as sociedades negras da África.
Impregnado em nossa cultura, em nosso modo de vida, o racismo é uma realidade que nem todos brasileiros admitem com facilidade. Como explica o psicanalista italiano Contardo Calligaris “o mito da democracia racial é um mito que serve unicamente aos interesses dos brancos. Os brancos estão perfeitamente tranquilos para dizer que o racismo não existe.”
Para quem se encontra do lado agradável do guichê, a democracia racial é uma necessidade ideológica. Ajuda a encobrir com proclamações sentimentais a dura realidade da discriminação e da desigualdade imposta de cima para baixo.
Nem Demétrio Magnoli, o mais ativo advogado da democracia racial de nossos dias, consegue negar a difícil e particular condição do brasileiro negro. “Ninguém contesta o fato de que, como fruto da escravidão, a pobreza afeta desproporcionalmente pessoas de pele mais escura,” admite o professor, em “Uma gota de sangue” (página 363).
A pergunta, então, é uma só: o que se faz com isso?
A resposta, até agora, tem sido a seguinte: não se faz nada e deixa o tempo passar que o mercado vai resolver o “fruto da escravidão.” Grande hipocrisia. É claro que não resolveu. Nem era para ter sido diferente.
Vamos combinar, meus amigos: a discriminação alimentada pelo racismo não é uma realidade espiritual nem um acidente de percurso. Faz parte de nossa estrutura, do modo de vida. Permite aos brasileiros de “pele mais clara” viver num país onde metade da população não compete pelos melhores empregos, pelas melhores escolas nem pela promoção ao longo da vida. A discriminação oferece uma imensa mão de obra barata e disponível, que irá fazer nosso serviço doméstico, aceitar empregos mal remunerados e pouco considerados. Vão ser os mais explorados, os mais indefesos, o chão de nossa sociedade, as funções que ninguém quer fazer, os que terão menor respeito.
A democracia racial permite assistir a tudo isso e reagir assim: nós gostamos deles, apesar de tudo. Brasileiro é tão bonzinho, dizia Kate Lyra. Lembra?
A discriminação cria uma realidade dura e intolerável, onde a “democracia racial” funciona como uma espécie de melodrama ideológico – todos fingem acreditar que existe, mas nunca conseguem dizer aonde a viram pela última vez. É sempre uma teoria, uma literatura sem números.
E se você quer acreditar na lenda de que somos diferentes porque somos miscigenados, é bom lembrar que o racismo e o preconceito nunca impediram o acasalamento — nem o estupro — entre casais mistos.
Desde 1888 o país sabe o que seria preciso fazer para melhorar a sorte dos brasileiros negros, Nada se fez ao longo de doze décadas. São quantas gerações? Cinco? Dez? Doze?
Seria preciso dar escolas, distribuir renda, investir nas novas gerações. Aquilo que sempre se diz, até hoje. Nada acontece, nada se resolve. O país se industrializou, construiu universidades, hoje é a 6a. potencia mundial. Nada se faz de útil para metade dessa população. Por que?
Porque não interessa a quem tem o poder e o poder do dinheiro, embora o pais inteiro pudesse ser beneficiado com isso.
A vantagem material de manter uma parcela população subalterna, subjugada e superexplorada pode ser inconfessável – como o próprio racismo não se confessa – mas é inegável para quem se encontra do lado certo. Proporciona confortos vergonhosos, com poucos paralelos no mundo inteiro.
O julgamento que começa hoje no Supremo é um dos saldos positivos da democratização do país. Ela permitiu aos negros defender seus direitos e cobrar respostas diante de uma tragédia histórica. Se eles sofreram a mais prolongada e criminosa agressão histórica – a perda da liberdade, o confisco da cultura, o massacre social – e jamais foram reparados, é justo que tenham uma compensação.
O debate é político.
Reconheço, sim, o mérito do estudante de classe média que se esforça para entrar numa universidade pública. Ninguém consegue uma vaga na USP só porque é filhinho de papai.
Mas a discussão é outra. Num país onde todos os cidadãos devem ser iguais, é preciso reconhecer com honestidade que para milhões de brasileiros o peso da história está acima das forças de um individuo e de uma geração.
Num esforço para se manter tudo como está, é esperto falar em vitimização. Ajuda a fingir que não existem vítimas.
Apenas um sentimentalismo de senhor de engenho pode lamentar a “perda” da nossa “democracia racial”. Ela deixou de ser levada a sério nos meios acadêmicos na década de 50, e só foi recuperada nos anos 60 e 70 quando a ditadura do Brasil Grande dizia que vivíamos num país sem conflitos de classe nem de raça.
Não por acaso, o grande Gilberto Freyre, que tinha seus méritos intelectuais, até representou um certo avanço em seu tempo, não era um santo. Fazia campanha pela Arena. Seria um incompreendido?
É essa a ideia que estará em debate, hoje: somos um país de cidadãos iguais? Garantimos a competição, a justa recompensa pelo esforço de cada um, ou somos um país no qual metade da população já nasce em desvantagem histórica?
Não é um debate que só interessa aos negros, mas a todos os brasileiros preocupados com o futuro de seu país.
O país levou tempo mas aprendeu a encarar muitas dores de sua história. Ficamos menos hipócritas e, no fundo, menos covardes. Está na hora de fazer isso com o racismo e sua contrapartida, a discriminação.
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*Paulo Moreira Leite é Jornalista desde os 17 anos, foi diretor de redação de ÉPOCA e do Diário de S. Paulo. Foi redator chefe da Veja, correspondente em Paris e em Washington.
Enviada por José Carlos.
http://colunas.revistaepoca.globo.com/paulomoreiraleite/2012/04/26/e-hora-de-julgar-o-racismo/