Pataxó Hã-Hã-Hãe reocupam território para pressionar STF

Pataxó Hã-Hã-Hãe realizam ritual ao redor do túmulo de Galdino, liderança indígena assassinada em Brasília - Fotos: Renato Santana

Quinze anos após a morte de Galdino indígenas reocupam mais 90% de seu território 

Renato Santana, de Itabuna (BA) 

Ao invés do mármore frio, os túmulos dos cemitérios da Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu, sul da Bahia, se misturam à mata. Quanto mais velho é o morto, mais a vegetação se espraia sobre a terra. Longe de ser sinal de abandono, para o povo Pataxó Hã-Hã- Hãe é o cumprimento da profecia do ancião Samado Bispo dos Santos, uma das tantas lideranças que empenharam a própria vida na retomada completa do território indígena. “Sirvo de adubo para essa terra, mas daqui não saio”, professava Samado. Num desses lugares sagrados, onde os índios se misturam ao seu bem mais precioso, está Galdino Jesus dos Santos morto há 15 anos, no dia vinte de abril de 1997, depois de ser queimado por cinco jovens de classe média alta, num ponto de ônibus da capital do país.

Galdino era indígena Pataxó Hã-Hã- Hãe. De forma tímida, alguns jornais lembraram a morte do indígena, mas sem o atrelar aos episódios recentes no sul da Bahia. O que era para ser uma data simbólica de renovação do compromisso do Estado com direitos indígenas, tornou-se apenas mais uma vaga lembrança. Nem mesmo a terra pela qual Galdino lutava em Brasília foi garantida pelas autoridades.

Porém, 15 anos depois do assassinato do indígena, o povo Pataxó Hã-Hã- Hãe decidiu por reocupar cada palmo dos 54,105 mil hectares da Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu. Desde janeiro deste ano, o número de áreas retomadas passam de 70. Como acontece há quase um século, a caminhada rumo à plenitude do território tradicional é marcada pela violência e criminalização.

Na entrada do município de Pau Brasil, um grupo da tropa de elite da Polícia Militar baiana, fortemente armado, revista veículos e interroga os ocupantes. Desde o início das retomadas indígenas, Pau Brasil, Itaju do Colônia e Camacan, municípios que abrangem a terra indígena, foram invadidos por pistoleiros, na maior parte das vezes contratados como seguranças das fazendas. São estes jagunços com armas de grosso calibre que vão para o confronto com os indígenas. Os fazendeiros afirmaram em jornais que pretendiam retirar os indígenas da fazenda para não dar a entender ao Supremo Tribunal Federal (STF) – que vota a nulidade dos títulos dos invasores – que a questão já está resolvida. Desde a primeira retomada, em 1982, já foram executados mais de 30 lideranças do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe. Como ainda restam áreas não retomadas, os pistoleiros ficam pela cidade, ameaçando moradores, ou buscando se entrincheirar nas fazendas em posse dos latifundiários.

Mentiras 

Além da pistolagem fazer parte do cotidiano dos indígenas, notícias plantadas na imprensa baiana reverberam declarações de líderes de sindicatos rurais criminalizando os Pataxó Hã-Hã-Hãe. Ao contrário do que foi noticiado em veículos de comunicação em todo país, a delegada da Polícia Federal de Ilhéus, Denise Dias, afirma que não existem registros de sequestros, desaparecimentos e assassinatos de fazendeiros ou trabalhadores rurais.

“Os índios não mataram nenhum fazendeiro e nenhum pistoleiro. Em todos esses anos de luta, foram mais de 30 lideranças nossas assassinadas. Retomamos as fazendas sem matar ninguém, porque fazemos pelo sangue derramado do nosso povo. Totalmente diferente do que eles contam”, justifica o cacique Nailton Muniz Pataxó Hã-Hã-Hãe.

O povo possui mais de um cacique e Nailton é um dos mais antigos. Ele lembra do massacre sofrido por seu povo para justificar a recente onda de retomadas. “Sentimos também com os interesses políticos nas nossas terras. Fora o projeto de uma hidrelétrica no rio Pardo, que sabemos que se for realizado, uma parte importante da nossa terra se perderá”, pontua.

O cacique não se esquece de Galdino e de outros mortos na luta pela terra. “Completam 15 anos da morte de Galdino. Queria ter aqui a alegria de estar em paz em nosso território. Queria ver os assassinos do Galdino e de outras lideranças presos. Queríamos prender o fazendeiro que castrou o Índio Djalma, que arrancou suas unhas, arrancou os dentes, o couro cabeludo, que o fez engolir os próprios testículos e um quilo de sal até morrer”.

Cacique Ilza Rodrigues da Silva salienta que as ocupações foram pacíficas, mas a postura dos jornais e das elites agrária e política é de criminalizá-los. A Polícia Federal acompanha de perto as ações, assim como a Fundação Nacional do Índio (Funai).

A comunidade indígena, conforme Ilza, é bem vista pela população de Pau Brasil, porque sabe que os indígenas são importantes para a cidade. “Acusam os índios de praticar mortes, como a da fazendeira Ana Maria (ver matéria) que foi pelas mãos dos pistoleiros. Queremos que investiguem. Os fazendeiros dizem que são seguranças: eu penso que segurança é a polícia, o que tem ali são pistoleiros”, diz.

O cacique Gerson de Souza Melo

A situação de ocupação do território pelos indígenas nunca é fixa. Algumas fazendas retomadas foram recuperadas pelos pistoleiros, sobretudo na região do rio Pardo. O que é certo é que não há mais fazendeiros, trabalhadores ou gado nas áreas. Conforme o cacique Gerson de Souza Melo, dos 54 mil hectares, ao menos 50 mil estão na posse dos indígenas, por isso os conflitos são permanentes.

Memória e resistência

Como em um ciclo que se conclui, outras datas se somam aos 15 anos da morte de Galdino e representam a memória usada pelos indígenas para, desde 1º de janeiro deste ano, tocarem uma série de retomadas que garantiram a ocupação de quase a totalidade das áreas invadidas por fazendeiros desde a década de 1940. Tais invasões foram facilitadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) [órgão do oficial do governo anterior a Funai], que passou recibos de arrendamentos de lotes da terra indígena aos latifundiários, mesmo com ela já demarcada pela União. Duas décadas depois, nos anos de 1960, a ocupação irregular motivou o então governador baiano, Antônio Carlos Magalhães, a emitir títulos de posse ilegais aos ‘proprietários’ para ‘legalizar’ a situação dos invasores. A justificativa era de que naquela região os índios estavam extintos. São esses títulos que estão esperando a votação dos ministros do STF, que decidirá se eles são válidos ou não. O processo corre desde 1982, ou seja, há 30 anos.

No mesmo dia da morte de Galdino, os Pataxó Hã-Hã-Hãe trouxeram à memória os 20 anos da morte da indígena Barretá, retirada da condição de isolamento pela equipe de atração do SPI. Barretá falava a língua Pataxó Hã-Hã-Hãe e antes de morrer, já com idade bem avançada, deixou uma cartilha oral, subsídio usado nas tentativas de se recuperar a língua do povo. Barretá foi retirada da mata à força ao lado de outros indígenas de uma área com mais de 200 mil ha, reconhecida pelo Estado em 1926. Em 1936 a área foi reduzida para os atuais 54 mil hectares.

O cacique Nailton nasceu numa aldeia chamada Rancho Queimado, que tem esse nome pelo fato de que no lugar foi construído um rancho para os marcadores delimitarem a terra indígena, em 1926. Os fazendeiros atearam fogo na moradia e daí surge a denominação da aldeia.

Apenas dez anos depois os trabalhos foram retomados. Iline Brasileiro da Silva, filho de um ex-funcionário do SPI, lembra o período posterior à demarcação. Durante a década de 1940, Iline viveu no posto indígena ao lado de seu pai. “O SPI mandava arrendar as terras. Foram muitas mortes mesmo. Todo fazendeiro era arrendatário e os que não eram meu pai expulsava”, recorda o não-indígena em uma pacata esquina de Itaju do Colônia.

Era um tempo, de acordo com depoimentos deixados por Barretá, em que os indígenas chamavam seus algozes, fossem do SPI ou fazendeiros, de papai. “Ela dizia que os castigavam amarrando-os na árvore (que está na aldeia até hoje) sob o sol, com espancamentos e davam sal para eles comerem. Nesse sofrimento, os índios choravam e chamavam: papai, papai, papai. Tudo isso justifica retomarmos o que é nosso e foi roubado com muito sofrimento do nosso povo”, afirma o cacique Reginaldo Pataxó Hã- Hã-Hãe.

Ameaças

Nas últimas três décadas de lutas, as ameaças de morte contra as lideranças Pataxó Hã-Hã-Hãe foram frequentes. “Eu já fui sequestrado por fazendeiro, preso duas vezes, saí em porta-mala de fusca da cidade. Depois que me elegi vereador, o carro da Funai que me levava para as sessões e buscava foi atacado e ficou crivado de tiros. Tem um pistoleiro chamado Remilson que mandou recado dizendo que só sai da área quando estourar minha cabeça. Já me caçaram na estrada. Corro risco de morte. Isso já vem de muitos anos. Eu estou com medo de morrer”, denuncia o cacique Gerson de Souza Melo.

As violências não são praticadas apenas por pistoleiros e não atingem somente as lideranças. “A violência aumentou. Não deixam nem o carro pipa entrar na área para trazer água para a comunidade. Estamos com 1.200 alunos sem estudar, porque não podem sair da terra indígena. Esperamos que o julgamento saia logo. A terra da gente foi demarcada em 1936. Essa ação que está no supremo é para julgar nulidade de título, não a demarcação. Então, como é que o STF vai julgar como legítimo os títulos se a terra é da União? Como o governo da Bahia dá título de uma terra que não é dele? Pedimos aos ministros que pensem nisso”, alerta Gerson.

As declarações são ainda mais contundentes quando se observa o tempo levado para a decisão da Justiça. No processo do STF está claro: dos quase 360 invasores da área indígena, permanecem no local cerca de 170. A maioria não possui títulos de posse e já foram até indenizados pela Funai. Além disso, quatro perícias foram feitas e comprovaram a ocupação nos 54,105 mil hectares. “Numa das fazendas do Durval Santana que ainda não retomamos está um dos marcos”, se indigna Gerson. O sentimento se expande aos outros caciques, caso do jovem Josivaldo Reis dos Santos.

“Aqui queremos a terra. Índio não quer casa bonita, sede de fazenda. Queremos a terra, que é nossa. Somos um povo de raízes e aqui é nossa casa. Perto dos dez anos de idade começo a lembrar de muita gente que morreu. Samado, meu avô, foi preso pelos homens de Gerson [primeiro fazendeiro de quem os indígenas retomaram terras] e trancado dentro de um banheiro cheio de imundices. Isso é considerado tortura hoje em dia. Os mais velhos correram longas datas pelo mato para fugir de pistoleiros”, encerra Josivaldo.

http://www.brasildefato.com.br/node/9422

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