As sombras na parede da caverna

Thiago Viana*

Antes de qualquer coisa, uma correção na réplica “Argumento frágil e equivocado”, do pastor Silas Malafaia: o artigo “O pastor e o PLC 122” é de minha autoria, e não do sr. Diogo Molina, de quem saí em defesa.

Deixando de lado os rasteiros ataques pessoais a mim dirigidos, presumirei que o silêncio do pastor significou concordância em relação aos meus argumentos sobre o PLC 122/2006: (a) há analogia entre racismo e homofobia, daí a pertinência da inclusão de “orientação sexual e identidade de gênero” na Lei Antirracismo; (b) o PLC não é uma jabuticaba; (c) há projetos absurdamente inconstitucionais de autoria da bancada evangélica; (d) “orientação sexual” inclui heterossexuais (além de idosos e pessoas com deficiência), daí ser descabido falar em “lei dos privilégios”, “ditadura gay” e tolices do tipo; e (f) não se cria lei nova, apenas se inclui novos grupos na Lei Antirracismo. Contudo, outros pontos merecem ser esmiuçados em razão de, mais uma vez, o pastor passar ao largo de questões básicas.

O verdadeiro texto

Como se pode ver na tramitação do projeto (fonte que o pastor insiste em ignorar), quando me referi a “projeto original”, com ele quis dizer o PL nº 5003/2001 (nomeado PLC 122/2006 após iniciar sua tramitação no Senado), aprovado na Câmara dos Deputados por unanimidade, de autoria da então deputada Iara Bernardi. São dele alguns dispositivos que entendo inconstitucionais, embora colegas meus pensem o contrário. Contudo, em 10/11/2009, a Comissão de Assuntos Sociais aprovou a Emenda nº 1 – CAS (substitutivo), de autoria da então senadora Fátima Cleide, cujo texto faço questão de transcrever em resposta ao desafio do pastor para publicá-lo:

“Emenda nº 01 – CAS (substitutivo)

Projeto de Lei da Câmara 122, de 2006

Altera a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, e o § 3º do art. 140 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para punir a discriminação ou preconceito de origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero, e dá outras providências.

Art. 1º A ementa da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, passa a vigorar com a seguinte redação:

‘Define os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero.’ (NR)

Art. 2º A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, passa a vigorar com as seguintes alterações:

‘Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero.’ (NR)

‘Art. 8º Impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares ou locais semelhantes abertos ao público. Pena: reclusão de um a três anos.

Parágrafo único: Incide nas mesmas penas aquele que impedir ou restringir a expressão e a manifestação de afetividade em locais públicos ou privados abertos ao público de pessoas com as características previstas no art. 1º desta Lei, sendo estas expressões e manifestações permitida às demais pessoas.’ (NR)

‘Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero. Pena: reclusão de um a três anos e multa.’ (NR)

Art. 3º O § 3º do art. 140 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passa a vigorar com a seguinte redação:

‘§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero:

(NR)

Art. 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.’”

Selinho hétero e selinho gay

O substitutivo da senadora Marta Suplicy foi atacado porque construído em parceria com o então senador Demóstenes Torres e Marcelo Crivella, dois inimigos do projeto. No site www.plc122.com.br (seção “Críticas ao novo PLC de Marta”) e no Movimento #PLC122deVerdade, vários colegas e eu mostramos (com apoio de deputados como Jean Wyllys e do voto em separado da então senadora Marinor Brito) os equívocos e recuos inaceitáveis do projeto Marta/Demóstenes/Crivella e exigimos não o retorno ao projeto original (que seria o PL nº 5.003/2001!), mas sim, ao substitutivo da ex-senadora Fátima Cleide, acima transcrito porque o entendemos como o mínimo razoável.

Isso posto, o resto do artigo do pastor (por fazer referência ao PL nº 5003/2001) é imprestável porque discute a redação de um projeto que não mais existe, sobretudo as críticas ao artigo que fala em prática de qualquer tipo de ação violenta, constrangedora, intimidatória etc. – um tropeço numa causa nobre, que, deve-se frisar, já foi corrigido. É discurso vazio pregado por ele e demais opositores do projeto desde 10/11/2009 até os dias de hoje, servindo apenas para desinformar a sociedade brasileira.

Sobre a questão de manifestar afetividade, apenas se quer dizer o seguinte: onde a manifestação de um casal homoafetivo for permitida, deve-se permiti-la à LGBTs também – salvo, é claro, o beijo no casamento religioso. No antigo texto, constava apenas LGBTs porque, ao que me consta, não há casos de casais heterossexuais expulsos de um bar porque deram um selinho.

certo e o errado

Para quem gosta tanto de citar a Constituição, o pastor ignora que a liberdade religiosa e de expressão não são absolutas. A Lei Antirracismo, por exemplo, pune discursos racistas proferidos onde quer que seja, inclusive no púlpito de uma igreja. Os crimes de calúnia, injúria e difamação são crimes de opinião.

Numa interpretação mais tradicionalista (e convenientemente seletiva), a Bíblia diz que ser LGBT é abominação (comer camarão também o é), pecado e religiosos podem afirmar isso, mas nada afirma ou leva à conclusão de que LGBTs são pedófilos, por exemplo, como muito se ouve – o que é uma mentira, pois pedofilia independe de orientação sexual, segundo estudo publicado no British Journal of Psychiatry. Se um pastor dissesse isso, caso aprovado o projeto, seria crime.

Ao juiz não cabe dizer o que é certo ou errado em interpretação bíblica, mas ele deve analisar se houve abuso no exercício da liberdade de expressão ou religiosa. A lei pune o abuso do direito e não o uso legítimo dele, o que vale para todos e todas. Hoje, pastores evangélicos não podem praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito contra religiões de matriz africana, embora isso seja comum, pois estariam, em tese, cometendo o crime do art. 20 da Lei Antirracismo.

“Crimes de ódio”

A decisão judicial define se prevalecem, no caso concreto, os direitos fundamentais do grupo protegido pela lei ou a liberdade de expressão ou religiosa. A lei somente estabelece um parâmetro. Por demais óbvio que o juiz pode errar, como acontece em qualquer processo, mas para corrigir decisões injustas há os recursos aos tribunais à disposição da vítima e do réu.

Pretendeu o pastor me dar uma aula de processo legislativo, mas quem fala do que não sabe é ele: o projeto original (PL n° 5003/2001) foi revogado pela Emenda nº 01 (substitutivo da ex-senadora Fátima Cleide), aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais, e é ele que vale até que a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa aprove o PLC 122/2006 (seja qual for a redação). O pastor não cometeria tamanho equívoco (leigo, como de costume) caso tivesse procurado orientação de sua banca de advogados, da qual tanto se gaba.

Como de praxe, opastor comete a falácia de falsa analogia (desprezam-se diferenças essenciais entre os objetos ou acontecimentos comparados): na mesma linha da afirmação por ele feita de que, liberando a união estável homoafetiva, dever-se-ia liberar também relação com animais e cadáveres (como se eles tivessem capacidade jurídica para contrair casamento) – aliada à falácia do declive escorregadio–, compara o número de homicídios de LGBTs (260) ao número total de homicídio no Brasil (50 mil). Contudo, a comparação só será legítima em relação a outros grupos sociais vulneráveis (mulheres, negros, idosos, crianças) e não com relação ao total de homicídios, que tem causas as mais diversas, diferentemente daqueles onde uma condição/escolha pessoal da vítima é o motivo do crime, daí a punição mais rigorosa dos chamados “crimes de ódio”.

A cruzada contra o PLC 122

As estatísticas apresentadas pelo Grupo Gay da Bahia podem ter certo grau de imprecisão, mas não se pode ignorar que são usadas, com boas razões, como fonte de dados sobre crimes de ódio homofóbico no Brasil não só pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, como também pelo Departamento de Estado dos EUA e até mesmo pela ONU.

O desafio ao debate está de pé – que tal no novo programa de TV Fala Malafaia, pastor? –, mas não desejo aqui um interminável cabo de guerra de artigos para ficar mais uma vez demonstrado que frágil e equivocado é o artigo do pastor, da primeira letra ao ponto final. Enfim, mais um episódio nessa cruzada contra o PLC 122/2006, a qual, pelo menos do ponto de vista jurídico, é um retumbante fracasso, como foram as campanhas pela não aprovação da união estável homoafetiva, não liberação do “aborto” de anencéfalos, não liberação do casamento homoafetivo por ele lideradas.

Se, a partir de hoje, o pastor insistir com os mesmos argumentos é porque, deliberadamente, prefere entreter a si próprio e a quem o segue com as sombras na parede da caverna.

*Advogado e militante LGBT.

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