Sociedade conservadora é maior barreira para índios, diz diretora da Funai

Mário Vilela / Funai
"Quando se fala em demarcação de terras não há um entendimento de que é importante para o ordenamento do território nacional definir as terras indígenas", lamenta Auxiliadora | Foto: Mário Vilela / Funai

Vivian Virissimo

“A maior barreira para os povos indígenas é que a sociedade brasileira está cada vez mais conservadora”, declarou Maria Auxiliadora de Sá Leão, diretora de Proteção Territorial da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Em entrevista exclusiva ao Sul21, ela também apontou como barreiras a crescente judicialização dos assuntos ligados a novas demarcações e as articulações da bancada ruralista para retirar do Executivo a homologação de terras indígenas.

“O conflito no campo existe porque a questão fundiária no Brasil não foi resolvida. Quando se fala em demarcação de terras não há um entendimento da sociedade de que é importante para o ordenamento do território nacional definir as terras indígenas, assim como a terra dos quilombolas e de outras populações. Só assim a gente vai ter segurança jurídica”, sustentou.

A antropóloga lembrou que existem políticas indigenistas no país há 102 anos, quando foi criado o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e contou que a FUNAI monitora 673 terras indígenas já homologadas ou em processo de estudos de tradicionalidade. Para ela, a aprovação da PEC 215 que transfere do Executivo para o Congresso Nacional a demarcação de terras indígenas é um grande retrocesso.

“Quem vai fazer estes estudos no Congresso Nacional? Na realidade, o Congresso Nacional se mostra cada vez mais conservador e anti-indígena. Significa tirar de uma área técnica para levar para uma negociação política. Logicamente, os índios serão novamente prejudicados”, avaliou. Confira a entrevista.

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Índios protestaram na Câmara após aprovação de relatório favorável à PEC 215/2000 | Foto: Saulo Cruz/Ag. Câmara

Sul21 – Na sua avaliação, quais são as maiores barreiras para demarcações de terras no país?

Auxiliadora Leão – A maior barreira é que a sociedade brasileira está cada vez mais conservadora. O conflito no campo existe porque a questão fundiária no Brasil não foi resolvida. Quando se fala em demarcação de terras não há um entendimento da sociedade de que é importante para o ordenamento do território nacional definir as terras indígenas, como a terra dos quilombolas e de outras populações. Só assim a gente vai ter segurança jurídica. Numa sociedade extremamente conservadora essa é uma dificuldade muito grande. Outra dificuldade está no Congresso Nacional, que logicamente reflete esse conservadorismo da própria sociedade, principalmente com agronegócio através da bancada ruralista. Além disso, temos a judicialização dos estudos e das demarcações por parte dos pecuaristas e pelos governos estaduais. Os governos estaduais, inclusive, estão sendo bastante conservadores neste diálogo. Nós estamos com dificuldade de concluir os procedimentos e quando não se conclui os procedimentos aumentam os conflitos no campo.

Sul21 – O que representa para os povos indígenas a demarcação de novas terras pelo Congresso Nacional se a PEC 215 for aprovada?

Auxiliadora Leão – Eu acho um grande retrocesso. A PEC 215 representa tirar do Executivo, tirar da área técnica, do órgão indigenista os estudos. Demarcação de terras indígenas não é uma obra de criação, é um reconhecimento, um estudo daquilo que manda a Constituição. Quem vai fazer estes estudos no Congresso Nacional? Na realidade, o Congresso Nacional se mostra cada vez mais conservador e anti-indígena ao tirar (a discussão) de uma área técnica para levar para uma negociação política. Logicamente, os índios serão novamente prejudicados. A demarcação de terras indígenas deveria ser entendida como um conjunto de ações de regularização fundiária, de fiscalização que é o que garante e consolida os espaços necessários para que os índios vivam neste país de acordo com a Constituição. A implantação dessa política de proteção, de regularização fundiária deve ser reconhecida como parte de uma macro-política de ordenamento. Então só se terá segurança jurídica no país, em termos de terra, com a regularização fundiária. Nós temos um país que não resolveu esta questão em termos territoriais. Resolver as terras indígenas vai contribuir para a resolução dos conflitos, combate dos ilícitos, proteção do meio ambiente e consolidação da presença do Estado. Tirar do executivo a demarcação de terras indígenas e deixá-la para o Congresso Nacional, como se quer, é realmente um retrocesso.

Sul21 – Qual foi a primeira terra indígena demarcada no Brasil? Quantos povos indígenas possuem titulações de terras hoje no país?

Auxiliadora Leão – Em primeiro lugar, as terras indígenas não têm titulação, elas são reconhecidas. A posse é exclusiva dos índios, mas o bem é da União. Não é como os quilombolas. O artigo 231 da Constituição reconhece aos índios a sua localização, costume, língua, tradição e o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Então é um direito que vem antes do Direito, é o direito originário. Por isso tem estudos que são feitos pela Funai com antropólogos, historiadores, ambientalistas. É um GT, um grupo técnico que junto com as populações indígenas vão definindo os limites daquela terra. Não é a terra imemorial. Como se sabe, nós tínhamos povos no Brasil inteiro. São apenas aquelas terras que são ocupadas hoje de forma tradicional pelos povos. Não estamos falando de um índio ou de um cidadão, estamos falando de um povo com uma organização diferente – e que o Brasil, através de seu Estado soberano, reconhece como legítimo ocupante daquelas terras. Com posse exclusiva, sem poder vendê-las. Elas são inalienadas, indisponíveis, mas a terra é um bem da União e a posse exclusiva é dos povos.

Sul21 – A primeira terra demarcada foi o Parque Nacional do Xingu em 1961?

Auxiliadora Leão – Não. A primeira terra indígena demarcada foi na época do SPI, Serviço de Proteção aos Índios e aos trabalhadores nacionais, que foi criado em 1910, pelo Marechal Rondon. Portanto, o Brasil tem 102 anos de indigenismo. Não era como hoje, a legislação e a Constituição eram outras. O SPI reservava e demarcava terras sem, na maioria dos casos, pensar nesse bem maior que é a territorialidade indígena. Então essas terras no Sul, Sudeste, parte do Centro-Oeste, parte da Amazônia e Nordeste não correspondiam ao tamanho do território indígena.

Sul21 – Em que contexto foi criado o SPI?

Auxiliadora Leão – O SPI foi criado por causa da luta entre índios e colonos no Sudeste e Sul do país na época da colonização alemã e italiana e outras que chegaram ao país com subsídios do governo. Nesse período, estradas foram abertas para fazer a ligação entre o grande centro do país e o interior. E o que estava entre o grande centro e o interior? Os índios. Principalmente os Guarani, Kaingang e os Choklen. Então era a luta desses povos que estavam sendo esbulhados e expropriados de seus territórios que leva o Estado brasileiro, com o Marechal Rondon, a criar o SPI. É uma coisa interessante, pois sempre se pensa em Amazônia, mas na realidade a luta que chamava a atenção do mundo estava no sul do Brasil.

Sul21 – Pode dar exemplos de terras indígenas que foram demarcadas neste período?

Auxiliadora Leão – Por exemplo, a terra dos Pataxós Hã-hã hãe que está em litígio no sul da Bahia, que está no Supremo, teve seu reconhecimento feito pelo SPI no princípio do século XX. Outras também, como por exemplo, as terras no Mato Grosso do Sul, como a reserva de Dourados, outras terras no Amazonas em 1917. Nós temos uma gama de terras indígenas, que hoje estamos reestudando porque não atenderam esses povos que tiveram suas terras griladas, não reconhecidas, esbulhadas. Reestudamos essas terras para dar condição para que esses povos continuem mantendo sua organização social, política e econômica, e se mantenham, como manda a Constituição, enquanto grupos ou povos diferenciados.

Cerca de 12% do território brasileiro é destinado a indígenas, segundo diretora da Funai: "o que já está pronto, está pronto. Não estamos revendo nada" | Foto: Marcello Casal Jr/ABr

Sul21 – Qual a porcentagem do território brasileiro destinado aos povos indígenas?

Auxiliadora Leão – Cerca de 12% do território. Esse número é de terras que estão sendo estudadas, reconhecidas, declaradas, demarcadas, homologadas, registradas. Ou seja, que tenham o procedimento administrativo iniciado ou concluído. O que já está pronto, está pronto, principalmente na Amazônia Legal que grande parte foi feita na década de 1980. Não estamos revendo nada. A única coisa que a gente revê ou reestuda é quando há uma solicitação indígena porque estão em terras extremamente diminutas. Mas não é o caso, por exemplo, da Amazônia. E nós estamos reestudando ou estudando pela primeira vez terras no Sul, Sudeste, Nordeste, Mato Grosso do Sul, como é o caso dos Guarani Kaiowá.

Sul21 – Um dos grandes focos de conflitos hoje é no Mato Grosso do Sul.

Auxiliadora Leão – Não. Também no Mato Grosso do Sul. Porque nós temos muitas terras indígenas sendo identificadas e declaradas no Sul e no Sudeste. Por exemplo, as terras indígenas de Santa Catarina não conseguimos demarcar, apesar de declaradas, porque estão jucidializadas. No Rio Grande do Sul, nós temos várias terras em estudo e vários conflitos, estamos com dez procedimento administrativos já iniciados e ainda não concluídos que podem resultar em até mais de dez terras indígenas. Na região Sul do país, nestes últimos cinco anos, de 2007 a 2012, na gestão do presidente (da Funai) Marcio Meira, nós declaramos na região Sul 12 terras indígenas. Foram homologadas 2 terras indígenas, ou seja, ratificadas pela presidência da Republica, 8 foram delimitadas e 31 novos estudos foram iniciados, sendo que deste número 10 estão no Rio Grande do Sul.

Sul21 – Com estão sendo feitos estes procedimentos administrativos no Mato Grosso do Sul, o estado com a segunda população indígena e com o menor território demarcado?

Auxiliadora Leão – No Mato Grosso do Sul, começamos os procedimentos administrativos com 5 GTs, com antropólogos, ambientalistas, pessoal da área fundiária, em 2007 e 2008. Nós tivemos várias dificuldades e ainda estamos tendo. Essas áreas foram extremamente judicializadas. Os grupos técnicos muitas vezes não conseguiram entrar porque o governo do Mato Grosso do Sul (André Puccinelli, do PMDB) ingressou na justiça contra os trabalhos da Funai. Esse foi um processo muito longo e os antropólogos estão entregando os relatórios, que estarão sob análise da Funai. Logo que estas análises terminarem entraremos com o processo de delimitação dessas terras. Eles foram ver toda a situação de todo o território. Era preocupação desde que nós assumimos a Funai há cinco anos de levar adiante ou iniciar estudos para a demarcação e reconhecimento das terras do MS. Infelizmente não conseguimos concluir o processo ainda, mas ele está bastante avançado. Esses GTs são compostos por, no mínimo, um antropólogo, ambientalista, geógrafo, cartógrafos, agrônomos que fazem a caracterização fundiária. Também convidamos representantes do Estado ou do Incra. No mínimo de 5 a 6 pessoas participam dos grupos, dependendo da complexidade da área.

Em várias comunidades, como em Kurusu Amba, os indígenas vivem em situação precária | Foto: Wilson Dias/ABr

Sul21 – Qual é o panorama dos conflitos no Brasil?

Auxiliadora Leão – A questão do campo não se restringe ao MS. Podemos dizer que o caso do MS é emblemático porque nós temos uma população indígena confinada. Os conflitos estão no Brasil inteiro, na Amazônia, na Bahia, no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, em todos os locais onde temos problemas territoriais com invasões de territórios indígenas. Nós temos de um lado a sociedade indígena que quer, precisa, necessita ter seus direitos garantidos e reconhecidos e de outro lado pecuaristas, garimpeiros, madeireiros, mineradores, arrendatários. No Sul, temos os pequenos proprietários que também são atingidos por essa demarcação, e temos que pensar em como lidar com essa situação.

Sul21 – Como a Funai faz a mediação de conflitos nesses locais?

Auxiliadora Leão – A mediação de conflitos é feito através do monitoramento territorial, fiscalização e vigilância para combater os ilícitos. Para isso, a Funai tem parceria com o Ibama e a Polícia Federal principalmente para o combate aos ilícitos ambientais, ou seja, extração de madeira e garimpo em terras indígenas. A mediação é não deixar que as terras indígenas sejam invadidas e que os índios percam sua posse exclusiva nos territórios. Temos que pagar, por exemplo, quando existem benfeitorias de boa fé dentro de território demarcado, o Incra tem que reassentar as pessoas se forem clientes da reforma agrária. Tudo isso pode ser chamado de mediação de conflitos.

Sul21 – Todo esse trabalho é de bastante complexidade. Quantas pessoas atuam na Funai hoje?

Auxiliadora Leão – Essa é uma situação extremamente difícil em termos de alcance, porque nós temos uma Funai para atuar no Brasil inteiro, com poucos funcionários. Nós temos que fiscalizar 12% do território nacional e nós não temos quatro mil funcionários no país inteiro. Temos pouco mais de 3 mil funcionários, sendo que em dois anos grande parte dos funcionários estarão aposentados. Em 2008 fizemos um concurso, já foram contratados 700 e estaremos chamando até 2013 novos funcionários. De qualquer maneira ainda é muito pouco para a missão da instituição. Já melhoramos muito, fizemos uma reestruturação, estamos com gente nova, mas ainda precisamos de muito mais.

Wilson Dias/ABr
"Em Dourados, estamos com uma ação da Polícia Federal, da Funai e da Força Nacional. Estamos numa fase de discussão e já com um termo de cooperação com o governo do MS, para que a gente possa fiscalizar as terras indígenas" | Foto: Wilson Dias/ABr

Sul21 – Qual sua opinião sobre a atuação da Força Nacional na reserva de Dourados, no MS, onde há um grande confinamento de índios?

Auxiliadora Leão – Em Dourados, estamos com uma ação da Polícia Federal, da Funai e da Força Nacional. Estamos numa fase de discussão e já com um termo de cooperação com o governo do MS, para que a gente possa fiscalizar as terras indígenas. Não impede que, para conter o tráfico de drogas, alcoolismo e outros, o governo intervenha dentro das terras indígenas. Mas tem que ser uma cooperação com o governo federal. De uma forma contínua, estamos tentando em outros locais do Brasil também fazer termos de cooperação com os governos estaduais. A preocupação com Dourados é porque é uma área de confinamento realmente. É muita gente.

Sul21 – Grande parte da sociedade brasileira desconhece que cerca de 70 povos indígenas vivem de forma isolada, sem nenhum contato com não-índios. Os povos estão em quais estados brasileiros? Como a Funai trabalha com esse monitoramento?

Auxilidora Leão – Povos em isolamento voluntário ou povos indígenas isolados estão no Amazonas, Roraima, Pará, Rondônia, Mato Grosso, Maranhão e Goiás – que está fora da Amazônia Legal. A Funai trabalha com frentes de proteção dentro de uma coordenação chamada de Índios Isolados e de Recente Contato. Essas frentes têm a missão de proteger os territórios e esses povos. Muitos desses povos estão em terras já homologados, temos muitos povos isolados em crescimento e que são monitorados de várias maneiras, por expedições ou com sobrevoo que identificam onde estão as malocas. A gente sabe onde esses povos estão, mas não é política da Funai fazer contato. O contato só é feito se esses povos agora se eles quiserem. A questão hoje do Estado é proteger o território e a vida desses povos, ou seja, se constatamos que há uma avanço da colonização, a gente interdita essas áreas para que não haja conflito. É um monitoramento permanente para que eles possam ter a vida deles de forma autônoma. Em 2007, nós tínhamos cinco frentes e agora nós temos 12 frentes atuando. Não significa que estes povos isolados não saibam que exista o outro, seja o outro, outros indígenas, ou nós. Em alguns momentos eles já tiveram conflito com a nossa sociedade e eles se recusam a participar ou entrar neste contato ou nesse diálogo com a gente. É uma forma de manter essa autonomia e manutenção de toda essa organização.

Sul21 – Outro tema que vem ganhando destaque é a “consulta a povos indígenas” no caso de construção de usinas ou estradas que afetam de alguma forma esses territórios. Como é o procedimento que vem sendo adotado pela Funai?

Auxiliadora Leão – A consulta é prevista na Convenção 169 da OIT e ainda está sendo discutida. Na quarta-feira (18) teve uma reunião com representantes indígenas para ver como serão feitas essas consultas. Ela tem que ser feita, mas ela tem que ser discutida para ser legalizada. Esse tema não é da minha diretoria, mas no momento a consulta aos povos feita pela Funai leva informações sobre o que está acontecendo, qual é o empreendimento e como estes empreendimento poderão afetá-los para que eles tenham total conhecimento. É importante colocar que o licenciamento não é feito pela Funai, e sim pelo Ibama, desde estradas até hidrelétrica. Nós fazemos todo o acompanhamento e os termos de referência para que se inclua nos estudos feitos pelas empresas o impacto aos povos indígenas. A consulta ainda não está regulamentada, está sendo discutido pelo Itamaraty e a presidência da República com os índios e quilombolas.

http://sul21.com.br/jornal/2012/04/sociedade-conservadora-e-maior-barreira-para-indios-diz-diretora-da-funai/

Comments (1)

  1. Conservador é o papo furado dessa ongueira que vive parasitando os índios !!!!
    Será que a nova Presidenta da Funai ainda vai deixar esse pessoal da CTI cada vez mais milionário ?????

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