RJ – Costa Verde, onde dança e História se misturam como forma de resistência

Encontro de gerações na Ciranda de Tarituba / Foto: Ponto de Cultura Escola Ciranda de Taritubapor Clarissa Vasconcellos

Como é a dança no interior do Estado do Rio de Janeiro? Qual é a produção artística em municípios como Paraty e Teresópolis? E o ensino? Para responder a essas questões, o idança, com apoio da Secretaria de Estado de Cultura (SEC), fez um levantamento nos quatro cantos do Estado, buscando entender melhor o que acontece fora da capital. A colaboradora Clarissa Vasconcellos entrou em contato com secretarias municipais de cultura, Ongs e artistas locais e traz para nós um raio-X da dança fluminense. Abaixo, segue o segundo texto. Aproveite a leitura!

Um canto do Estado do Rio de Janeiro, muito conhecido por suas belezas naturais, guarda relíquias imateriais de uma história embalada pela música e pela dança. Reflexo da miscigenação brasileira, que se imprime não só na pele e no rosto dos habitantes da Costa Verde, mas também em suas manifestações culturais. Entre elas, jongos com origens nos quilombos e cirandas que misturam a cultura indígena com a dos imigrantes europeus.

Angra dos Reis, conhecida nacionalmente por seu turismo de alto luxo e por suas 365 ilhas (uma para cada dia do ano, gostam de dizer os caiçaras), também tem um lado muito popular, que sobrevive nas comunidades do continente. Paraty dispensa apresentações, pois se transformou em um dos centros irradiadores de cultura do país, com festivais de música, gastronomia, dança e sua famosa Flip, Feira Literária Internacional de Paraty. As duas estão separadas por cerca de 70 quilômetros, onde se podem encontrar ritmos e danças tradicionais que contam uma parte da história da região.

Jongo, “uma vivência”

Vem pro jongo
Ô vem jongueiro ver
João-Congo
O jongo tem que ter

(Sérgio Santos e Paulo César Pinheiro)

Um dos principais paraísos do Sul Fluminense, Angra e seus arredores foram territórios de quilombos onde floresceu um dos ritmos mais característicos do Brasil e da África: o jongo (ou caxambu). Essa manifestação, trazida pelos negros bantos oriundos do território que hoje é Angola, influiu fortemente na criação do samba carioca. Além dos distritos de Angra, cidades como Valença, Vassouras, Paraíba do Sul, Barra do Piraí e a capital Rio de Janeiro (onde está o famoso Jongo da Serrinha) também têm seus representantes. Mas a manifestação não é exclusiva do Estado do Rio, sendo encontrada em São Paulo, Espírito Santo e Minas Gerais.

Cantigas e pontos são entoados por poetas e a dança acompanha o ritmo, elaborado basicamente por tambores (além de pandeiros e violas) e proclamado Patrimônio Imaterial Cultural Brasileiro pelo Iphan em 2005. Esta expressão afro-brasileira integra música, dança coletiva e elementos mágicos poéticos, cantados e dançados de diferentes maneiras, de acordo com as tradições das comunidades. O cativeiro, as referências religiosas ao catolicismo e à umbanda e a abolição de 1888 são alguns dos temas das canções, uma forma de manter a memória coletiva.

O especialista e pesquisador Délcio Bernardo afirma que a região conta com quatro comunidades jongueiras: a da Vila Histórica de Mambucaba, a da Gamboa, a do Morro do Carmo e a do Quilombo de Santa Rita do Bracuí. Apesar de ser difícil precisar um número exato, estima-se que existam entre 100 e 150 jongueiros distribuídos entre elas. E nem todos praticam o jongo da mesma forma. No Quilombo de Santa Rita do Bracuí, por exemplo, por ser uma comunidade católica, os pontos dificilmente fazem referência a santos da umbanda. Também há diferenças na forma de dançar, não apenas entre as quatro da região, mas também entre as existentes em outras partes do Sudeste.

Registros históricos afirmam que o jongo existe na região desde o século XIX. Bracuí, que fica a 24 quilômetros do centro de Angra, e Mangaratiba, a 55 quilômetros, foram centros de recepção clandestina de escravos, onde posteriormente se formaram quilombos. Em muitos desses, o jongo servia para combinar as fugas, já que os dias, locais e integrantes do plano eram “cantados” durante as celebrações.

De acordo com Délcio, a função social do jongo veio se modificando com o passar do tempo. Mas a ideia de divertimento sempre existiu. “Antes também era um importante instrumento de comunicação”, explica. Hoje, além da celebração, o jongo tem um ‘caráter educacional’, por ajudar a preservar a memória oral, e também de ‘organização das comunidades’, pois mantém unidos seus integrantes. O jongo sempre foi uma forma de resistência: no passado, contra a escravidão, e hoje é uma forma de lutar contra  ‘a opressão, o racismo, o baixo índice de educação e o fato de os negros ocuparem os piores empregos’”, detalha o pesquisador, destacando a “valorização da cultura e a retomada da História oral” que o ritmo proporciona.

Manoel Moraes, Firmina, Sebastião, Rosaú Bernardo, Zé Adriano, Dona Celina… Esses são alguns dos mestres jongueiros que fizeram e fazem história na região. Desde 1996 existe o Encontro de Jongueiros, que reúne 13 comunidades. Em 2000, Angra dos Reis foi a anfitriã do evento e durante essa edição foi criada a Rede de Memória do Jongo e do Caxambu, com a ideia de garantir os direitos de seus participantes. Mas foi com o Pontão de Cultura Jongo/Caxambu que uma grande rede foi criada, reunindo 17 comunidades jongueiras. Desenvolvido por meio de uma parceria entre a Universidade Federal Fluminense (UFF), o Iphan e as comunidades jongueiras, o Pontão concentra suas atividades em três pilares: articulação, capacitação e divulgação.

No passado, crianças não podiam participar das rodas, mas hoje há interesse em repassar essa tradição a elas. “Neste momento, não acho que o jongo esteja ameaçado pois muita gente tem se dedicado a estudá-lo”, conta o especialista. Délcio afirma que a região não conta com uma escola de jongo, mas que oficinas podem ser organizadas eventualmente. “É uma dança muito ligada às famílias”, justifica. “É possível aprendê-la, mas não temos o compromisso de manter uma escola, de cobrar das pessoas. Pode acontecer, mas a princípio é um resgate familiar. O jongo é uma vivência”, detalha, lembrando, no entanto, que o Jongo da Serrinha, no Rio de Janeiro, mantém uma escola para a comunidade.

Ciranda de Tarituba: barulhinho bom

Parte fundamental da história paratiense, a dança folclórica tem como uma de suas principais representantes a Ciranda de Tarituba, nascida entre pescadores, lavradores, curandeiras e festas religiosas. O folguedo concorreu recentemente ao Prêmio Cultura do Estado do Rio de Janeiro.

O ritmo, tocado e dançado há mais de 150 anos (hoje há meia dezena de grupos musicais em Paraty), vai mais além de uma ciranda e de uma dança de roda. Trata-se de um baile composto por várias danças de nomes regionais, como xiba (ou chiba), caranguejo, arara, canoa, limão e caboclo velho, que soa ora como samba, ora como valsa, passando pela quadrilha. A imigração é lembrada nos tamancos portugueses, na saia rodada, no sapateado da Espanha e nas referências aos minuetos da corte francesa, tudo misturado com a cultura indígena e africana. 

Tarituba é um distrito de Paraty, distante pouco mais de 30 quilômetros da cidade, no caminho rumo a Angra dos Reis. De acordo com Simone Bulhões, diretora executiva da Associação Cultural Recreativa e Folclórica de Tarituba, é lá onde está o único grupo da região que preserva a dança e a música. Os outros são só de música, como os Coroas Cirandeiros de Paraty, o mais antigo, com mais de 40 anos, e o Ciranda Elétrica, grupo mais jovem, que mescla o ritmo com rock e percussão.

A história da Ciranda de Tarituba se mistura com a da família de Simone. Os Bulhões lutam há décadas para preservar a tradição, que tem como o maior representante Mestre Chiquinho, cirandeiro falecido em 1992 e tio-avô de Simone. Foi ele, nos anos 1970, junto com a pesquisadora Cássia Frade (da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), quem decidiu criar maneiras de preservar o ritmo, ameaçado pela modernidade e pela abertura da Rodovia Rio-Santos (que facilitou a debandada de jovens). Ele foi o criador do Grupo de Danças Folclóricas de Tarituba (GDFT), representante principal da ciranda dançada. Hoje, oficinas e aulas de percussão são algumas estratégias realizadas com o fim de manter a o rodopio das saias de chita.

O que começou como uma forma de socialização (“as pessoas se reuniam para celebrar uma boa colheita ou uma pescaria farta com a ciranda”, conta Simone), hoje pode ser observada em festas religiosas e eventos. O que não mudou foi a proposta inicial de integrar, de “proporcionar o encontro dos caiçaras”. “É na ciranda onde eu abraço a minha prima que, apesar de ser minha vizinha, quase não encontro. O mundo moderno diminui as conversas”, relata Simone.

O pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF) Antonio Eugênio do Nascimento relembra no texto Arrumando a enxada para fugir da dependência – Pequeno ensaio sobre a luta dos cirandeiros de Tarituba que há 150 anos os habitantes da região nem imaginavam que teriam a área cortada por uma rodovia. “O romantismo que advinha da ciranda não precisava de nada além de um terreiro iluminado pela luz da fogueira, de uma violinha tosca, de um pandeiro artesanal e de um caixote chamado mancado”, detalha no ensaio. Violas elétricas e trajes de chita sintética marcam os novos tempos.

Mesmo recebendo reconhecimento de diversas frentes tanto do Estado do Rio quanto do Brasil, a Ciranda de Tarituba atualmente sofre com a falta de uma sede. Simone revela que os ensaios são feitos na varanda de uma escola local e que o escritório funciona no espaço de uma loja de uma familiar. De acordo com ela, existe um local originalmente destinado para abrigar a associação, mas a diretora da Associação Cultural Recreativa e Folclórica de Tarituba afirma que o prefeito de Paraty, José Porto, o Zezé, alega que pode usar o lugar para outros fins. Simone lamenta também que outro ritmo local, a Congada de Taquari, também esteja ameaçado. “O pior é que a congada é justamente da região de origem do prefeito”, ironiza.

Amaury Barbosa, secretário municipal de Cultura de Paraty, esclarece que o problema é político. O terreno, cujo destino já foi discutido até com a Secretária de Cultura do Estado, Adriana Rattes, hoje pertence à Associação de Moradores da região e é alvo de disputa de três entidades. “Já existe o projeto, mas o andamento infelizmente é lento e as pessoas ficam angustiadas”, explica, detalhando que o local abrigará um campo de futebol, um espaço para a Associação e outro que contemplará a Ciranda, onde também haverá um museu em homenagem à chiba. “A ciranda só existe graças a essas pessoas que a mantêm. É um trabalho maravilhoso e todos nós queremos que Parati também tenha esse atrativo turístico”, destaca o secretário, acrescentando que a preservação da congada também figura nos planos da Secretaria.

Simone sonha com o dia em que a Ciranda se transforme num “meio de vida” para seus participantes. “A grande meta hoje é promover o turismo cultural através dessas manifestações”, destaca. A Ciranda de Tarituba tem o blog, páginas no Facebook e no Twitter e já foi eternizada num livro (Vamos indo na Ciranda, de Antonio Eugênio, Simone Bulhões e Pedro José Bulhões), que é uma homenagem a Mestre Chiquinho, num CD e num documentário, tudo com a intenção de contribuir para a preservação desse folguedo.“Precisamos pôr as mãos em instrumentos midiáticos com os quais a maioria da população de Tarituba não está acostumada a lidar”, alerta Antonio Eugênio no em seu ensaio.

*Clarissa Vasconcellos é jornalista, formada e pós-graduada na Uerj, com especialização em Jornalismo Internacional na Espanha.

http://idanca.net/lang/pt-br/2011/09/15/costa-verde-onde-a-danca-se-mistura-com-a-historia/18974

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