Por José Roberto Cabrera* – Outras Palavras
À Vitória
Estranha é nossa situação aqui na Terra.
Cada um de nós vem para uma curta passagem,
sem saber por quê, ainda que algumas vezes tentando adivinhar um propósito.
Do ponto de vista da vida cotidiana, porém, de uma coisa sabemos: o homem está aqui pelo bem de outros homens – acima de tudo daqueles de cujos sorrisos e bem-estar nossa própria felicidade depende.
Albert Einstein
Camarada. Essa palavra esteve em baixa por um bom tempo. Associada às experiências dos partidos comunistas, me parece que muitos deixaram de usá-la por constrangimentos inerentes. Não consigo pensar em outra palavra para descrever o João Zinclar: camarada.
Quando me propuseram que escrevesse sobre ele, confesso que fiquei inseguro – por vários motivos. Primeiro, pela tristeza: fazia poucos dias que o perdêramos e qualquer reflexão ou ideia iria conter mais sentimentos que reflexões ou avaliações sobre sua obra. Esses nunca estão distantes, mas têm significados diferentes para as pessoas. Os mais próximos, que o conheceram, leriam de uma maneira diferente; os outros, talvez com curiosidade, admiração; mas o impacto certamente seria desigual e inconsistente. Depois pelo foco. Explico: João era dessas pessoas impossíveis de serem enquadradas num único espaço ou ambiente. Era multifacético, capaz de transitar por ambientes distintos, contraditórios, de se relacionar com diversos setores do movimento social e da sociedade, de uma maneira geral com uma desenvoltura ímpar, e produzir resultados concretos.
Mas o tempo, “filtrando a vida pelos grãos de ampulhetas mortais”, e o tema proposto me ajudaram a superar, ao menos em parte, a insegurança dos primeiros dias. O João era um lutador pela transformação e entendia que a comunicação era um pressuposto fundamental, com penetrante caráter pedagógico, indispensável pra quem quer lutar contra a ordem.
João ficou conhecido no Brasil e no mundo por suas fotografias. Sua arte captou nossas lutas, nossos olhares, nossos dramas, angústias e esperanças. Denunciou injustiças, desmandos e destruições. Apontava-a como uma arma contra a indiferença e o individualismo reinante, buscando construir não uma alternativa, mas muitas alternativas, capazes de resgatar a solidariedade, fortalecer as lutas de classes, sem nunca perder o norte, a coerência e a ética do militante.
Originário do extremo sul do país, nunca abriu mão do Brasil como um todo. Hippie, metalúrgico, fotógrafo, comunista, amigo, gremista, diabético, vegetariano, gaitista e roqueiro, sempre soube preservar um rumo sem fugir das divergências, dos incômodos.
Dos que o conheceram há quase uma unanimidade quanto à sua perspectiva: sempre teve um olhar presente, um tempo contínuo para todos. Para todos aqueles de quem se aproximou, seja pela fotografia, pelo registro das lutas dos movimentos sociais – os sindicalistas, os músicos, os companheiros da antiga militância partidária –, sempre tinha tempo. Numa época onde o tempo é escasso, submetido à lógica do capital que a tudo mercantiliza, João resistia e tinha um tempo para ouvir, questionar, sorrir.
A urgência do tempo presente mantinha seu olhar no futuro. Num futuro de transformação contínua, socialista, livre, desalienado e anticapitalista. Esse futuro utópico, “utopia que é a ideia cujo tempo chegou”, era para ele coletivo, plural – e aqui se encontravam os principais desafios. Era e é necessário repor a perspectiva coletiva, construir a contra-hegemonia, disputar os espaços das ideias sem fazer concessões ideológicas, reconstruir a unidade classista na ação prática etc. Apesar do imenso esforço que isso representa, ele nunca deixou de mostrar que era desejável e possível.
“O contrário do tipo político relacionado com todos à base de concessões e conveniências… O testemunho de toda a trajetória de coerência, até o momento final, faz de João Zinclar daqueles raros imprescindíveis de que falava Brecht – os que lutam toda a vida! Ah, se mais fôssemos assim!” (Ruben Siqueira, amigo, CPT Bahia).
Suas fotografias construíram essa unidade na prática, na medida em que transitava pelos encontros e congressos dos movimentos sociais, debatia com os mais diferentes e divergentes atores e registrava suas lutas como se fossem as dele, sem nunca deixar de fazer a crítica àquilo que considerava nefasto e desmobilizador, despolitizado e antipedagógico. Foi implacável na crítica às limitações do economicismo (tendência pragmática no interior do movimento sindical), do sectarismo (tão presente no esquerdismo de muitas organizações), do corporativismo, do fisiologismo e do realismo da política cotidiana desprovida de perspectiva estratégica. Ele era assim: Hay que endurecer pero sin perder la ternura.
Seu trabalho sempre teve caráter militante e nesse sentido sua atividade assumiu uma perspectiva estratégica quando passou a registrar o modo como o capital se inseriu nos projetos de ocupação do interior do país. João identificou que a resistência dos povos ribeirinhos do rio São Francisco à transposição indicava uma nova etapa da luta social no país. O avanço do agronegócio naquela região, com a ampliação de cultivos para exportação e o desenvolvimento de outros projetos ligados à siderurgia e à especulação imobiliária, ancorados em investimentos públicos, indicava uma nova fase de apropriação dos bens comuns e isso tinha enorme potencial de luta. Os povos originários, os vazanteiros, os quilombolas, os pescadores artesanais, os sem-terra e diversos outros grupos que, nas margens do rio, viviam em precárias condições, estavam sendo empurrados para um conflito que tinha evidente caráter de classe.
Sem vacilar, pra lá foi o João. Ele havia tido contato com a região na década de 1970, viajando pelo país de carona, como ele mesmo se referia, contorcendo arames para sobreviver
Desde a nascente à foz, João foi recebido pelos movimentos: pela CPT, pelo MST, pelo MAB, pela Articulação Popular São Francisco Vivo e por outros que o acompanharam em sua jornada, que era a deles também, de denúncia. Uma denúncia que apontava que o problema não eram os recursos, a água no caso, mas o acesso a eles. Das suas fotos transbordam as águas do nordeste represadas nos açudes e as lutas dos povos pelo usufruto dos bens comuns.
O registro dessas imagens se transformou num livro (uma “obra monumental” segundo Washington Novaes), que captou as opiniões dos envolvidos no tema e os rostos e olhares do povo que mora na “espinha dorsal do Brasil”. Nunca deixou dúvida: era contra a transposição. Pra ele era necessário ter uma posição.
Esse seu projeto contou com apoio de vários sindicatos de Campinas, como o Sinpro e os Químicos Unificados. Finalizado o livro, com a inestimável contribuição do Sindicato dos Metalúrgicos, João voltou ao rio para retribuir o auxílio e deu um livro para as organizações e para cada personagem registrado, muitos dos quais nunca tiveram uma fotografia. Coisa de camarada.
Entre seus projetos, registrando o avanço do capital sobre as florestas, foi para Belo Monte. Lá mostrou as obras em andamento, enquanto ainda se debatia sobre a construção. Registrou as contradições do processo em que aqueles que eram os contrários enfrentavam toda a sorte de conflitos violentos, inclusive por parte dos sindicatos da região, defensores dos novos postos, ainda que provisórios, de trabalho.
Nessas fotos, fazia questão de mostrar uma que continha uma inscrição “Aqui tem crime federal”. Achava que essa imagem expressava a essência do que lá acontecia. Por conta do veto a essa foto por parte de Furnas, não autorizou a exposição de suas imagens no Pavilhão Azul da Cúpula dos Povos, por entender que as coisas devem ser ditas e um dos patrocinadores não pode impedir a denúncia.
Registrou as transformações na Venezuela de Chávez sem deixar de considerar os problemas vividos no processo político venezuelano, sempre numa perspectiva classista.
Uma de suas maiores contribuições foi demonstrar que, num momento em que o governo Dilma recua da proposta de regulamentação e democratização da mídia, é possível criar e buscar espaços alternativos para a divulgação das informações e ideias. A força de sua ação foi além das constatações, materializando sua indignação no registro das lutas que ele eternizou.
Essa luta que requer de nós muita dedicação, fortalecendo a blogosfera, não substitui a necessidade de se combater o monopólio da mídia, nem sua regulamentação e sua democratização, particularmente numa conjuntura em que onze famílias controlam a TV no Brasil, podendo falar com 190 milhões de pessoas; 10% dos integrantes da Câmara dos Deputados e 33% do Senado são concessionários de rádio e TV e as igrejas promovem uma orgia, conquistando concessões, alugando horários e colonizando os dials.
João refletia sobre as lutas e os modos possíveis de potencializá-las. Trabalhou na divulgação da mídia alternativa. Foi ativista da Mostra-Luta, festival de vídeos alternativos, organizado pela rede de comunicadores populares que, de alguma forma, materializava sua perspectiva de luta contra a mídia corporativa.
Convencido da necessidade de incorporar o tema ambiental na agenda dos movimentos sociais, em especial do movimento sindical, João articulava espaços para estimular a reflexão e o debate sobre essas questões, em especial pelo potencial que elas têm de luta anticapitalista. Para ele, a luta em defesa dos bens comuns e do meio ambiente tem um caráter classista e revolucionário. Era necessário apresentar aos ambientalistas um caráter de classe e aos sindicalistas uma perspectiva ambiental.
Nessa direção, estávamos construindo um espaço de interação, em princípio virtual, mas nitidamente concreto, que propiciasse uma interlocução entre os vários movimentos. Um local onde todos tivessem espaço e voz não somente para se comunicarem, mas para articular e fortalecer os laços entre nós. De fato, nosso olhar vê a realidade pela mesma ótica, nossas indignações e sonhos são os mesmos. No entanto, não raro cá estamos nós fechados em nossa lida diária e perdemos a oportunidade de fortalecer a luta como um todo. Eu e o João sempre partilhamos a ideia de que, entre nós da esquerda, existem mais coisas que nos unem que coisas que nos separam – mas em geral nos acomodamos dentro dos muros das nossas ilhas de subsistência e acabamos perdendo a chance de dar uma contribuição maior para a construção de um novo mundo. Sempre discutíamos o quanto maiores podemos e devemos tentar ser e agir na luta por um mundo mais igualitário, justo e marxista (sendo aqui redundante). Criamos a ideia do Verve (vermelho e verde), o espaço destinado a isso, que estará disponível em maio em www.verve.org.br.
Das várias coisas que alguém pode deixar, ele deixou exemplos. Exemplos de preservar o que as experiências podem oferecer de positivo. Manteve-se comunista num olhar positivo sobre as ações humanas, tentando olhá-las para além da aparência, buscando seus significados ocultos, lutando constantemente contra as injustiças e contra a ordem. Foi hippie no desapego, na humildade, na coerência. Tão coerente que, como um bom hippie, ficou na estrada…
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*Mestre e doutor em Ciência Política Unicamp, Professor Esanc e Unip Campinas-SP.