por Samir Oliveira, do Sul21
O jornalista Alceu Castilho lançou, no dia 20 de agosto, o livro Partido da Terra, que revela a quantidade do território brasileiro que está nas mãos de políticos. A obra é resultado de três anos de pesquisa em mais de 13 mil declarações de bens de políticos eleitos em 2008 e 2010 no país.
Castilho se debruçou especialmente sobre os bens rurais declarados pelos prefeitos, deputados estaduais e federais, senadores e governadores. As conclusões são devastadoras: pelo menos 2,03 milhões de hectares pertencem a políticos. Esse é apenas o montante que pode ser comprovado, já que muitas declarações de bens informam o valor das terras, mas não a sua extensão.
Pelo cruzamento de outros dados, o jornalista projeta que o número total pode chegar a até 4,4 milhões de hectares, território semelhante ao da Suíça. Castilho denuncia, ainda, a existência de uma “esquerda latifundiária” no país e demonstra que, entre os 31 políticos que, juntos, somam 612 mil hectares, há filiados ao PT, ao PSB, ao PDT e ao PTB.
Nesta entrevista ao Sul21, Alceu Castilho comenta as informações reveladas no livro e diz que existe um “sistema político ruralista” no país, que vai muito além de uma bancada isolada no Congresso Nacional.
Sul 21 – Como surgiu a ideia de escrever esse livro?
Alceu Castilho – Morei em Brasília entre 2006 e 2007 e, nas eleições de 2006, fiz um levantamento dos bens dos deputados federais. Verifiquei todos os bens urbanos e rurais. Disso resultou uma série de reportagens revelando quantos apartamentos, carros e hectares eles tinham. A série se chamou “Câmara bilionária”, porque o valor de tudo isso era mais de R$ 1 bilhão. Nesse levantamento, o que mais me chamou a atenção foram os bens rurais.
Sul21 – Por quê?
Castilho – Primeiro, pelo volume e, por outro lado, pela discrepância. Eram valores muito baixos em uma riqueza de detalhes. Informavam não apenas os hectares, mas as cabeças de gado, o maquinário… Então resolvi aprofundar essa pesquisa. Comecei com o estado do Pará, ainda nas eleições de 2008. Nesse embalo eu levantei dados dos cinco mil prefeitos do país e dos vice-prefeitos. Então o cerne da pesquisa já estava pronto. Em 2010 fiz uma segunda parte da pesquisa, daí com os bens dos 2 mil deputados. A pré-história do livro é essa: eu comecei a perceber que os bens rurais eram bastante significativos da riqueza e do modus operandi dos políticos.
Sul 21 – Como foi feita a apuração das informações?
Castilho – Os dados estão disponíveis na internet, nos sites da Justiça Federal. O site do Fernando Rodrigues também ajuda muito. Isso permite apenas um levantamento dos bens computados. Mas nem todos estão computados. Alguns bens rurais estão registrados em outros lugares. Um exemplo clássico é a senadora Kátia Abreu (PSD-TO), que falou para a revista Época sobre alguns bens que não constam na declaração eleitoral. Isso é muito comum. Mas, considerando somente o que é informado, já dá para se ter uma bela base dados para começar. Só por esses dados já nota-se que há uma fatia enorme do território brasileiro diretamente nas mãos de políticos. A partir daí vamos procurando. Há declarações que mostram apenas os valores das terras, não o número de hectares. E há bens rurais em nomes de empresas, como no caso do senador Blairo Maggi (PR-MT), que tem uma empresa que planta mais de 200 mil hectares. Considerando somente esses bens rurais em nome de empresas de políticos, deu para constatar que existe mais de 1 milhão de hectares nas mãos de cinco políticos. Então há várias camadas de informação, umas mais apuráveis e outras menos. Mas todas compõem uma mesma história de apropriação do território brasileiro. É interessante fazer a analogia desses dados com os cidadãos comuns. Quantos hectares você tem? Quantas cabeças de gado e empresas agropecuárias um cidadão comum possui?
Sul21– Considerando as informações não disponíveis de forma clara, é possível prever que o número e a extensão das terras nas mãos dos políticos é muito maior do que aquilo que pode ser oficialmente comprovado?
Castilho – No primeiro capítulo do livro, demonstro que há pelo menos 2 milhões de hectares perfeitamente comprováveis nas mãos de políticos. E então eu faço uma projeção de que esse número pode subir para 3,3 milhões de hectares, porque vários dados informam somente o valor das terras, não a extensão. Através de uma regra de três, pela porcentagem proporcional dos valores, eu calculo que esse montante chega a 1,3 milhão de hectares. E eu somo a isso, ainda, os 1,1 milhão de hectares registrados nos nomes das empresas. Por isso esse total de terras de políticos pode chegar a 4,4 milhões de hectares.
Sul21 – Então é possível afirmar que a quantidade de terras é muito maior do que é possível provar com os documentos?
Castilho – Claro, porque ainda há os vereadores, que não entraram na minha pesquisa. A quantidade é muito maior e os próprios políticos dão pistas de que há mais terras. Dezenas de políticos se declaram agricultores ou pecuaristas e não registram um único centímetro de terra no TSE. Em outros casos declaram a terra, mas não o gado. É uma bola de neve com informações inconclusas, mas já é um ponto de partida.
Sul21– Em termos partidários, como fica a distribuição dessa “bancada da terra” no país?
Castilho – O capítulo 10 do livro se chama “Movimento suprapartidário”. Para essa relação dos partidos, eu considerei somente a fatia que engloba os 2 milhões de hectares computáveis. Os partidos que possuem prefeitos eleitos em 2008 com mais terras são o PSDB (21,25%), o PMDB (19,98%), o PR (13,09%), o PP (12,5%) e o DEM (7,0%). Entre os deputados federais e estaduais, a liderança é do PMDB (21,1%), seguido pelo DEM (18,71%), pelo PR (15,42%), pelo PDT (10,13%) e pelo PTB (9,48%). Nessas duas mostras temos o PMDB sempre presente e o PSDB surpreendentemente na liderança. É surpreendente porque o PMDB é um partido maior, com mais prefeitos. Eu achava que quem ultrapassaria o PMDB seria o DEM e o PP, os filhos da Arena. É muito significativo que os filhos do MDB estejam na liderança, junto com PP e DEM, pois o PMDB se configurou como um partido de direita na redemocratização.Nessa análise há também partidos originalmente de esquerda. Entre os prefeitos, o PDT aparece em sexto lugar e o PT em oitavo, seguido pelo PPS e pelo PSB. Entre os parlamentares, a quantia de terra nas mãos dos representantes do PT é insignificante, com 1,67% do total. Mas em relação aos prefeitos petistas esse índice sobe para 5,23%. Então existe no Brasil uma esquerda latifundiária. PT, PPS, PSB e PTB possuem em seus quadros políticos com mais de 10 mil ou 20 mil hectares de terra. Eles não lideram o ranking, mas há cada vez mais casos. Só PSOL e PCdoB não possuem latifundiários, sendo que o PCdoB já teve um senador latifundiário.
Sul21 – Como tu observas a atuação desses políticos detentores de grandes extensões rurais?
Castilho – Mais do que uma bancada ruralista, existe um sistema político ruralista. Não me refiro somente a congressistas como Kátia Abreu, Abelardo Lupion ou Ronaldo Caiado, que são explicita e agressivamente defensores do agronegócio. Procuro demonstrar que esse sistema político ruralista é muito mais amplo do que uma bancada. Em meio aos cães de guarda do agronegócio existe um sistema político dependente e refém do poder dos políticos que são proprietários de terra e estão espalhados pelo Congresso, pelas prefeituras e pelas câmaras municipais. Não se trata somente de uma bancada ruralista isolada. E isso tudo nos remete ao coronelismo e aos clãs políticos. Como exemplo de atuação prática há a questão do Código Florestal. Não foram somente os políticos da bancada ruralista assumida que votaram a favor das mudanças. O PCdoB foi favorável ao novo código, que foi relatado pelo Aldo Rebelo. No ano passado, o PT recomendou o voto a favor das alterações. Neste ano houve um pouco mais de resistência, que eu chamaria de resistência de fachada. O PT votou contra, mas boa parte votou a favor. Alguns deputados do PCdoB votaram contra, mas aos 45 minutos do segundo tempo o processo já estava deflagrado. Essas decisões começam a acontecer na Comissão de Agricultura, nas costuras feitas pelos partidos. Em 2010, PSB e PV cederam a vaga que tinham na presidência dessa comissão ao DEM. Isso demonstra que há uma coalizão entre os ruralistas explícitos e os parlamentares que compactuam com eles por diversas conveniências. Podem até não ser ruralistas, mas fazem parte do sistema político ruralista.
Sul – Depois de analisar todas essas informações, fica mais fácil perceber por que a reforma agrária a não sai do papel no país?
Castilho – Esse sistema político ruralista é determinante para a ausência de reforma agrária no Brasil. Reforma agrária não é algo revolucionário. É algo que é feito por países capitalistas para consolidar o capitalismo. Durante a Constituinte, havia um embate grande entre ruralistas e não-ruralistas. Não havia ainda uma coalizão e um pacto entre esses dois setores e, nessa divisão, os ruralistas ganharam. A reforma agrária foi o grande debate da Constituinte e foi derrotada. Ali já ficou demonstrado o poder de força dos ruralistas. Na CPI da Terra, em 2005, quando investigaram a violência e o trabalho escravo no campo, os ruralistas derrotaram o relatório final e fizeram um relatório paralelo que acabou se tornando oficial. E nessa época quem estava no governo era Lula. Hoje em dia eu diria que a situação é pior do que na época da Constituinte, porque há a anuência de deputados de partidos socialistas, comunistas e trabalhistas com partidos de origem patrimonialista com grandes proprietários de terras em seus quadros. Esses políticos dependem do eleitor para perpetuar suas propriedades rurais. Para chegarem aos grotões do país e se perpetuarem no poder, eles acabam mimetizando práticas que vêm de décadas e até séculos atrás no país.
Sul21– Como o financiamento de campanha influencia a postura dos políticos que são grandes proprietários de terras?
Castilho – No capítulo 14, que se chama “Eleições: mais que currais”, eu discuto a existência de currais eleitorais e a prática do voto de cabresto, típica do coronelismo. E o financiamento das campanhas são uma outra forma que os políticos encontram para se tornarem reféns de determinadas elites. A Friboi doou R$ 30 milhões para campanhas em 2010, inclusive para a campanha da presidente Dilma Rousseff (PT). Existe uma bancada da Friboi no Congresso, com 41 deputados federais eleitos e 7 senadores. Desses 41 deputados financiados pela empresa, apenas um, o gaúcho Vieira da Cunha, votou contra as modificações no Código Florestal. O próprio relator do código, Paulo Piau, recebeu R$ 1,25 milhão de empresas agropecuárias, sendo que o total de doações para a sua campanha foi de R$ 2,3 milhões. Então temos algumas questões. Por que a Friboi patrocinou essas campanhas? Para que eles votassem contra os interesses da empresa? É evidente que a Friboi é a favor das mudanças no Código Florestal. A plantação de soja empurra os rebanhos de gado para o Norte, para a Amazônia, e a Friboi tem muito interesse nisso. Será que é mera coincidência que somente um entre 41 deputados financiados pela empresa votou contra o novo código?
Sul21 – Que tipo de contribuição tu esperas dar ao debate sobre acesso à terra no Brasil com esse livro?
Castilho – É um livro jornalístico, não acadêmico. Um jornalismo sério deve iluminar aspectos importantes da realidade política. Nesse sentido, o livro traz muitos dados inéditos e compila informações que, isoladamente, não seriam inéditas. Por exemplo, em relação ao trabalho escravo. Pude constatar que há mais de 100 mil hectares nas mãos de políticos acusados de utilizarem mão-de-obra escrava.
Sul21 – Foram três anos de pesquisa para o livro. Como tu avalias a transparência dos órgãos públicos no Brasil?
Castilho – A Lei de Acesso à informação é extremamente benéfica e representa um avanço para a democracia, mas ainda há muitas brechas pelas quais os políticos podem omitir dados, sejam eles candidatos ou administradores públicos. Muitos não declaram quantos hectares de terra possuem e não são punidos por isso. A Justiça Eleitoral deveria obrigar cada candidato a declarar não só os valores de seus bens rurais, mas também o tamanho deles. que é o fato de o território brasileiro estar nas mãos de políticos.
Sul21 – O saldo final do livro, com todas as informações no papel, te surpreendeu? Ou tu já esperavas chegar a esses resultados?
Castilho – Esse sistema político ruralista me surpreendeu pela sua capilaridade. Eu não previ que o livro fosse ter capítulos sobre meio-ambiente e sobre os brasileiros mortos, escravizados ou ameaçados. Isso foi surgindo a partir da identificação dos casos. Quando eu pesquisava os latifúndios, caía em casos de trabalho escravo, de crimes ambientais, de mortes e de ameaças. Depois de todo o levantamento, o Brasil dos biomas e cidadãos violentados pela conexão dos políticos com a terra se mostrou com muito mais força para mim.
* Publicado originalmente no site Sul21.
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Enviada por Thiago Lucas para Combate Racismo Ambiental.