Por Marcos César de Oliveira Pinheiro*
O historiador constrói o fato histórico a partir das escolhas concernentes aos modos de fazer a História. “Toda narração de eventos, toda análise de causas, pelas suas inevitáveis escolhas, encobre uma ideologia” (Vilar, 1987, p. 119). Os estilos da narrativa histórica mudam ao longo do tempo, “mas a história continua associada às concepções sociais e aos preconceitos dos historiadores e do seu público, ainda que uns e outros tendam a acreditar, como o faziam os homens do passado, que seus mitos e preconceitos são verdades indiscutíveis” (Fontana, 2004, pp. 11-12). Sem perder de vista que essas escolhas não são isentas de riscos e de dificuldades, no meu entender, é o marxismo que melhor consegue responder aos grandes problemas enfrentados pela humanidade, não apenas no sentido de explicar racionalmente suas causas, mas também de pensar formas de superá-los.
Desse ângulo, três conceitos são fundamentais para o historiador: história, estrutura e conjuntura. (1) Na definição do historiador Pierre Vilar, “a história é um conjunto, no interior do qual há interconexões contínuas” (Vilar, 1998, p. 285). Nesta definição está presente a idéia de globalidade ou totalidade das sociedades humanas, significando que o trabalho histórico deve ser fundado numa teoria global, em que todos os aspectos da história humana em sua complexidade sejam levados em conta, recusando uma história em setores estanques (idem: pp. 285-286). (2) Isto é, para o entendimento da dinâmica da História é fundamental ter clareza da articulação entre a estrutura, impondo certos limites às ações dos sujeitos históricos, e a conjuntura, em que os homens e as mulheres reais se movimentam e operam, tomando iniciativas e lutando pela destruição, pela defesa ou pela conservação de determinadas estruturas econômico-sociais.
O texto O 18 Brumário de Luís Bonaparte faz parte das chamadas “obras históricas” de Karl Marx – juntamente comAs lutas de classes na França de 1848 a 1850 e A Guerra Civil na França. Esses textos são os primeiros esforços de um autor que procurou analisar uma realidade concreta, os acontecimentos e disputas políticas do ponto de vista do “materialismo histórico”. Isto é, considerando que a sociedade se constitui a partir de condições materiais de produção e da divisão social do trabalho, que as mudanças históricas são determinadas pelas modificações naquelas condições materiais e naquela divisão do trabalho, e que a consciência humana é determinada a pensar as ideias que pensa por causa das condições materiais instituídas pela sociedade. “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina sua consciência” (Marx, 2008b). Eis por que Marx diz que os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem em condições escolhidas por eles e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado (idem, 2008a).
Escrito entre dezembro de 1851 e março de 1852 e publicado pela revista Die Revolution, de Nova York, no ano de 1852, pode-se verificar claramente a aplicabilidade do “materialismo histórico” no livro O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Nele, Marx não se restringe a uma narrativa-testemunho dos acontecimentos que precederam e sucederam o golpe de Estado de dois de dezembro de 1851, na França. Também não é somente uma peça argumentativa tecida na trama da luta política daquele tempo, sob a pressão imediata dos acontecimentos.
De imediato, o emaranhado de datas e nomes presentes no texto pode, precipitadamente, induzir o leitor a identificá-lo à tradição positivista da história das datas, dos nomes e da sucessão dos fatos. Ao contrário, em Marx percebe-se que a descrição densa dos acontecimentos encerra sempre um conceito. Trata-se de um texto de particular importância para os historiadores. A problematização, os argumentos e os pressupostos teóricos e metodológicos, que fundamentaram Marx no preparo da obra O 18 Brumário de Luís Bonaparte, ensejam a abordagem de várias questões historiográficas.
Nos seus Manuscritos econômico-filosóficos, Karl Marx já havia rompido com a idéia de naturalização da história e assumido uma postura crítica, qual seja, o estranhamento do cotidiano como natural, tudo merece ser explicado, nada é natural. No texto O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx também assumira uma reflexão crítica sobre a política liberal, as concepções burguesas sobre a história e sua instrumentalização no jogo político. Isto é, descortinou o processo de presentificação da história no “reino da burguesia” (a sociedade capitalista), em que o devir da história foi esvaziado, uma vez que a burguesia se apresentou como o fruto e o fim da história.
Com a derrocada do chamado “socialismo real”, pode-se assistir a mais uma ofensiva da ideologia burguesa, a fim de revigorar a tese de que o capitalismo e a democracia burguesa constituem o coroamento da história da humanidade. Uma das manifestações mais emblemáticas dessa ofensiva foi, primeiramente, o artigo “The end of history”, em 1989, publicado na revista norte-americana The national interest,e, posteriormente, o livro “O fim da história e o último homem”, editado no Brasil pela Editora Rocco, em 1992. Ambos de autoria de Francis Fukuyama.
O “18 Brumário” do título assinala, ironicamente, a projeção do novo no velho. Marx adverte que a recorrência ao passado, prática comum na vivência das revoluções burguesas, se constitui numa artimanha política. Trata-se de obscurecer as vivências revolucionárias do presente.
[Quando os homens] “parecem ocupados a revolucionar-se, a si e às coisas, mesmo a criar algo de ainda não existente, é precisamente nessas épocas de crise revolucionária que esconjuram temerosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem e de combate, a sua roupagem, para, com esse disfarce de velhice venerável e essa linguagem emprestada, representar a nova cena da história universal” (Marx, 2008a, pp. 207-208).
Para Marx, entretanto, existe história para além da burguesia. O reino burguês na história não é natural. Para tanto, a discussão em pauta na obra centra-se em classes sociais e projeto político. Ao falar em estrutura social amadurecida ou não amadurecida, Marx expõe a necessidade da construção da classe trabalhadora como uma classe, a construção de sua independência. De abandonar a “veneração supersticiosa do passado”. Ou seja, construir-se como sujeito revolucionário com um projeto próprio de sociedade.
Em seu 18 Brumário, ele escreve que:
“As revoluções proletárias, como as do século 19, criticam-se constantemente na sua própria marcha, voltam ao que parecia terminado, para começá-lo de novo, troçam profunda e cruelmente das hesitações dos lados fracos e da mesquinhez das suas primeiras tentativas, parece que apenas derrubam o seu adversário para que este tire da terra novas forças e volte a levantar-se mais gigantesco frente a elas, retrocedem constantemente perante a indeterminada enormidade dos seus próprios fins, até que se cria uma situação que torna impossível qualquer retrocesso (…)” (idem, p. 212).
Nesse sentido, a dialética marxiana concebe o passado como tese, o presente como antítese e o futuro como síntese. O olhar marxiano projeta-se do passado para o futuro – a revolução, na construção de uma nova sociedade. Marx está convencido de que “não foi por puro acaso que as coisas se passaram tal como se passaram”, ele acredita que “atuam no presente certas tendências que condicionam o futuro” e, consequentemente, “o que vier a acontecer também não será inteiramente arbitrário”, sem com isso cair no fatalismo (Konder, 2009, p. 120; grifos do autor). Para Marx, “os homens não são movidos por nenhuma força transcendental ininteligível; mas a práxis os impele sempre adiante e eles são, com frequência, desafiados a se transcenderem a si mesmos”, de modo que a transcendência que o ser humano realiza na direção do futuro “não está prescrita em nenhuma lei, não é pré-formada por nenhuma exigência intemporal” (idem; grifos do autor).Isto é, a realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso ou por algum tipo de desígnio divino.
Na obra do 18 Brumário, a definição de classe social está ligada ao seu agir político (Marx, 2008a, pp. 245-246) e não simplesmente ao lugar que ocupa no modo de produção. Os acontecimentos na esfera da política não são jamais meros epifenômenos do que ocorre na esfera do econômico. A autonomia relativa da política não pode ser ignorada, uma vez que as decisões políticas, pondo em movimento o Estado, acionam processos sociais e culturais repletos de consequências, chegando a interferir no próprio funcionamento da economia. A compreensão crítica das possibilidades e limites dos sujeitos históricos está associada ao problema do poder, que é de classe e, por isso, liga-se a questão da luta e do conflito de classes. É na luta, no enfrentamento que se define a classe. (3) Uma vez que só o conflito permite a visualização das classes sociais. No entanto, a luta de classes não se verifica apenas quando os dominados, mobilizando-se, organizando-se, lutam claramente, com suas lideranças, em defesa de seus interesses e, sobretudo, com vistas à superação da ordem social vigente; ela existe também, latente, às vezes escondida, oculta, expressando-se em diferentes formas de resistência ao poder das classes dominantes. Daí a necessidade de identificar os interesses de classes em disputas no âmbito político para além do jogo das aparências, tendo em vista a centralidade da “luta de classes” como categoria fundante de análise e a reflexão sobre a totalidade social.
Conforme é apontado por Thompson
“As classes não existem como entidades separadas que olham ao redor, acham um inimigo de classe e partem para a batalha. (…) As pessoas se vêem numa sociedade estruturada de um certo modo (por meio de relações de produção fundamentalmente), suportam a exploração (ou buscam manter poder sobre os explorados), identificam os nós dos interesses antagônicos, debatem-se em torno desses mesmos nós e, no curso de tal processo de luta, descobrem a si mesmas como uma classe, vindo, pois, a fazer a descoberta da sua consciência de classe. (…) Não podemos falar de classe sem que as pessoas, diante de outros grupos, por meio de um processo de luta (o que compreende uma luta em nível cultural), entrem em relação e em oposição sob uma forma classista, ou ainda sem que modifiquem as relações de classe herdadas, já existentes”. (Thompson, 2001, pp. 274-275)
Nesse sentido, Marx faz uma análise particularmente elucidativa dos eventos ocorridos nas França entre 1848 e 1852. Embora não negue o papel dos sentimentos pessoais na história, o autor do 18 Brumário retira a explicação do golpe de Estado de Luís Bonaparte do domínio subjetivo e voluntarista de um indivíduo, contrastando com outras duas interpretações contemporâneas a ele. (4) Ele explica esse evento (o golpe) à luz de um processo histórico concreto. A exposição de Marx minimiza o golpe, em quanto um fato em si, recuando no tempo, integrando-o num longo processo, ampliando o leque dos acontecimentos a serem tratados e os personagens envolvidos. (5) Opera a separação do que é conjuntural daquilo que é estrutural, do que é evidente daquilo que é dissimulado, do que é apenas discurso daquilo que é a prática efetiva. (6) Desse modo, Marx demonstra “como a luta de classes criou na França as circunstâncias e as condições que permitiram a um personagem medíocre e grotesco representar o papel de herói” (Marx, 2008a, p. 200).
Em decorrência das múltiplas dimensões teóricas da obra, a leitura do livro O 18 Brumário de Luís Bonaparte permite aos historiadores avançar em muitas direções no sentido de consistência teórica de suas análises. E não simplesmente extrair esquemas rígidos, distorcendo a informação empírica para forçá-la a encaixar-se nas categorias de análise conceitual.
Como salienta Pierre Vilar, para o historiador marxista, posicionar-se ideológica e politicamente não deve significar a transformação do método de pesquisa legado de Marx e Engels em uma doutrina, com sérios riscos de simplificação e dogmatismo (Vilar, 1987). Antonio Gramsci criticou energicamente a redução da filosofia da práxis (materialismo histórico) a uma sociologia a ser construída segundo o método das ciências naturais – experimental no sentido vulgarmente positivista. Para ele, essa redução representou a cristalização da tendência deteriorada de “reduzir uma concepção de mundo a um formulário mecânico, que dá a impressão de poder colocar toda a história no bolso” (Gramsci, 2004, pp. 143 e 146). Por isso, o historiador não deve incorrer no erro de cair no terreno fácil da máxima abstração, em que se recorre à realidade, a posteriori, apenas para buscar exemplos que ilustrem os resultados previstos (e sabe-se que bem encaixada aos esquemas pré-fabricados, a realidade nunca desmente a teoria).
De acordo com Francisco Buey, Marx é um clássico do pensamento social, um “clássico interdisciplinar”, que “não cabe nos compartimentos dos nossos saberes” e, por isso mesmo, é sempre uma obra incômoda e problemática. Diante da qual há duas atitudes tão típicas quanto triviais. A primeira atitude é a conversão do clássico numa espécie de sagrada escritura, em que se encerra a verdade absoluta e incontestável. A segunda atitude procura anular o clássico, recomendando aos jovens que não percam o tempo lendo-o (Cf. Buey, 2004, pp. 17-19). Para além dos ismos criados no seu nome e contra seu nome, a obra marxiana ainda é uma fonte fecunda para gerar campos de discussão que permitam recolocar e reconsiderar problemáticas que podem iluminar e esclarecer o funcionamento das sociedades humanas, principalmente na época atual.
Referências Bibliográficas
NOTAS
* Doutorando do Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ e professor da rede municipal de ensino público de Rio das Ostras (RJ).