João Paulo
Falar em educação no Brasil é um jeito cabotino ou ingênuo de querer ser bacana. Afinal, todo mundo é a favor da educação, de mais verbas para o setor, de melhor avaliação do que está sendo feito, de uma distribuição mais equilibrada das oportunidades. Além disso, é uma forma de defender princípios universais, como a importância do mérito, a valorização do esforço, o primado do conhecimento, a dissolução dos preconceitos. E tem mais: a educação é nossa saída para o desenvolvimento, para a igualdade, para a superação dos problemas que nos afligem há séculos. Quem é contra este programa?
O recente debate em torno da distribuição dos royalties do petróleo aproveitou de todos esses consensos para defender que a riqueza que dorme sob o sal deveria ser direcionada à educação de qualidade para todos. Se você quer convencer o outro de suas boas intenções, basta dizer que tudo será investido na educação. No sentido inverso, sempre que se quer fugir de análises políticas mais responsáveis, o mais fácil é jogar tudo nas costas da carência da educação em nossa realidade: nossos pecados de alma e nossos impulsos antirrepublicanos são todos decorrentes de sua falta: corrupção, autoritarismo, impunidade.
Em outras palavras, o uso duplo da educação, como saída para nossos males e explicação para nossas mazelas, nada mais é que um desvio ideológico explícito. A culpa da pobreza é dos pobres, que não estão aptos para os novos tempos (afinal, os empregos estão aí, o que falta é qualificação), e os defeitos sociais são consequência do estágio ainda incipiente do processo de formação cultural, e não resultado direto do encastelamento de interesses privados no coração do Estado e de suas práticas.
Educação, no entanto, não é uma palavra unívoca nem uma ação isenta de conflitos. As mesmas pessoas que defendem a educação (quase sempre para os outros, pois já se julgam educadas) combatem greves por melhoria de salário de professores, defendem a volta do boletim como forma de controle, são favoráveis à expulsão de alunos com problemas de aprendizagem da sala de seus filhos, atacam as políticas de cotas sob o argumento inepto de que se trata de um racismo de rebote, são defensoras da ligação íntima do ensino com as demandas de mercado e demonizam a pesquisa em ciências humanas e filosofia como sendo poesia inútil.
Falar de educação no Brasil, por isso, não é uma tarefa fácil, já que se trata de território minado pelos interesses. A primeira dificuldade está na própria definição do que a palavra evoca. Historicamente, educação tem significado no país um processo de aposta na via da subjetividade para alcançar resultados que são sociais. Ou seja, pela via da aprendizagem formal seria possível universalizar valores morais e políticos que traduziriam interesses gerais. Por meio do ensino, as pessoas aprenderiam a viver em sociedade, ao mesmo tempo em que se capacitariam para o trabalho e a consequente mobilidade social decorrente de seu esforço pessoal.
Hierarquia e servilismo
Seria bom, se fosse verdade. Nunca foi assim. Na realidade, o sistema educacional, seja ele público ou privado (com aporte significativo de recursos públicos desde a criação das escolas religiosas, que ganhavam terrenos e isenção de impostos), funcionou muito mais na garantia da exclusão de classes do que no processo de inclusão. O sistema educacional brasileiro foi moldado como um retrato da sociedade, com hierarquias, racismo, machismo, estratégias de separação e um potente aparato ideológico de reprodução pouco crítica de uma determinada visão de mundo. Além disso, no aspecto profissional, a história foi sempre de servilismo aos interesses do sistema econômico, igualmente concentrador e denodadamente cego em seus objetivos. Em vez de garantir subjetivamente a cidadania, a educação brasileira ia na via inversa de sustentar publicamente os interesses privados.
Essa história durou séculos e foi deixando marcas na legislação (a primeira garantia de ensino público gratuito, em 1824, só contemplava cidadãos, o que deixava de fora a maior parte da sociedade e os escravos) chegando ao século 20, com a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1961, sonho de várias gerações de educadores. Ainda que gestada a partir das ideias do nacional-desenvolvimentismo, a legislação, ao mesmo tempo em que atendia a necessidade de qualificação das pessoas para o desafio econômico, tinha como pano de fundo a ideia de que era possível subverter as desigualdades a partir de um política redistributiva em termos de oportunidades de mobilidade social.
Sempre ligada à história de seu tempo, a educação sofreu sob a ditadura militar uma torção em direção ao autoritarismo e aos interesses explícitos do projeto de crescimento econômico. Houve resistência, sobretudo nas universidades públicas. No entanto, numa onda que depois ganharia novo alento na década de 90, a ligação entre produção e ensino, traduzida no conceito de “capital humano”, uma versão mais moderninha do já hediondo “recursos humanos”, se tornou caminho prioritário em termos de investimento público.
Além da escola
A situação hoje traz alguns elementos novos no caminho da democratização do acesso, mas ainda patina no que diz respeito à consideração filosófica e política da questão. É preciso destacar que a escola vem com o tempo perdendo a hegemonia que a considerava o lugar por excelência das trocas educacionais. A crise da institucionalidade da escola, percebida como terreno insuficiente para dar conta das desigualdades sociais, em vez de jogar contra ela, vem amadurecendo-a para exercer um novo papel político e a articulação com a sociedade, o que nem todos ainda perceberam. Se há uma escola nova a caminho, ela vem menos do setor produtivo com suas exigências de treinamento do que dos movimentos sociais com sua luta por reconhecimento e expressão.
Nesse contexto, falar de educação é falar de política e de modelo de sociedade. Não deixa por isso de ser motivo de satisfação a concessão do título de Patrono da Educação Brasileira a Paulo Freire (1921-1997), em decreto de 13 de abril . As ideias do educador estão mais atuais que nunca e ainda mais urgentes. O que se observa com relação a Paulo Freire é muito semelhante ao que se percebe em relação à educação: há um consenso que esconde a radicalidade. Assim como todos são a favor da educação (mesmo que não digam de que educação estão falando), todos defendem a alfabetização de adultos e a educação popular realizada por Freire em países de todo o mundo. No entanto, quando se trata de avançar para uma educação que mude as relações sociais, a história é outra.
Para o autor da Pedagogia do oprimido, educação era a prática da liberdade, um ato de conhecimento e de aproximação crítica da realidade, não um treinamento para realizar tarefas mais ou menos complicadas. Para garantir que todo homem e mulher pudessem realizar o que tinham de melhor em si, era necessário mudar a escola e, em consequência, a realidade à sua volta. O processo de libertação não era algo que se dava fora do sujeito. O opressor não está apenas no mundo exterior, mas habita cada um de nós. Educar, por isso, é libertar para a solidariedade, não para a competição que hoje cerca a educação e a define.
Como escreveu Paulo Freire em seu livro-testamento, “À sombra desta mangueira”: “No esforço de manter viva a esperança indispensável à alegria na escola, educadoras e educadores, não importa o que ensinem, deveriam analisar sempre as idas e vindas da realidade social. Idas e vindas que viabilizam maior ou menor razão de esperança”. Ninguém se educa sozinho nem fora do mundo. Educar é conviver com os outros e com o mundo. Sobretudo para se irmanar com o outro e para transformar o mundo.
Quem defende a educação deveria saber que está do lado da maior das revoluções.
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Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.