Saulo Feitosa, Cimi Regional Nordeste
É noite do dia 6 de janeiro, data na qual se evoca a memória dos reis magos que foram em busca do menino nascido em Belém, e o povo Xukuru festeja o Rei do Orubá. Alguns homens da comunidade de Palmeirinha trazem para o centro do terreiro pedaços de lenha caprichosamente cortados em partes iguais. Valeriano Xavante se aproxima e, fazendo uso da habilidade adquirida com seu povo, acende a fogueira em “um piscar de olhos”. Rapidamente as chamas sobem, aumentando a sensação térmica do ambiente naturalmente quente nessa época do ano. Crianças, jovens, adultos, anciãos, todas as expressões geracionais da bonita gente de Palmeirinha vão se achegando e formando o grande círculo em volta da fogueira onde acontecerá a roda de conversas, cantos e danças. Um misto de memória e utopia toma conta do ambiente, nos rostos de todos e todas se vê a tradução do sentimento interior: prazer, curiosidade, alegria…
Palmeirinha está localizada na região do Kariri, há cerca de 8 km da cidade de Juazeiro do Norte. Lugar de peregrinação desde o final do século XIX, quando o padre Cícero começou a atrair os sertanejos de várias partes do Nordeste que para lá se deslocavam, inicialmente a pé. Muitos chegando a percorrer distâncias superiores a mil km. Haroldo, missionário do Cimi que atua no sul da Bahia, fez uma fala inicial e passou a palavra para Valeriano Xavante e para o pajé Antonio Celestino, do povo Xukuru-Kariri que, de forma breve, saudaram os participantes daquele momento celebrativo. Como aquela região, território originalmente ocupado pelos povos indígenas da família Kariri, transformou-se em lugar sagrado para os nordestinos, que liderados por beatos e beatas protagonizaram bonitos episódios de fé e resistência popular, os indígenas inicialmente ouviram as histórias locais, contando com a contribuição da professora Maria do Carmo, do professor Océlio e do padre Machado.
Alguns deles, principalmente os pertencentes aos povos de Alagoas e Pernambuco, já tinham certa familiaridade com os assuntos abordados, mesmo porque o Juazeiro também é uma referência religiosa para seus povos. Mas outros ali presentes sequer tinham ouvido falar naquelas experiências de fé. Contudo, a forma como as conversas ocorreram favoreceram a compreensão por parte de todos e lhes possibilitou fazer uma interface com as lutas de seus povos, desde a Confederação Kariri, grande expressão da resistência indígena no final do século XVII, até as lutas indígenas atuais que acontecem em todo o país. As conversas foram intercaladas por cantos e danças dos povos Potiguara, Pataxó-Hã-Hã-Hãe, Pankararu e Xerente, que envolveram todas as pessoas, levando-as a participar conjuntamente. Ali, observando a fogueira e sendo aquecidos por seu calor, era possível sentir a força espiritual do lugar, o KARIRI, hoje território sagrado para indígenas, negros e sertanejos pobres; povos que lutam por justiça, testemunhos proféticos que nunca se calam, vozes-saberes da periferia do mundo que carregam consigo a esperança na LIBERTAÇÃO.
A celebração terminou com gosto de “queremos mais”. Ninguém demonstrava cansaço, mas Haroldo lembrou que precisávamos dormir e recompor as energias para o dia seguinte, quando na manhã, ainda cedo, nos deslocamos para a cidade de Nova Olinda, distante 50 km de Palmeirinha, passando pela Floresta Nacional do Araripe, um verdadeiro oásis em meio ao semiárido nordestino. Em Nova Olinda, um dos 11 municípios que integram a microrregião do Kariri cearense, visitamos a Casa Grande, um ponto de cultura que além de ofertar cursos e atividades artístico-culturais envolvendo a população local, abriga um pequeno museu sobre a presença indígena na região. A viagem foi muito prazerosa e informativa. Após o retorno para Palmeirinha, iniciou-se a preparação para a abertura do 13º Encontro Intereclesial de Cebs, que ocorreu na noite do dia 7, com a presença de cerca de 4 mil pessoas, vindas de todos os estados brasileiros, países da América Latina, Europa, África e Ásia. A celebração aconteceu na Praça do Santuário de São Francisco das Chagas, em Juazeiro do Norte. Mais um grande momento de emoção e celebração dos projetos de vida dos povos lutadores da Terra, que dão legitimidade ao “mote” inspirador do grande encontro: “Justiça e Profecia a Serviço da Vida”.