O Estado Democrático de Direito “tem se caracterizado pelo esvaziamento político das discussões e pelo significativo desrespeito aos direitos das populações atingidas por grandes empreendimentos no país”, diz a geógrafa.
IHU – As audiências públicas realizadas em Altamira e o processo de licenciamento ambiental demonstram as deficiências institucionais da construção da hidrelétrica de Belo Monte, diz Maíra Borges à IHU O-Line. Autora do livro recém lançado, intitulado Belo Monte: O estado democrático de direito em questão, a geógrafa assinala que a obra aponta implicações ambientais desde a elaboração do projeto, pois está sendo construída na Volta Grande do Xingu, que é considera Área de Importância Biológica Extremamente Alta de acordo com a Portaria n° 9 do Ministério do Meio Ambiente – MMA, datada de 23 de janeiro de 2007, por concentrar diversas espécies endêmicas e ameaçadas de extinção. “A bacia hidrográfica do Xingu abriga grande diversidade cultural e biológica e abrange um mosaico de Unidades de Conservação (UCs) e Terras Indígenas (TIs)”, aponta.
Na entrevista concedida por e-mail, Maíra salienta que o licenciamento ambiental de Belo Monte “foi repleto de obstáculos a uma efetiva participação dos povos atingidos pelo empreendimento”. Entre eles, cita a “distância entre os locais em que se realizaram as audiências públicas e os municípios que elas objetivavam abranger, onde efetivamente situam-se as populações atingidas, (…) e as condições de apropriação do conteúdo”, porque “grande parte das audiências públicas foi realizada com linguagem inapropriada ao entendimento dos povos indígenas presentes. Tal forma de linguagem se caracteriza pela desqualificação do interlocutor, furtando-se ao discurso qualitativo, e pela tendência a minimizar problemas, não considerando as populações atingidas, como preconiza a legislação brasileira”.
Maíra Borges é graduada em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e mestre em Ciência Ambiental pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Foi voluntária e ativista do Greenpeace Brasil e representou a delegação de jovens da organização na 15º Conferência das Partes da Organização das Nações Unidas – ONU, ocorrida em dezembro de 2009, em Copenhague, na Dinamarca. Atualmente trabalha na Assessoria de Planejamento e Gestão da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro – Seeduc.
IHU On-Line – Pode nos dar uma breve caracterização da bacia hidrográfica do Rio Xingu? Quais as implicações da construção de Belo Monte para a bacia?
Maíra Borges – O rio Xingu é um dos principais afluentes do rio Amazonas e nasce no Parque Indígena do Xingu, estado do Mato Grosso, região centro-oeste do país, e depois segue para o estado do Pará, na região norte, atravessando dois biomas de grande importância e rica biodiversidade, o Cerrado e a Amazônia.
A Volta Grande do Xingu, grande meandro do rio perto de Altamira (PA), é onde um dos sítios da usina está sendo construído (sítio Pimental), e é considerada “Área de Importância Biológica Extremamente Alta” (Portaria n° 9/MMA, de 23 de janeiro de 2007) com diversas espécies endêmicas e ameaçadas de extinção.
A bacia hidrográfica do Xingu abriga grande diversidade cultural e biológica e abrange um mosaico de Unidades de Conservação (UCs) e Terras Indígenas (TIs). Os povos indígenas e as comunidades ribeirinhas e extrativistas rurais são os principais habitantes da região que acompanha o rio, e os conflitos são predominantemente marcados pela pressão de desmatamento, queimadas, plantations de soja e pecuária extensiva. As populações indígenas, além de ocuparem parte significativa da bacia do rio Xingu, se conformaram ao longo do tempo como grupo de sujeitos em resistência ao projeto, principalmente a etnia Kaiapó, situada ao sul da região onde se pretende construir a usina.
De acordo com o Estudo sobre Impacto Ambiental (EIA) do Aproveitamento Hidrelétrico (AHE) do rio Xingu, existem populações indígenas que serão diretamente impactadas: Juruna do Paquiçamba, Arara da Volta Grande, Juruna do Km 17, Asurini do Koatinemo, Araweté, Parakanã, Arara, Arara de Cachoeira Seca, Kararaô.
O projeto da usina é de grande impacto ambiental e data de 1975, quando o Brasil fazia sua escolha pela matriz energética. O projeto já foi modificado inúmeras vezes, porém isso não foi o suficiente para cessar as polêmicas e irregularidades que o envolvem, desde o princípio. Os impactos da Usina hidrelétrica de Belo Monte vão muito além da área alagada prevista pelo projeto e a avaliação de impacto ambiental realizada não deu conta da totalidade dos danos que podem ocorrer na região.
IHU On-Line – Quais são as principais críticas ao processo de licenciamento ambiental da usina hidrelétrica de Belo Monte e à maneira como o processo de licenciamento ambiental é realizado no Brasil?
Maíra Borges – O licenciamento ambiental no país foi regulamentado pela Resolução Conama 001/86, que estabeleceu as diretrizes gerais para o Estudo de Impacto Ambiental e seu respectivo Relatório de Impacto Ambiental (Rima) necessários no processo de licenciamento.
Como projeto de grande impacto ambiental, Belo Monte precisaria responder às demandas da regulação nacional pela via da política ambiental brasileira. As controvérsias a respeito do projeto atingiram, de forma significativa, o âmbito internacional de debate, em virtude do acirramento dos conflitos durante o processo mais recente de licenciamento ambiental de Belo Monte, desde 2009.
Esse processo expõe a disputa entre um projeto marcado pela lógica desenvolvimentista e hegemônica, de um lado, e a luta pelo reconhecimento de direitos e por um Estado Democrático, de outro. Permaneceu sob ampla resistência de ambientalistas, movimentos sociais, representantes e líderes das populações atingidas pela obra, como ribeirinhos e indígenas, e foi retomado, como prioridade para o governo, a partir da “crise energética” (2001) que afetou o país e trouxe à tona o debate sobre geração de energia e matriz energética.
Conforme consta no Painel de Especialistas, as controvérsias analisadas sugerem um processo de legitimação neoliberal que compromete a garantia de direitos dos povos indígenas, assegurados tanto na Constituição Federal Brasileira (1988) quanto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que determina que os povos afetados sejam antecipada e devidamente ouvidos e consultados.
IHU On-Line – A partir da construção de Belo Monte, o que é possível dizer sobre o Estado Democrático de Direito brasileiro? Quais são as deficiências institucionais constatadas ao analisar o licenciamento ambiental da hidrelétrica?
Maíra Borges – Um Estado Democrático de Direito deve assegurar condições de participação, e as audiências públicas, num processo de licenciamento ambiental, deveriam representar, segundo suas funções formalmente prescritas, espaços de consulta e debate durante o licenciamento ambiental. No entanto, têm se caracterizado pelo esvaziamento político das discussões e pelo significativo desrespeito aos direitos das populações atingidas por grandes empreendimentos no país, direitos ancorados na Constituição Federal de 1988.
O processo de licenciamento ambiental de Belo Monte foi repleto de obstáculos a uma efetiva participação dos povos atingidos pelo empreendimento. Um primeiro obstáculo refere-se à distância entre os locais em que se realizaram as audiências públicas e os municípios que elas objetivavam abranger, onde efetivamente situam-se as populações atingidas. Além disso, a qualidade das estradas que ligam esses municípios é muito precária, como é o caso da Rodovia Transamazônica, ou BR-230, o que também afeta as condições de participação nas arenas públicas de discussão.
Outro obstáculo refere-se às condições de apropriação do conteúdo. Líderes ribeirinhos afirmaram, em diversos depoimentos e reportagens divulgadas na mídia, que grande parte das audiências públicas foi realizada com linguagem inapropriada ao entendimento dos povos indígenas presentes. Tal forma de linguagem se caracteriza pela desqualificação do interlocutor, furtando-se ao discurso qualitativo, e pela tendência a minimizar problemas, não considerando as populações atingidas, como preconiza a legislação brasileira.
Por isso, no livro, tentei analisar as audiências públicas como arenas públicas e com o objetivo de avaliar se o processo decisório acerca de Belo Monte não se limitou à proposição liberal e meramente formal de participação. A qualidade da participação pode ser percebida como um princípio para análise de um processo democrático e se associa às condições concretas para que as populações atingidas tenham oportunidade e possibilidade de compreender os riscos e os impactos que envolvem o projeto do empreendimento em questão — e que devem estar acessíveis e explícitos em estudos e relatórios de impacto ambiental.
Pode-se ressaltar, como um terceiro obstáculo à participação, o espaço disponível para as arenas públicas e o tempo oferecido às populações atingidas para que exponham seus interesses e dúvidas acerca do projeto, mesmo quando são posicionamentos contrários à lógica desenvolvimentista vigente no país.
O processo decisório de Belo Monte evidenciou a aliança do Estado, personificado pelos governos que o ocuparam nesse período, com os interesses econômicos dos setores privados, empreendedores das ações desenvolvimentistas. Nos últimos anos do processo, para além das pressões políticas, tornou-se evidente também o protagonismo exercido pelo Estado brasileiro ao aportar recursos públicos — mediados pelo BNDES — para a viabilização do Consórcio Norte Energia, responsável por um projeto cuja qualidade dos processos consultivos e deliberativos foi fortemente contestada.
Dessa maneira, torna-se evidente que no atual modelo de licenciamento do Brasil (e não só o caso de Belo Monte) as audiências públicas são espaços de legitimação de decisões previamente realizadas (sem qualquer debate) e condizentes com a lógica de acumulação do capital. Na interface entre a política energética, o reconhecimento de direitos e a política ambiental brasileira, a estratégia de exploração da Amazônia parece prisioneira de uma concepção autoritária de política pública, que negligencia a pluralidade de atores sociais que pretendem legitimamente se fazer ouvir nas esferas de decisão.