A Colônia Padre Damião, fundada em 1945, recebeu até a década de 80 portadores de hanseníase provenientes de diversos estados brasileiros para internação compulsória; veja o Minidoc
por Renata Meffe, A Pública
Quem se aproxima do quilômetro 6 da Rodovia Juiz de Fora-Ubá, em Minas Gerais, ainda pode vertrechos da cerca de bambu que por quase quatro décadas isolou a Colônia Padre Damião do resto do mundo. Assim como ocorreu em mais de trinta unidades de tratamento de hanseníase construídas no Brasil a partir de 1920, ano de criação da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas – órgão do governo federal – a Colônia de Ubá, como também era conhecida, funcionou como um estado dentro do estado.
Dotada de infra estrutura completa para permitir sua quase autossuficiência, e contando com a atuação dos internos nas mais diferentes funções laborais, justamente para garantir a autonomia da pequena comunidade, tinha normas próprias que incluíam até mesmo um sistema carcerário específico. A polícia convencional não entrava lá.
Os portadores de hanseníase chegavam à estação ferroviária da cidade geralmente contra a própria vontade e sem conhecer o caráter permanente da internação. Os internos que se aproximassem da densa cortina de bambu que circundava a colônia portando facas ou qualquer aparato cortante eram imediatamente detidos na cadeia local, apelidada pelos moradores de “estufa”. Outras chamadas“infrações”, como namorar sem autorização ou envolver-se em brigas, também levavam os internos à prisão na “estufa”.
A privação do direito de ir e vir e os castigos em resposta a conflitos cotidianos não eram as únicas violências a que estavam submetidos os internos do então denominado leprosário. Revogada em 1968, mas na prática estendida até a década de 80, a Lei 610/49, que determinava a segregação de pacientes com hanseníase, também ordenava que os pais portadores da doença entregassem seus filhosà adoção, o que levou à separação de milhares de famílias.
Desde a Colônia de Ubá, os bebês eram encaminhadas ao Educandário Carlos Chagas, em Juiz de Fora, distante 112 quilômetros. Embora a lei determinasse a retirada dos bebês nascidos nas colônias, a instituição que os recebia não contava com um centavo proveniente de recursos governamentais. Não raro os depoimentos que ouvimos de antigos acolhidos incluem a descrição de episódios de negligência e, em alguns casos, maus tratos. O retorno à família também costumava ser problemático em função da ausência de vínculos com os pais, e porque as crianças e jovens não comungavam de um sentimento de pertencimento em relação à colônia – à qual os pais estavam condenados para toda a vida. No educandário, eram tidos como os meninos e meninas do leprosário;de volta à colônia, eram as crianças do educandário.
Hoje oficialmente denominada Casa de Saúde Padre Damião, o estalebelecimento é hoje mantido pelo Complexo de Reabilitação e Atenção ao Idoso, da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais. Ex-internos e seus familiares constituem também parte da população dos povoados vizinhos: São Domingo e Boa Vista.
Ainda que em 2007, através da a lei 11.520, o governo brasileiro tenha reconhecido formalmente seu erro quanto às políticas de segregação adotadas no tratamento da doença, garantindo a concessão de pensão especial às pessoas atingidas pela hanseníase submetidas ao isolamento, o recurso nem sempre é obtido. O direito ao recebimento das indenizações depende da comprovação da internação compulsória e em muitos casos a documentação necessária não foi preservada. Por outro lado, uma série de demandas dos grupos atingidos pela hanseníase permanecem sem resposta. Além da reparação, os moradores da Colônia Padre Damião compartilham com os ex-internos das outras três ex-colônias mineiras a luta pela regulamentação de posse de suas casas. Localizadas em áreas consideradas hospitalares, ainda pertencem formalmente ao governo estadual.
Desde 2009 frequentando a comunidade, graças à relação de amizade com alguns moradores, passamos, a partir de 2012, a registrar relatos dos ex-internos em vídeo. Entrevistamos também ex-moradores do educandário, ex-funcionários do hospital-colônia e membros do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN).
Uma pequena amostra destes registros compõem o minidoc Cortina de Bambu, realizado em parceria com o Canal Futura. Como os relatos impressionantes multiplicam-se a cada nova visita, um longa-metragem está em processo de produção. As histórias vão de disputas futebolísticas épicas a fugas, regressos e reações despropositais ao estigma da doença, que ia para além do bambuzal poderia chegar a ser mais limitador que o encarceramento forçado. Amores contrariados, separações, reencontros e a construção de laços de amizade e de núcleos familiares formam as memórias da Colônia de Ubá.