Pós-Copa, a UPP Tarda e a Ocupação do Exército Continua na Maré

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Rio On Watch – Três meses se passaram desde a ocupação das 16 favelas que compõem o Complexo da Maré. A ocupação do exército é a primeira etapa para estabelecer a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) no complexo, e completar as 40 UPPs que o governo do estado prometeu até o fim de 2014. Enquanto referida como Força Pacificadora, as forças armadas que atualmente ocupam a Maré não devem ser confundidas com as UPPs implementadas em outras favelas. O projeto das UPPs inclui oficiais de polícia da Polícia Militar do Rio de Janeiro especialmente treinados, e todos os recrutados tem origem direta da academia de polícia. Apesar das limitações o programa tem como missão construir uma relação de confiança e paz, promovendo inclusão. O exército, por outro lado, segue sua lógica estritamente militar.

Ocupação versus Pacificação

Os primeiros rumores sobre a instalação da UPP chegaram na Maré em 2012, com anúncios na imprensa começando em março de 2013. Preocupados com as experiências ambíguas relatadas em outras favelas, os moradores e as organizações da sociedade civil da Maré começaram a se preparar.

De acordo com Raquel Willadino do Observatório de Favelas, “A gente não quer estar num lugar de reação à política–a gente quer estar num lugar de construção de política”. O Observatório, junto com a Redes da Maré e outras organizações locais, lançaram uma campanha chamada “Somos da Maré e Temos Direitos“. A campanha visa construir um canal de comunicação entre movimentos sociais locais e representantes do governo. A campanha também informa moradores sobre seus direitos, especialmente no contexto de abordagens policias na rua e em suas casas. O objetivo é preparar a comunidade para a entrada da polícia e “afirmar a segurança como um direito“, o que, historicamente, não vem sendo oferecido para aqueles que residem em favelas.

Desde que foi anunciado, em 2012, que a Maré iria receber a UPP até o final da Copa, o processo foi caracterizado por incertezas e uma falta de transparência total. A ocupação da Maré foi adiada várias vezes. Quando foi finalmente anunciada esse ano, veio de forma diferente da que a comunidade havia visionado e para a qual havia se preparado: veio como uma ocupação militar com o apoio do exército. De acordo com Willadino, a ocupação pelo exército foi um grande retrocesso, reforçando a militarização pelo governo. Nos 15 dias iniciais da ocupação, 16 pessoas foram mortas e 162 presas.

Estado Militar de Exceção

As tropas que atualmente ocupam a Maré são referidas como “Forças Pacificadoras,” mas a lógica que governa as mesmas é militar. Na prática, um estado militar de exceção foi instalado, causando sérias consequências no dia-a-dia e na rotina dos 130.000 moradores que ali residem. A Presidente Dilma Rouseff assinou um decreto autorizando o uso de tropas federais através da Garantia da Lei e da Ordem (GLO). A GLO concede poderes policias para as forças armadas. Ou seja, eles tem permissão para patrulhar as ruas, interrogar e prender.

Já houveram diversas denúncias de violações desde a ocupação, especialmente em termos de abordagens ilegais. De acordo com a Constituição Brasileira, um mandado ou justa causa é preciso para abordar cidadãos nas ruas e para entrar em suas casas. A campanha “Somos da Maré e Temos Direitos” distribuiu materiais explicando o aparato legal. Diante do estado de exceção, esses direitos são suspensos. A moradora Lídia Felix relatou a história de um homem que ao apresentar o material da campanha quando sua casa foi invadida, foi forçado a comê-lo. Outros relatam procuras ilegais que deixaram as casas de moradores completamente saqueadas.

Enquanto não existe um toque de recolher oficial, moradores afirmam que existe um não oficial.

Depois das 21h ou 22h, qualquer um visto nas ruas está sujeito a interrogação, “já que quem anda às duas horas da madrugada na favela não pode estar fazendo coisas boas”, relata a moradora Lydia Castro. Ela afirma que o direito de ir e vir foi enfraquecido desde a ocupação. Lídia Felix concorda argumentando que “não tem segurança. O que temos é uma grande insegurança“.

Um dos argumentos usado repetitivamente pelo governo para justificar a ocupação é para libertar as favelas do Rio de Janeiro das mãos dos traficantes de drogas. Eles afirmam, também, que buscam trazer paz e segurança pública. Entretanto, mesmo depois da ocupação, mídias comunitárias e organizações da sociedade civil da Maré frequentemente publicam através do Facebook avisos de tiroteios. Duas semanas atrás, o RioOnWatch testemunhou a venda de drogas na rua, acontecendo a céu aberto, bem em frente aos oficiais do exército. Esses acontecimentos provocam questionamentos sobre a verdadeira intenção do governo. Por que eles estão aqui? Por que agora?

Cronograma

O decreto inicial dizia que o exército evacuaria a Maré no dia 31 de julho, período esse que coincide com a saída dos turistas da cidade após o término da Copa do Mundo. Aconteceria, então, um período de transição onde o exército seria substituído por oficias da UPP recém graduados. Entretanto, menos de um mês antecedendo a anunciada retirada do exército, a Maré ainda não recebeu nenhuma notícia referente a como e quando o processo de transição será iniciado. A último atualização é que o exército permanecerá até outubro, coincidindo com o fim das eleições. É impossível ignorar o cronograma estratégico da ocupação.

Muitos moradores estão com a impressão que a ocupação é uma estratégia do governo em controlar a área para manter a paz durante a Copa do Mundo. De acordo com Lydia: “A gente costuma dizer que o que aconteceu na Maré foi uma grande maquiagem…uma maquiagem muito mal feita, não só na Maré, mas em todas as comunidades”.

UPP e Esperança para o Futuro

continuidade de tiroteios e venda de drogas não é uma exclusividade da Maré. Moradores de outras favelas que receberam UPPs relatam os mesmos problemas. A violência notória da polícia continua em algumas comunidades com UPP; a policia da UPP já matou mais de 30 pessoas até agora. Outras denúncias incluem tortura, extorsão e corrupção. Está se tornando cada vez mais difícil enxergar como o programa da UPP pode distanciar-se das antigas intervenções policiais nas favelas.

Assim como muitas, se não todas as favelas, a Maré precisa desesperadamente melhorar a relação entre a polícia e moradores. Um ano se passou desde a “Chacina da Maré“, uma operação que causou 9 mortes em uma noite. Uma explicação do que aconteceu aquela noite não é importante somente para que as famílias e a comunidade possam seguir suas vidas com tranquilidade, mas também para a própria cidade–servindo como o “pior caso possível” sobre o que não deve acontecer de novo. Entretanto, Raquel Willadino teme que a maioria dessas mortes sejam caracterizadas como “atos de resistência”, o que, na prática, retira qualquer culpa da polícia.

Com sua história marcada por tanta tragédia, violência e completa falta de transparência, os moradores da Maré têm preocupações legítimas com a atual ocupação do exército e as futuras consequências que a implementação da UPP trará.

Thaís Cavalcante, moradora da Maré e editora do jornal local O Cidadão, está pessimista em relação a melhora da relação entre a comunidade e a polícia com a chegada da UPP. Ela diz: “Acredito que não [vai melhorar]. Acredito que quanto mais o tempo passa, mais eles se mostram ineficazes”.

Polícia de Segurança que vai Além do Policiamento

O programa da UPP supostamente foi pensado para quebrar a visão histórica da favela como território inimigo periférico controlado pelo poder paralelo dos traficantes de droga. Escalar o exército nacional para executar uma ocupação militar de um território dentro da cidade não faz a desassociação com o passado. Muito menos o controle estrito sobre outros aspectos da vida na comunidade, como, por exemplo, a restrição de quando, onde e que tipo de festas moradores podem organizar. O processo parece mais uma colonização de um território e população externa do que um processo de inclusão.

A Maré, entretanto, não é uma receptora passiva desse modelo de segurança pública que parece mais interessada em proteger o resto da cidade e os turistas deles do que em prover segurança para os moradores. A comunidade possuí uma sociedade civil bem organizada que continuamente trabalha para influenciar e promover a políticas de segurança e serviços públicos.

Quando a pacificação veio de uma forma na qual eles não queriam ou concordavam, a comunidade organizou uma reunião pública com o Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, em uma quinta-feira, dia 4 de Abril. Eles apresentaram um protocolo que foi coletivamente elaborado pelos moradores da Maré e outros movimentos sociais, onde eram listados diversas demandas para melhorar a relação entre policiais e moradores. Nos meses que se passaram desde a ocupação, reuniões com outras agências governamentais foram realizadas, promovendo o debate em áreas como saúde e educação. Nas palavras de Raquel: “É preciso que seja um processo que caminhe cada vez mais para a construção de um conjunto de políticas publicas integradas… A compreensão de que segurança pública tem que ser necessariamente pensada duma forma muito mais amplia de que só policial”.

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