Mídias livres, teatro popular, associações, protestos. Como resiste a maior favela carioca ao crime organizado e a cinco meses de violências do Bope e Exército
Reportagem especial de Lia Imanishi, do Retrato do Brasil, parceiro de Outras Palavras
O complexo da Maré é um conjunto de 16 comunidades de moradores formado por ruelas, becos e construções apinhadas com acabamento e infraestrutura precários que foram sendo erguidas em meio a pequenas ilhas e manguezais à margem da baía de Guanabara, na capital do Rio de Janeiro, a partir dos anos 1940. Famílias desalojadas por obras urbanísticas e viárias no centro da cidade passaram a construir ali casas sobre palafitas e viviam, sobretudo, da pesca, ao sabor das marés. A região foi sendo paulatinamente aterrada, com rejeitos de obras da população vizinha e entulho transportado por caminhões do serviço público. Hoje, a Maré abriga cerca de 130 mil pessoas e é considerada o maior complexo de favelas do Rio. É também uma das áreas mais pobres da cidade. Em 2010, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da região foi o 123º colocado, entre as 126 áreas administrativas do Rio.
A Maré é próxima das três principais vias expressas do Rio: avenida Brasil, Linha Amarela e Linha Vermelha, rotas obrigatórias para o aeroporto internacional Tom Jobim, para São Paulo e as zonas norte, oeste e sul da cidade. Como estão sempre congestionadas, os moradores da Maré têm um sério problema de mobilidade, além de respirar o ar mais poluído da capital.
Em meados de fevereiro, policiais militares e unidades da chamada Polícia Pacificadora do estado começaram a ser atacados com granadas e outros armamentos. As forças de segurança consideraram que o ataque fora comandado por bandidos da facção Comando Vermelho, ligada ao tráfico de drogas e baseada, entre outros locais, em duas comunidades da Maré. Em nome da segurança no período da Copa do Mundo, o então governador Sérgio Cabral pediu formalmente – e a presidente Dilma Rousseff autorizou – a ocupação da Maré pelas Forças Armadas até o final de julho, após o término da Copa quando, supostamente, já estarão implantadas Unidades de Polícia Pacificadora na região.
Numa atividade preparatória da ocupação militar, na madrugada de 21 de março, 120 homens do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) da PM invadiram Nova Holanda e Parque União, as duas comunidades da Maré citadas, em busca dos traficantes e suas armas. Os policiais apreenderam sete quilos de maconha, três de cocaína, um fuzil, dois carregadores e uma granada.
A ocupação ocorreu sem incidentes. Dias depois, segundo o jornal comunitário Maré de Notícias, cinco jovens de 19 a 22 anos foram detidos por policiais, espancados e torturados psicologicamente. “Pensei que ia morrer”, disse um deles ao jornal. Ele relatou que os agressores eram dois policiais que chegaram ao local onde eles estavam – um cômodo mais banheiro – atirando para o alto. Os cinco foram agredidos. Os policiais queriam encontrar drogas ou armas, mas não acharam nem uma coisa, nem outra. Então, prenderam todos no banheiro e disseram que iriam explodir o local. Por fim, depois de uma hora e meia de ameaças, os cinco foram deixados trancados, com a ordem de não sair, sob pena de morte. Um deles conseguiu enviar uma mensagem de celular para a mulher. Ela os localizou e tentou entrar na casa. Os policiais a interceptaram e a mandaram embora. Por volta das 19 horas, ela voltou; os PMs tinham partido e ela conseguiu resgatar o marido e seus amigos. Segundo vizinhos, os PMs não saíram pela porta da frente. Provavelmente pularam para outra residência, saltando de laje em laje.
O Maré de Noticias é mensal, produzido, impresso e distribuído na Maré por uma equipe formada por seis jornalistas e estagiários e um designer gráfico, nascidos na Maré ou em bairros periféricos. O jornal é feito em parceria com o Observatório de Favelas e tem sede no mesmo local da Redes de Desenvolvimento da Maré, uma organização não governamental. Vários moradores têm procurado o jornal para relatar violências durante a ocupação militar, a maior parte envolvendo a invasão de domicílios sem mandado judicial.
Os cinco rapazes agredidos em 26 de março passam bem, diz o Maré de Notícias. O mesmo não se pode dizer de Alexandre, um rapaz de 18 anos, ainda sem sobrenome divulgado, que teria sido morto pelo Bope na manhã do dia seguinte, uma quinta-feira. Segundo o Maré, entre oito e nove horas da manhã, quatro policiais do Bope abordaram dois rapazes que estavam numa praça na rua João Araújo, no Parque Rubens Vaz, outra das comunidades da Maré. Um dos rapazes teria sido dispensado. O outro, Alexandre, foi levado pelos policiais até sua própria casa, localizada na mesma rua, onde vasculharam seu quarto. Em seguida, ele foi conduzido a um beco próximo. Logo depois, segundo moradores contaram ao Maré, foram ouvidos quatro tiros. A seguir, os PMs bloquearam o acesso ao local. Algum tempo mais tarde, outros policiais chegaram num carro da Polícia Civil. Ficaram na casa de Alexandre até as 13h30 e de lá saíram com um saco preto, onde os vizinhos acreditam que estava o corpo do rapaz. Ainda segundo o Maré, quando o Bope saiu, boa parte dos vestígios do crime já havia sido removida. A assessoria de comunicação da Polícia Militar informou que o rapaz foi socorrido no Hospital Geral de Bonsucesso e que foi feita perícia no local onde ele teria sido assassinado. A PM informou ainda que a 21ª Delegacia de Polícia está investigando o caso e que o jovem tinha uma arma calibre 40.
No mesmo dia da morte de Alexandre, dirigentes de associações de moradores da Maré e representantes de ONGs atuantes no bairro procuraram o comando da PM para reclamar. O tenente-coronel Rodrigo Sanglard, do Comando de Operações Especiais, incentivou os moradores a denunciarem a morte de Alexandre e outros supostos abusos. “Só se entra [em uma casa] com mandado ou com autorização do morador”, afirmou Sanglard. “Se não, é abuso de autoridade.”
Na madrugada do domingo seguinte, 30 de março, 1.180 homens das polícias Civil e Militar e mais 250 fuzileiros navais, com 21 blindados da Marinha do Brasil e quatro helicópteros – um dos quais apelidado de Caveirão do Ar, também blindado – ocuparam a Maré para dar suporte à instalação da 39ª UPP do estado. Foi uma operação rápida, sem troca de tiros. No sábado seguinte, 5 de abril, um novo grupo, composto por 2.050 militares da Brigada de Infantaria Paraquedista do Exército, aportou na Maré para substituir os policiais civis, e mais 200 fuzileiros navais se juntaram aos 250 ali instalados. Os militares disseram ter poder de polícia, podendo fazer prisões. Segundo eles, seria feito um mapeamento da área e as buscas se concentrariam nas proximidades das casas usadas por traficantes.
Na madrugada de 5 de abril, quando os militares chegaram, havia ainda muita gente nas ruas e ouvia-se música alta. Os militares mudaram esse clima. Começaram a revistar pessoas e a pedir documentos dos ocupantes dos carros que passavam. Por volta das seis horas da manhã, blindados das Forças Armadas se posicionaram nas saídas do complexo. Quando o dia clareou, Gustavo Augusto, de 18 anos, foi, segundo a PM, encontrado morto num dos acessos ao conjunto de favelas. Mais tarde, passado o meio-dia, Vinícius Guimarães, de 15 anos, morreu baleado em meio a uma batalha de pedras travada entre cerca de 60 jovens das comunidades de Nova Holanda e Baixa do Sapateiro.
A ocupação da Maré apresenta dificuldades para o Exército. Fernando Montenegro, coronel da reserva que filmou a missão de ocupação no complexo do Alemão, disse ao diário Folha de S.Paulo que lá as tropas foram instaladas nos teleféricos, caixas d’água e casas de traficantes abandonadas que ficavam no alto dos morros. “Tínhamos uma visão do terreno de cima, o que nos dava uma vantagem. Na Maré, a área é plana. Se estiverem andando apenas em becos e sem ocupar as lajes, as tropas vão ficar à mercê de ataques.” Para Montenegro, a tropa de paraquedistas é das melhores do Exército, mas a tarefa é difícil.
Balanço feito pela Secretaria de Segurança (Seseg) do estado referente aos 15 dias das operações que antecederam a ocupação militar do início de abril constatou que a PM já havia matado 16 pessoas e ferido oito no complexo da Maré, supostamente em 36 confrontos com suspeitos. Foram apreendidas 101 armas, 2.252 munições e uma quantidade não divulgada de drogas ilícitas.
Alexandre Fontenelle, coronel da PM lotado no Comando de Operações Especiais, disse em entrevista coletiva que ocorreu só um confronto direto com morte, o do Parque Vaz, episódio em que, possivelmente, se deu a morte de Alexandre. “O restante foi em conflitos pontuais”, para os quais Fontenelle deu uma explicação simples: “As ocorrências registradas fazem parte do processo pré-pacificação”.
Em 6 de maio, Luiz Eduardo Soares, ex-secretário nacional de Segurança Pública, participou do evento “Diálogos necessários – Seminário sobre segurança pública nas favelas”, realizado na Maré. Presentes estavam também Juliana Barroso, representante da Seseg, Alexandre Ciconello, da Anistia Internacional Brasil, e Jailson Silva, do Observatório de Favelas. Durante o encontro, moradores relataram casos de violações de direitos e de abuso por parte das forças policiais.
Juliana disse estar comprometida com a implantação de uma UPP com mais participação dos moradores. Admitiu, no entanto, que o processo tem falhas e é necessário fortalecer as disciplinas de direitos humanos na formação de policiais.
Já Soares foi enfático ao criticar a ocupação militar na Maré. Segundo ele, a ação não se sustenta: “O Estado foi incapaz de resolver os problemas de segurança e teve que recorrer a um expediente externo absolutamente artificial e provisório”.
Em maio, policiais e militares continuaram a promover operações em diferentes pontos da Maré. Várias dessas operações provocaram o fechamento de quatro escolas municipais. Numa delas, a 16 de abril, por volta do meio-dia, o Caveirão do Ar sobrevoou a área ocupada por um grupo de alunos que saíam da Escola Municipal Nova Holanda. Foram ouvidos tiros que, pelas marcas deixadas no chão de uma das ruas, parecem ter sido disparados do helicóptero.
A Maré já viveu histórias trágicas envolvendo estudantes: em maio de 2011, um aluno foi morto dentro do CIEP Gustavo Capanema; em agosto do ano passado, um homem foi morto dentro do CIEP Samora Machel. As salas da administração do CIEP Samora estão cheias de marcas de balas e o clima entre os profissionais é de insegurança. OMaré de Notícias ouviu alguns deles: “Geograficamente, ficamos entre dois grupos rivais. Além do confronto do lado de fora, muitas vezes grupos armados pulam o muro da escola, que virou rota para fugir da polícia. Hoje, o muro não é obstáculo, cadeados são arrombados, não há respeito com a área escolar”, relata um. “O inexplicável é que o posto de saúde Samora Machel, que funciona no mesmo prédio do colégio, está fechado [desde 8 de abril]. Ou seja, para a secretaria municipal de Saúde os funcionários não têm condição de trabalho. Isso é uma incoerência”, critica outro.
Há quem diga que oito professores e 20 alunos já pediram transferência este ano: “As crianças já estão traumatizadas. Quando há tiros, se jogam no chão. Todos os dias aqui é uma tensão. O funcionário da secretaria municipal de Educação vem aplicar prova e não deseja voltar. Nós estamos aqui todos os dias. Detalhamos o problema em nossas atas, mas não há respostas”.
As incursões policiais também afetaram o funcionamento de creches, postos de saúde e do comércio da Maré. Alguns moradores evitam sair à noite.“Na sexta-feira, eu gostava de tomar uma cervejinha, bater um papo. Agora vou direto pra casa”, relata um deles. “Agora mudou, estou com medo. No sábado, 6 de abril, foi quase uma hora de tiroteio. Estávamos jogando futebol e tivemos de correr para o vestiário.” “Eu estava na rua Teixeira Ribeiro, onde sábado tem feira e fica lotada de pessoas. Os policiais entraram dando tiro para o alto, apontando a arma no horário da feira. Eram umas 10h40”, conta outro morador.
Mensalmente, desde 2010, os presidentes das associações de moradores locais se reúnem no coletivo “A Maré que queremos” para debater políticas públicas que possam gerar mudanças estruturais e melhorar a qualidade de vida nas comunidades. Em 18 de abril, no início de uma dessas reuniões, realizada na Nova Holanda, dez líderes comunitários foram surpreendidos com a notícia de que um blindado da polícia estava dentro do CIEP Operário Vicente Mariano. Foram falar com o tenente-coronel Sanglard para cobrar explicações. Um dos representantes do grupo disse ao policial que a forma como as operações policiais vinham ocorrendo provocava uma inversão de valores: “Em vez de a comunidade se sentir segura com a polícia, ela está com medo”. O blindado tinha ocupado o pátio da escola das 8h30 às 10h30. As aulas já haviam sido suspensas, por outras operações policiais na região. Informado sobre o incidente e o impacto das ações no funcionamento de escolas, creches e postos de saúde, Sanglard se comprometeu a levar o problema até o comando da PM.
“A população não pode ver o Exército como inimigo”, afirmou, durante palestra promovida pelo Ministério Público Militar, Ronaldo Lundgreen, general de brigada e um dos oficiais à frente da ocupação da Maré. Segundo ele, os militares foram treinados num curso com base no relatório de 600 páginas da Operação Arcanjo, a intervenção de 19 meses do Exército no complexo do Alemão. Os soldados teriam aprendido a patrulhar ruas, a deparar com cidadãos comuns indo e vindo para a escola e o trabalho. “O soldado não tem um inimigo à sua frente. Ele tem um cidadão, uma criança. Às vezes, ele tem o bandido. É nesse momento que devemos ter mais cuidado.” Ronaldo conclui: “Não podemos nos esquecer de que o nosso Exército tem militares que moram no Alemão e na Maré. Isso faz com que a gente se sinta parte da comunidade”.
As Forças Armadas têm, de fato, entre seus quadros, habitantes de favelas. Exemplo notável, embora mau, é o de Marcelo Santos das Dores, o Menor P, um dos chefões do tráfico na Maré, ligado ao Terceiro Comando Puro. Preso em março, Menor P foi da Brigada de Infantaria Paraquedista, a unidade de elite do Exército que ocupou a Maré. Ele dava treinamento militar a seus homens e também tinha o hábito de torturar desafetos. Menor P é investigado pela morte do guarda municipal William Oliveira, cujo corpo teria sido queimado e está desaparecido. Oliveira seria informante da inteligência do Exército, monitorava os bandidos e fazia vídeos. A Polícia Federal (PF) também diz que o armeiro da quadrilha de Menor P é um ex-fuzileiro naval, outra das forças de elite que ocupam o complexo. Quatro dias depois da prisão de Menor P, oito integrantes de seu bando foram presos, entre eles um policial militar, um ex-agente penitenciário e um instrutor de tiros. A investigação que levou à prisão dos bandidos durou um ano. Segundo a PF, Menor P chegava a gastar até 500 mil reais por mês com propina a policiais corruptos. Em nota, após a prisão de parte da quadrilha do traficante, estimada em 200 homens, a Seseg afirmou que “a corrupção policial não é tolerada e o combate a esse crime já resultou na expulsão de 1.640 policiais militares e civis na atual gestão”.
Tendo de um lado os bandidos, alguns dos quais treinados pelas Forças Armadas, como vimos, e, de outro, o Exército e a polícia, os moradores da Maré vão tentando se organizar. Em duas das comunidades, Parque União e Nova Holanda, eles estão lutando para derrubar um mandado de busca coletivo, que autoriza a invasão de qualquer casa na área, expedido pela Justiça e apoiado em inquérito de delegacia de combate às drogas. Eliana Souza, diretora da Redes de Desenvolvimento da Maré, trabalha desde 2012 com os moradores do complexo, esclarecendo seus direitos e deveres. Naquele ano, em ação conjunta com o Observatório de Favelas e a Anistia Internacional, foi lançada a campanha “Somos da Maré, temos direitos”.
Foram distribuídos cerca de 50 mil folhetos com orientações sobre como agir em caso de abordagem policial. Também foram distribuídos adesivos para colar na porta das casas, com os dizeres: “Conhecemos nossos direitos! Não entre nesta casa sem respeitar a legalidade da ação”. Atualmente, três equipes da Redes estão batendo de porta em porta para renovar a entrega desse material. Jornalistas e fotógrafos profissionais vinculados às instituições parceiras da Redes também circulam no complexo, para documentar as operações da polícia e do Exército desde o início da ocupação militar.
“Não assistiremos de forma passiva à ação das forças de segurança”, diz Eliana. “Elas devem representar a chegada efetiva de uma perspectiva de presença republicana do Estado, e não funcionar como um ‘exército de ocupação’.”
Silvia Noronha, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), considera que as UPPs não se baseiam em princípios democráticos nem promovem a autonomia da população das áreas populares. “A democracia envolve a possibilidade de os cidadãos participarem da decisão das políticas públicas. Nas UPPs, há uma série de fóruns para os quais a população é convocada, mas para que os moradores sejam noti?cados sobre remoções e outras decisões que já foram tomadas.”