Projeto audiovisual registra e disponibiliza gratuitamente rico acervo musical de povos indígenas amazonenses que reúne dos cantos tradicionais ao hip-hop
Por Sofia Moutinho, em Ciência Hoje On-line
Tradição e cultura contemporânea convivem nos sons dos grupos musicais de raiz indígena na Amazônia. De um lado, instrumentos típicos, como a flauta jupurutu e o pau-de-chuva, belissimamente combinados com cantos coletivos chorosos – pura tradição. De outro, guitarras distorcidas, sanfonas e teclados com canções em português e línguas indígenas embaladas até pelo estrangeiro ritmo do hip-hop americano. Toda essa variedade musical pode ser ouvida e vista na página do projeto Música das Cachoeiras.
Com um acervo aberto de 4 horas de músicas e 10 vídeos, o site é fruto de uma viagem que refez os passos da expedição do etnógrafo alemão Koch-Grünberg, que há mais de 100 anos, entre 1903 e 1913, fez o primeiro registro audiovisual da vida cotidiana e das manifestações artísticas e culturais dos povos indígenas da Amazônia Ocidental.
Entre março e abril de 2013, um grupo de cinco pessoas, entre produtores musicais e cinegrafistas, coordenados pelo filósofo Agenor Vasconcelos, da Universidade Federal da Amazônia (Ufam), e financiados por um edital da Natura, cruzou a Amazônia – do Alto Rio Negro, nas fronteiras de Brasil, Colômbia e Venezuela, até o Monte Roraima. Com um estúdio móvel de gravação, a equipe registrou a produção musical indígena em aldeias e pequenos povoados ribeirinhos.
“Não foi um simples registro etnográfico, tivemos a presença de profissionais de audiovisual com uma grande preocupação técnica”, conta o coordenador do projeto, que desde pequeno teve contato com a cultura indígena e se divide entre a vida acadêmica e de músico da banda Alaíde Negão – formação clássica de baixo, guitarra e bateria com influência da música folclórica.
A ideia do projeto surgiu depois que Vasconcelos concluiu sua dissertação de mestrado sobre as manifestações culturais indígenas registradas por Koch-Grünberg no início do século 20. “A música está sempre presente na cultura indígena, é com a música que é passado o mito, que são ensinadas as estações do ano, que são celebrados os ritos”, pontua.
Ao repetir a viagem do etnógrafo alemão, a equipe do projeto se deparou com um cenário musical eclético. Foram gravadas as músicas e danças tradicionais dos povos Aruak, Baníwa, Canaunim e Taurepang.
Em São Gabriel da Cachoeira (AM), eles conheceram a banda Marupiara do gaitista Ademar Garrido, neto de Germano Garrido y Otero, anfitrião de Koch-Grünberg na viagem original. Formada por descendentes da etnia baré, a banda aposta na mistura da música popular, com o forró e a música indígena nheegatu. No Monte Roraima, gravaram o som do hip-hop feito pelos índios Taurepang e, na Guiana Inglesa, o reggae dos nativos.
Já em Roraima, tiveram um encontro com o poeta e cantor Eliakin Rufino, que diz usar como inspiração para as letras de suas canções as teses de ciências sociais sobre a cultura indígena.
Assista à banda Marupiara
A mistura de gêneros e influências não preocupa. Para Vasconcelos, o sincretismo pode ser a chave para manter a tradição viva. “Os índios de hoje não são mais os índios de Cabral, não sabemos se essa apropriação já ocorria na época do Koch-Grünberg – poderia até ser que ocorresse e não tenha havido o registro”, comenta. “De qualquer forma, acredito que seja por meio dessa fusão que a música indígena se mantém até hoje, porque, de outra maneira, a tradição pereceria na memória dos mais velhos e não seria passada adiante para a juventude.”
Todas as gravações feitas para o projeto Música das Cachoeiras estão disponíveis para ouvir e baixar gratuitamente no Soundcloud e os vídeos podem ser assistidos no canal do projeto no Youtube. Um livro-CD também está à venda. Terminado o financiamento pelo edital da Natura, Vasconcelos pretende agora continuar a iniciativa e está aberto a novas parcerias.
“Não somos o primeiro projeto a gravar as músicas indígenas da Amazônia, mas talvez sejamos um dos maiores acervos sonoros já feitos para a região e, com certeza, o de maior visibilidade e acessibilidade, graças à divulgação nos meios digitais”, destaca o músico.