Não foi por acaso que um feixe de varas de madeira, atado firmemente por fios de barbante, esteve a todo momento na mesa do auditório da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), durante o Colóquio Internacional “Território, Interculturalidade e Bem-Viver: as lutas dos povos indígenas no Brasil”, ocorrido na última terça-feira (24).
Maurício Hashizume, Especial para ALICE News
Um dos símbolos da árdua luta dos povos de Roraima na luta pela garantia de seus direitos, o feixe de varas – que, unidas, não podem ser facilmente “quebradas” como se estivessem soltas e separadas – serviu também para ilustrar o que se viu no evento de cunho inédito, promovido no âmbito do Projeto ALICE, do Centro de Estudos Sociais (CES), que contou com a presença em Portugal de uma delegação de sete lideranças de diferentes regiões e etnias, tendo à frente a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).
No painel de abertura, Sonia Bone Guajajara, coordenadora executiva da APIB e integrante do povo Guajajara (Maranhão), realçou que a existência dos povos indígenas continua sendo negada, dentro e fora do Brasil, apesar da existência de 305 povos e 274 distintas línguas faladas entre os indígenas do país. Estima-se ainda que haja cerca de outros 90 povos que escolheram viver em isolamento dos não-indígenas, seguindo os seus próprios modos de vida. “Viemos aqui e contamos com a solidariedade [de quem se dispõe a apoiar os povos indígenas]. Acreditamos em uma adesão cada vez maior ao Bem-Viver, aos modos de vida que respeitam a natureza e ao próximo”.
Para a liderança da APIB, a realização do colóquio na Universidade de Coimbra reforça a esperança de encontrar mais pessoas, grupos e instituições que possam se juntar ao movimento indígena brasileiro nas lutas por justiça e igualdade diante de uma “ditadura capitalista” em escala global que “mata e oprime”. Esse duro enfrentamento requer, segundo ela, que as vozes dos povos indígenas sejam fortalecidas “para que o mundo nos escute e nos conheça”. Nesse sentido, é preciso que “a Europa como um todo” reconheça “os massacres que o colonialismo impôs aos povos indígenas” e também “as consequências dessas violências e violações”, ou seja, “olhar o passado, viver o presente e construir o futuro”.
Diretor do CES e coordenador do Projeto ALICE, o professor Boaventura de Sousa Santos enfatizou o momento difícil vivido atualmente pelos povos indígenas, uma vez que “forças muito poderosas, compostas pelas elites políticas e econômicas tanto nacionais como transnacionais, têm transformado tudo em obstáculo ao dito ´desenvolvimento´”. De acordo com o sociólogo português, os indígenas têm enfrentado a arrogância do modelo capitalista e colonialista em sua versão neoextrativista (que se diferencia por suas dimensões), representado por agentes influentes como os do agronegócio.
Para “uma sociedade mais justa e igualitária”, Boaventura recomendou que os protagonistas das mobilizações em curso, nos mais variados campos de atuação, se conheçam melhor e se ajudem uns aos outros, em consonância com o símbolo adotado do feixe de varas. “Esse encontro não tem como foco a discussão acadêmica, mas a busca e definição de encaminhamentos concretos no sentido de apoiar as lutas dos povos indígenas no Brasil”.
Ao final do evento, foi lido e divulgado um manifesto em defesa dos diretos indígenas (Carta de Coimbra). Foi firmado também um convênio entre o Projeto ALICE/CES e a APIB para o estreitamento de relações entre as entidades através de intercâmbios, estudos e atividades conjuntas. O CES e a Comissão Pró-Criação da Escola de Participação Popular e Saúde, representada pelo professor da Universidade de Brasília (UnB), Márcio Florentino Pereira, assinaram ainda um memorando para formalizarem a intenção de, em parceria com a Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e UnB, constituírem a escola de Participação Popular e Saúde.
O “evento histórico” que priorizou o protagonismo indígena levou em conta as diferentes temporalidades envolvidas, conforme pontua Luciane Lucas dos Santos, investigadora do CES responsável pela organização do colóquio. “Tudo foi construído em consenso com representantes da APIB. Foi um aprendizado grande”. Márcio Florentino, que também exerce as funções de secretário executivo da Conselho Nacional de Saude (CNS), destacou a importância do evento: seja para a construção de “rebeldias transformadoras” como para o debate sobre o papel do Estado e o “fortalecimento da participação social” em linha com a consolidação da saúde como direito (diferenciado e vinculado ao território, no caso dos indígenas) – e não como mercadoria.
Terra
A luta pela terra esteve no centro da primeira mesa de debates do colóquio. Liderança histórica da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol e ex-coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Jacir de Souza, do povo Macuxi (Roraima), recordou os impactos avassaladores e perturbadores da “invasão” dos brancos. Diante das mortes, violências e ameaças constantes associadas à “destruição do modo de vida”, os povos indígenas da região se organizaram para angariar parcerias e reivindicar seus direitos, dentro e fora do país. O próprio seu Jacir se dedicou por mais de 35 anos à luta em mobilizações e articulações políticas pela garantia do território. E mesmo com algumas conquistas importantes, como a própria demarcação em terra contínua da Raposa Serra do Sol – referendada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), após intenso debate nacional e internacional -, persistem ainda, segundo ele, muitos problemas.
“Ainda há muita terra para homologar”, comentou Jacir, ao atribuir à atual gestão do governo federal o que chamou de “fracasso” da questão indígena. “Além disso”, completou, “as terras já demarcadas estão sofrendo invasões” e graves problemas nas áreas da saúde e da educação continuam afetando os povos indígenas do país. Seu Jacir lamenta que o discurso de “muita terra para pouco índio” ainda seja repetido, como se a garantia de direitos fosse uma espécie de “desperdício”, e que empreendimentos e interesses econômicos sigam assediando – como já havia frisado a pesquisadora Luciane Lucas, do CES, na abertura do mesmo painel – as comunidades indígenas e suas lideranças. “Para nós, a terra é tudo. É sagrada. Por isso, continuamos procurando mais pessoas para reforçar a importância da demarcação. Queremos saber quem está de acordo ou não; quem está disposto ou não a fazer parte do ´feixe de varas´”.
O jovem advogado Luis Henrique Eloy Amado, do Povo Terena, que atua como assessor jurídico do Conselho do Povo Terena e do Conselho Aty Guasu Guarani Kaiowá (Mato Grosso do Sul), também partilhou da sua experiência da luta pela terra. A partir de seu cotidiano tomado por processos de demarcações e de criminalização de lideranças indígenas, Luis confirma a ideia de que o modelo neoextrativista concebe os territórios tradicionais como barreiras e identifica três formas de ataques em curso aos direitos indígenas.
A primeira das formas se dá por meio da paralisação dos processos de demarcação, muitos deles suspensos, segundo o advogado indígena, por “decisão política” do Poder Executivo federal, estrutura na qual se inclui a Fundação Nacional do Índio (Funai), vinculada ao Ministério da Justiça (MJ). A segunda se dá pelas intervenções quanto a terras já demarcadas, haja vista a edição da controversa Portaria 303 da Advocacia-Geral da União (AGU), que visa estender as 19 condicionantes do julgamento da Raposa Serra do Sol para outras áreas, na tentativa de “flexibilizar” os direitos de posse. E a terceira forma consiste no retrocesso e revisão direta dos direitos garantidos pela Constituição, que se materializa em propostas como a PEC 215, patrocinada pela bancada ruralista, que prevê a transferência da prerrogativa das demarcações do governo federal para o Congresso Nacional. “Se a PEC 215 for aprovada, nunca mais haverá demarcações de terra no Brasil”.
A fórmula das “Mesas de Diálogo” também foi criticada por Luis, que preferiu nomeá-las como “Mesas de Enrolação”. No caso concreto da Terra Indígena Buriti, por exemplo, quatro ministros chegaram a participar do grupo de negociação com representantes indígenas e grandes proprietários rurais, mas depois de várias extensões de prazo, nada ainda foi resolvido. O problema da judicialização também veio à tona na intervenção do advogado no colóquio, que sublinhou o contraste entre o pronto atendimento dos interesses latifundiários e a morosidade perante as ações apresentadas pelas comunidades indígenas. “Nossos territórios precisam ser garantidos, em cumprimento à Constituição. O governo brasileiro, que está devendo com relação aos povos indígenas, tem que assumir essa responsabilidade de uma vez por todas”.
Pressão
“Sinto uma dor muito intensa pelo que vem ocorrendo atualmente”, desabafou Paulino Montejo, do povo Maya, da Guatemala, que assessora a APIB e é militante do movimento indígena no Brasil há mais de 30 anos. Ele avalia como “absurdo” o processo de “desconstrução das garantias constitucionais” que constam na Constituição de 1988. Essa luta ultrajante de caráter defensivo, apenas para manter o que se conquistou no papel e não para implementar efetivamente o que está previsto, decorre, na visão dele, de uma grande operação colocada em prática pelos setores ruralistas após alguns passos dados pelo movimento indígena com vistas ao robustecimento de seus direitos.
Entre as medidas que acenderam o alerta dos grandes proprietários de terra, Paulino cita a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), promulgada no Brasil em 2004, e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007, bem como a confirmação pelo poder público da demarcação de alguns territórios importantes, como a própria TI Raposa Serra do Sol – que foi garantida como área contínua em julgamento no STF de 2009, mas só teve o processo efetivamente concluído com a análise das 19 condicionantes em 2013. Centralizados na Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), os grandes produtores têm se desdobrado para fazer avançar a fronteira de exploração agropecuária, extrativa (mineral, madeireira etc.) e energética. Foram feitos, emenda o assessor, muitos investimentos tanto em recursos materiais como humanos (contratação de especialistas em direito, antropologia etc.) para forçar a invasão, exploração e mercantilização de territórios indígenas.
Esse esforço de “inversão de direitos” (fazendo com que “instrumentos de regulamentação” de relevância inferior prejudiquem normas consagradas pela Constituição) não se limita ao campo jurídico, continua Paulino. No campo, os fazendeiros têm literalmente se armado e a criminalização dos movimentos vem se agudizando. O movimento indígena chegou inclusive a protocolar queixa-crime contra os deputados federais Luiz Carlos Heinze (PP/RS) e Alceu Moreira (PMDB/RS) por declarações racistas e homofóbicas contra povos indígenas, quilombolas e movimento LGBTT para que os ministros do STF apurem os crimes de incitação à violência e ao ódio dirigida às coletividades citadas. “Há uma grande campanha midiática de disputa daquilo que chamamos de cosmovisões, das formas de ver o mundo”, salientou. “Na condição de povos tão diversos, não devemos abrir mão de um projeto distinto, com base no Bem-Viver. Seguiremos articulando e coordenando ações em defesa de alternativas. Antes do direito à propriedade vem o direito à vida”.
Nesta fase em pleno curso de luta para manter os direitos conquistados, Sonia Guajajara, coordenadora da APIB, realça que os povos indígenas acabam sendo apresentados como “culpados” por lutar pela sua terra. A ideia de fundo dessa “condenação” é a de que “índio não precisa de terra, mas de cesta básica”. Junto a essa imagem vendida e veiculada pelo poder midiático, utiliza-se ainda o argumento de que 13% do território nacional já são terras indígenas, deixando de lado os contextos difíceis enfrentados por cada povo que reivindica seu território para viver e ignorando completamente as invasões e agressões constantes que tem como alvos os indígenas. Construções ideológicas como essas servem de alicerce, conforme descreve Sonia, para ímpetos políticos e econômicos que tentam tornar esse massacre legalizado. “Tramitam no Congresso Nacional mais de 40 projetos destinados a suprimir ou negar direitos indígenas”.
Este ano de 2014, prosseguiu Sonia, tem sido pródigo em episódios muito tristes de criminalização dos povos indígenas, como nos casos do povo Tenharim, no Sul do Amazonas; dos Tupinambá, na Bahia; e dos Kaingang, no Rio Grande do Sul. “A situação atual não é muito diferente do período da ditadura militar do passado. Há repressão, violência, expulsões, prisões. Mudou o regime, mas não mudou a postura. Por isso, o movimento indígena tem organizado muitas mobilizações em Brasília e em diversas outras regiões do país”, compara a liderança do povo Guajajara. “As ameaças ainda não foram afastadas completamente, mas temos conseguido travar algumas medidas, como a própria Portaria 303 [da AGU]. Isso só foi possível com muita pressão”, contou a coordenadora da APIB. “Se não fosse a nossa força e união, muitas dessas medidas que violam direitos adquiridos já estariam valendo. Mas a força dos povos indígenas pode ir muito mais além”.