Lúcio Flávio Pinto* – Amazônia Real
Comissão Especial da Câmara Federal aprovou um projeto de lei que impõe a transposição das barragens que forem construídas nos rios Tapajós e Xingu, no Pará. A iniciativa foi recebida com rojões verbais. Pode ser útil para reforçar a exigência, que tem sido desrespeitada. O exemplo mais grave é o da hidrelétrica de Tucuruí, que bloqueou o rio Tocantins e o deixou sem eclusas por quase três décadas.
No entanto, o Código de Águas, que entrou em vigor em há 80 anos, desde 1934, já estabelecia que rios navegáveis precisam ter respeitada sua navegabilidade por aquele que constrói represa no seu leito. Em 1984, meio século depois do código, o coordenador da presidência da Eletronorte, Armando Ribeiro, disse, no plenário da Assembleia Legislativa do Pará, que a empresa – uma estatal federal – não iria cumprir a lei. E saiu incólume daquela casa de leis.
O problema é que a Eletronorte, preocupada com a obra daquela que viria a ser a quarta maior hidrelétrica do mundo, não queria se preocupar e nem desviar recursos para o sistema de transposição. O desafio de engenharia era enorme e o orçamento cresceria de forma acelerada durante a construção. A Eletronorte, criada especialmente para realizar esse monumental projeto, em 1973, só pensava em energia. O resto era detalhe ou não interessava, ainda que retoricamente tentasse dizer o contrário.
Isso se tornou evidente. A Sudam, criada sete anos antes para substituir a SPVEA, primeiro órgão de planejamento regional do Brasil, que entrou em operação 20 anos antes (em 1953, ano da grande cheia do rio Amazonas), tentou assumir as outras dimensões inerentes a uma obra desse porte, executada no 25º maior rio do planeta.
A Sudam promoveu o Prodiat, Programa Integrado da Bacia do Araguaia-Tocantins, e o Plano de Desenvolvimento do Tocantins. Mas ambos os projetos ficaram nas prateleiras, para inglês ler. A tarefa de construir as eclusas, que seriam as maiores do mundo por causa da altura da represa a transpor, de mais de 72 metros, ficou com a Portobrás, empresa federal. Mas a Portobrás naufragou e as eclusas, ainda sem sua devida serventia, acabaram no encargo das verbas do Ministério dos Transportes.
Enquanto o parlamento caminha para uma lei que é redundante, já que o Código de Águas continua em vigor, o governo federal retomou essa posição: no Tapajós, no Xingu ou onde mais surjam hidrelétricas (preferencialmente de grande porte), o governo é que assumirá o encargo, não as empresas que barram a navegação nos rios. Um retrocesso, pois. Edulcorado, mas retrocesso. E ainda batem palmas para essa marcha-ré na história.
*Jornalista, sociólogo, formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém/PA desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras.