Maldito Estado! E o meu direito de torturar crianças, como fica agora?, por Leonardo Sakamoto

por Leonardo Sakamoto

Sei que muitos pais que amam seus filhos e são zelosos por sua educação acreditam que uma palmada em determinadas circunstâncias extremas pode ter um efeito simbólico poderoso. Mas, ao mesmo tempo, fazendo reportagens sobre a infância, não raro ouvi um complemento explicativo para isso que se repetia como um mantra: “apanhei quando pequeno e isso me mostrou limites, ajudou a formar o caráter que tenho agora”.

A ideia é muito semelhante ao já manjadíssimo “trabalhei quando criança e isso formou meu caráter, portanto sou a favor de criança ter que trabalhar para não ficar fazendo arruaça na rua”. Frase amada por quem reproduz para seus filhos a experiência que ele próprio viveu sem passar antes por uma reflexão.

Será que eles não imaginam que fariam um bem enorme se resolvessem dar um basta a certas práticas e não ensiná-las à geração seguinte?

Pois, para muita gente se “o trabalho liberta”, a “palmada educa”.

Já tratei deste tema aqui, mas vale resgatar o debate por conta da aprovação da Lei da Palmada, agora Lei Bernardo Boldrini (em homenagem ao menino assassinado no Rio Grande do Sul), pela Câmara dos Deputados, nesta quarta (21). O texto segue agora para o Senado.

Não precisamos permanecer com velhas práticas simplesmente porque foram adotadas em nossa infância ou na infância de nossos pais.

Quando tratei deste assunto aqui, contei a história de uma amiga que me confessou ter dado umas palmadas leves em seu filho, pois havia esgotado o repertório para deixar claro que ele estava extrapolando. Era a primeira vez. Para sua tristeza, tempo depois foi chamada na escolinha porque o filho, que normalmente é calmo, começou a bater em seus colegas.

Isso significa que todo mundo que levou palmadas vai virar um serial killer de nível 21 na escala de maldade? Ou alguém tipo Frank Underwood? Claro que não.

Porém, dependendo da circunstância e do ambiente em que a criança está inserida, castigos físicos geram consequências sim para a sua formação, que podem ser inesperadas. No mínimo, fica a provocação: qual o exemplo de respeito ao diálogo, à tolerância, ao entendimento e a soluções não-violentas estamos dando com o uso desses métodos?

A mão que bate em nossos filhos é nossa ou ela carrega a memória de nossos pais e dos pais deles?

O projeto da Lei da Palmada altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e estabelece que “a criança e o adolescente têm o direito de serem educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar, tratar, educar ou proteger”.

Para os fins da lei, caracteriza-se “castigo físico” como “ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso da força física que resulte em sofrimento ou lesão à criança ou adolescente”. Hoje, o ECA ainda não especifica o que são maus tratos, o que cria uma larga possibilidade de análise subjetiva por conta do poder público encarregado de zelar pela qualidade de vida dos pequenos.

Além das penas já previstas no Código Penal, os responsáveis pelas crianças e adolescentes podem ser encaminhados para atendimento psicossociais e sofrer advertência. Os (pouco estruturados) Conselhos Tutelares serão responsável por acompanhar os casos.

A sistemática ausência do Estado e a mais sistemática ação de determinados grupos ditos liberais de reduzir a importância da ação estatal ajudou a espalhar cada vez mais aberrações do tipo “o Estado não deve regular nossa vida”. E não deve mesmo. Mas quando leis podem ajudar a impedir a violência contra crianças, criando regras para balizar mais liberdade e menos dor, vocês não acham que isso é válido?

Ou toda tortura doméstica, de crianças, jovens e mulheres, é justificável?

Para muita gente, a discussão deveria sair do âmbito das políticas públicas (que existem exatamente para dar apoio a grupos fragilizados) e passar unicamente para o espaço privado. Pois o Estado tem que se preocupar com coisas mais importantes, como auxiliar quem tem dinheiro a ganhar mais dinheiro.

Por esse pensamento, leis que concederam direitos, mexendo na vida privada e que dependeram da ação do Estado, mesmo indo contra grupos numericamente relevantes ou economicamente poderosos, nunca teriam sido aprovadas (e os meu direito de ter escravos, ninguém protege?). Por que os mesmos que apoiam a palmada não bradam pelo direito de bater em idosos, se estes chegarem à senilidade, como forma de “educar”? Talvez porque sabem que crianças eles já foram. Mas, idosos, ainda serão.

O melhor de tudo isso é que eram autointitulados “homens de Deus” que freavam o projeto na Câmara dos Deputados… #medo

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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