As disputas por recursos hídricos no Brasil atingiram um novo recorde histórico em 2013, conforme prévia do relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT). O Conflitos no Campo Brasil 2013, publicação da CPT, será lançado dia 28 de abril, a partir das 14 horas, na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília
Rafael Barifouse e João Fellet, da BBC Brasil (Imagens BBC)
As disputas por recursos hídricos no Brasil atingiram um novo recorde histórico em 2013, segundo dados preliminares do levantamento anual feito pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), obtidos com exclusividade pela BBC Brasil.
Foram identificados 93 conflitos por água em 19 Estados, o maior desde 2002, quando eles passaram a ser monitorados pelo órgão, que é ligado à Igreja Católica. Isso representa um conflito hídrico a cada quatro dias.
No ano passado, houve um aumento de 17% no número de disputas em relação a 2012. Foi o segundo ano seguido de intensificação dos conflitos. Em 2012, houve 79 conflitos, um aumento de 16% em relação a 2011.
Apropriação
No ano passado, a Bahia foi o Estado que mais teve disputas deste tipo, num total de 21. Em segundo lugar, ficou o Rio de Janeiro, com sete disputas.
O Nordeste foi a região mais conflitante, com 37 casos registrados, seguido pelo Norte do país, com 27 casos.
De acordo com a CPT, muitas destas disputas ocorrem para evitar a apropriação de recursos hídricos por empresas, como mineradoras e fazendas, ou para impedir a construção de barragens ou açudes.
“Além da investida na Amazônia, com a construção de duas grandes hidrelétricas, de Belo Monte e Tapajós, o cerrado e a Mata Atlântica também têm sofrido com mais conflitos por causa de disputas de territórios entre comunidades pobres e grandes empresas de mineração e agricultores”, afirma Isolete Wichinieski, coordenadora nacional do CPT.
Preservação
Muitas das disputas também ocorrem por ações de resistência, em geral coletivas, para garantir a preservação da fonte de água.
“Hoje existe uma maior preocupação em preservar o meio ambiente, o que também gera mais embates”, afirma Wichinieski.
O relatório completo sobre conflitos hídricos será divulgado pelo CPT no próximo mês.
O futuro da água brasileira será decidido nos tribunais?
O Brasil detém pouco mais de um décimo das reservas de água potável do mundo, no entanto, o país já registra um conflito por água a cada quatro dias, segundo o mais recente relatório da Comissão Pastoral da Terra, órgão ligado à Igreja Católica, obtido com exclusividade pela BBC Brasil. Em 2013, foram registradas 93 disputas locais em 19 Estados, 17% a mais do que no ano anterior. Mas esses conflitos não estão se tornando apenas mais frequentes. Também vêm assumindo dimensões inéditas
Há pouco mais de uma semana, os governos de São Paulo e Rio de Janeiro vivem um embate. A razão é o projeto de São Paulo de captar água do Rio Paraíba do Sul e levá-la ao sistema Cantareira, grupo de reservatórios que abastece 15 milhões de pessoas na região metropolitana de São Paulo e no interior do Estado. O problema é que este rio já abastece outras 15 milhões de pessoas no Grande Rio e no interior paulista. O governo fluminense é contra a proposta. Desde então, Rio e São Paulo trocam farpas e ameaças de processo publicamente.
Não se tinha notícia – até agora – de um conflito desta proporção, envolvendo os dois Estados mais ricos da federação e que coloca em jogo o abastecimento de 15% da população do país. “É o conflito mais sério que já tivemos”, diz Sandra Kishi, procuradora regional da República e coordenadora do grupo de trabalho de águas do Ministério Público Federal (MPF).
Prejuízos
O Rio alega que será prejudicado porque hoje não tem outra fonte de abastecimento. São Paulo retruca que a ligação não trará prejuízos ao Rio, porque só captaria 5% do volume fornecido atualmente ao Estado fluminense e que a medida será vantajosa para ambos os Estados porque, quando chover demais no reservatório que atende São Paulo, será possível guardar o excesso de água no reservatório que atende o Rio (e vice-versa), criando um sistema de estoque para quando chover pouco.
São Paulo ainda alerta que o Rio não pode interferir na questão porque a ligação estaria dentro dos limites paulistas. “Providenciaremos os documentos necessários para a permissão”, diz o secretário estadual de saneamento e recursos hídricos de São Paulo, Edson Giriboni, à BBC Brasil. “Sempre podemos recorrer à Justiça se necessário. Se vamos ou não fazer isso, depende deles”.
Se a permissão for concedida a São Paulo, ela poderá ser questionada no Supremo Tribunal Federal, instância onde são resolvidas as contendas entre Estados. “Não se pode dizer que vai fazer o quiser porque o rio é fluminense ou paulista. O curso da água não respeita fronteiras”, afirma Kishi, do MPF. “Essa decisão caberá ao comitê que administra a bacia do Paraíba do Sul.”
Haver disputas por água no Brasil é uma situação que, a princípio, parece contraditória. O país detém 12% da água potável do mundo e sempre foi apontado como uma das regiões do planeta onde haverá menos riscos de falta de água neste século.
Mas a estiagem entre dezembro e fevereiro passados, a pior em oito décadas, mostrou que essa abundância é uma ilusão. Há muita água, mas ela está mal distribuída. Cerca de 80% fica na região amazônica, onde vive 5% da população. Os outros 95% dos brasileiros precisam dividir os 20% que restam.
Esse problema se agrava porque grande parte das fontes de água nas regiões mais populosas do país está poluída demais. Um levantamento da ONG SOS Mata Atlântica mostra que 40% de 96 rios, córregos ou lagos das regiões Sul e Sudeste apresentam qualidade ruim ou péssima. Quanto mais próximo dos centros urbanos, pior sua situação.
“A ideia de abundância nos mimou”, diz Rômulo Sampaio, do centro de meio ambiente da escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) no Rio. “Os políticos não investiram o suficiente porque pensaram que não seria necessário e ainda maltratamos os recursos que temos.”
Conflito de interesses
Isso obriga cidades a ir buscar água cada vez mais longe. Em algum momento, seus interesses entram em conflito. É o que ocorre entre Rio e São Paulo e entre outros Estados brasileiros (veja abaixo).
Rio Grande do Norte X Paraíba
Na década passada, o Rio Grande do Norte se queixou do volume de água que a Paraíba estava extraindo do rio Piranhas Açu, que atravessa os dois Estados e abastece 147 municípios.
Após várias reuniões coordenadas pela Agência Nacional de Águas (ANA), definiu-se uma vazão mínima que a Paraíba deve liberar ao Estado vizinho.
Goiás X Minas Gerais
Na bacia do rio São Marcos, agricultores de Goiás e Minas Gerais disputam licenças para extrair água para suas terras.
O conflito envolve ainda a hidrelétrica de Batalha, que diz que o uso intensivo de água para irrigação tem prejudicado a operação da usina. A ANA negocia com os envolvidos uma solução.
Com a estiagem, o nível do sistema Cantareira chegou a 14%, o menor nível desde sua criação. A fragilidade do sistema que abastece metade da população da Grande São Paulo ficou evidente e fez o governo paulista querer por em prática o projeto do Paraíba do Sul, que estava em estudo havia seis anos.
“Solucionar a questão hídrica é o maior desafio do Direito ambiental hoje”, afirma Sampaio. “Temos boas regras para lidar com isso, criadas nos anos 1990. Agora elas serão testadas.”
De quem é a água?
A Política Nacional de Recursos Hídricos foi criada em 1997 e, desde então, é o principal norte da gestão da água no país. Nela, foram estabelecidos princípios importantes, como a prioridade do abastecimento humano e de animais e o incentivo ao uso eficiente da água. Mas a lei não diz quem tem mais direitos sobre determinada fonte hídrica.
O advogado Paulo Affonso Leme Machado, ex-consultor da ONU e um dos mais respeitados especialistas em Direito ambiental no país, defende uma interpretação conjunta de três artigos da política que daria prioridade ao uso das águas de uma bacia aos habitantes dos municípios que existem nela.
“Isso não está expresso na lei, mas pode ser inferida porque ela estabelece a bacia hidrográfica como unidade mais importante do sistema hídrico, cria o controle do uso e afirma que tudo que é arrecadado com suas águas deve ser reinvestido, em primeiro lugar, na própria bacia”, diz Machado.
A partir dessa interpretação, defendida também por outros juristas consultados pela BBC Brasil, São Paulo não teria o direito de usar recursos de uma bacia fora de seus limites geográficos em prejuízo de outras cidades que estão nesta bacia. “Fazer isso é mais que injustiça, é anarquia”, diz Machado.
Teste nos tribunais
Esta interpretação ainda não foi testada nos tribunais, o que pode ocorrer em breve não só por causa da disputa entre Rio e São Paulo, mas também por outro conflito envolvendo a Grande São Paulo.
A permissão de uso do Cantareira expirará em agosto e está sendo rediscutida. Além da região metropolitana da capital paulista, este sistema abastece 76 cidades no interior do Estado, que pedem mais água além do limite atual para a região, de 3 mil litros por segundo.
No entanto, o Cantareira já opera no limite estabelecido por regras ambientais. Para o interior ter mais água, seria preciso reduzir o volume de 24,8 mil litros por segundo fornecido à Grande São Paulo, que por sua vez também pleiteia um limite maior. Não será possível atender às duas regiões sem causar danos ao sistema.
As cidades do interior alegam que, na nova permissão de uso do Cantareira, é preciso haver uma distribuição mais equilibrada da água, princípio previsto em convenções internacionais sobre o tema. As cidades do interior afirmam que, se isso não for feito, sua economia não poderá mais crescer, porque novas indústrias que dependem de água não conseguirão licenças ambientais.
Estas cidades ainda questionam por que não foi cumprida a condição prevista na permissão de uso do Cantareira concedida há dez anos de fazer investimentos para reduzir a dependência da Grande São Paulo em relação a este sistema. “Pedimos explicações ao governo estadual para resolver isso na esfera administrativa, mas iremos à Justiça se as respostas não forem satisfatórias”, diz a promotora Alexandra Faccioli, do Ministério Público Estadual.
Novos conflitos à vista
O debate sobre o uso da água é mais relevante diante da previsão de que os conflitos hídricos serão mais comuns daqui em diante. Segundo o Pacific Institute (IP), um dos principais institutos de pesquisa sobre o tema do mundo, o número de disputas hídricas violentas no mundo quadruplicou na última década e o risco de novos conflitos só crescerá com a maior competição pelo recurso, o atual gerenciamento ruim das fontes hídricas e os impactos das mudanças climáticas
Antônio Carlos Zuffo, especialista em planejamento hídrico da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ainda alerta que a oscilação histórica do clima acentuará a falta d’água. O pesquisador explica que entre 1970 e 2012 houve chuvas até 30% acima da média histórica. “Agora estamos entrando num período de algumas décadas de chuvas abaixo da média”, afirma Zuffo. “A disputa por água se intensificará.”
Os órgãos federais se dizem preocupados com esse acirramento dos conflitos e trabalham para mediá-los antes que se agravem a ponto de a única solução ser a via judicial. No caso específico entre Rio e São Paulo, isso significa fazer com que os dois Estados cheguem a um entendimento baseado em estudos sobre o aproveitamento das águas do Paraíba do Sul.
“Nosso papel é estimular um debate técnico e evitar a politização dessa questão, para que esse tipo de problema não caia na Justiça”, afirma Rodrigo Flecha, superintendente de regulação da Agência Nacional de Águas (ANA).
Para o secretário nacional de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente, Ney Maranhão, os dois Estados precisam chegar a um consenso quanto a uma gestão compartilhada destes recursos hídricos.
“Rio e São Paulo precisam sentar à mesa e elaborar um sistema que seja confortável para os dois lados”, afirma Maranhão. “Uma discussão dessa natureza não pode ser discuta emocionalmente.”
Órgãos federais tentam evitar que disputas cheguem à Justiça
Enquanto São Paulo e Rio de Janeiro elevam o tom na maior disputa por água de que se tem notícia no país, órgãos federais tentam apaziguar os ânimos e evitar que o conflito chegue aos tribunais
O temor é que uma radicalização do embate encoraja outros Estados a também recorrer à Justiça para resolver disputas hídricas com vizinhos.
“Nosso papel é estimular um debate técnico e evitar a politização”, diz à BBC Brasil Rodrigo Flecha, superintendente de regulação da Agência Nacional de Águas (ANA).
A ANA tem, entre suas principais funções, mediar conflitos que envolvam rios da União, que atravessam mais de um Estado. É o caso do Paraíba do Sul, alvo do desentendimento entre Rio e São Paulo.
Outro órgão que acompanha a disputa com atenção é o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), instância máxima na gestão das águas do país.
O secretário-executivo do órgão, Ney Maranhão, diz que Rio e São Paulo precisam chegar a um consenso quanto à gestão de suas águas.
“Os Estados precisam sentar à mesa e elaborar um sistema que seja confortável para os dois lados”, afirma Maranhão, que também é secretário de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente.
“Uma situação dessa natureza não pode ser discutida emocionalmente”.
Agricultura
Segundo Flecha, da ANA, a agência tem mecanismos para facilitar o entendimento entre Estados. Para evitar que um Estado seja afetado pelos planos hídricos de um vizinho, por exemplo, a agência pode estabelecer restrições a esses planos ou compensações ao Estado prejudicado.
A ANA já mediou outros desentendimentos entre Estados, entre os quais a disputa entre o Rio Grande do Norte e a Paraíba pelas águas da bacia do Piranhas Açu.
O rio, que nasce na Paraíba, abastece cerca de 1,5 milhão de pessoas em 147 municípios dos dois Estados.
O Rio Grande do Norte se queixava do volume de água que chegava ao Estado, e a ANA definiu uma vazão mínima a ser liberada pela Paraíba. Para isso, os paraibanos tiveram que passar a exercer maior controle sobre as licenças para a extração de água.
Tanto naquela região quanto em outras áreas do país, os desentendimentos quanto ao uso da água têm relação direta com a expansão da irrigação na agricultura.
Na bacia do rio São Marcos, maior área de agricultura irrigada do país, lavradores de Goiás e Minas Gerais disputam licenças para extrair água para suas terras.
O conflito envolve ainda a hidrelétrica de Batalha, gerida pela empresa Furnas. A companhia diz que o uso intensivo de água para irrigação tem prejudicado a operação da usina. A ANA negocia com os envolvidos uma solução.
Para Flecha, novas disputas poderão ocorrer à medida que a irrigação se expandir ainda mais pelo país. Ele diz que o Brasil hoje tem cerca de 5 milhões de hectares irrigados, mas que há potencial para irrigar outros 25 milhões.
“Imagina que tipo de conflito teremos no país se não nos anteciparmos e criarmos regras para usos múltiplos da água.”
Para o secretário nacional de recursos hídricos, Ney Maranhão, é preciso ter maior controle sobre as licenças para irrigação.
“Nas áreas com potencial para agricultura irrigável, temos de mapear a disponibilidade de água e estabelecer certos limites”, ele diz.
Maranhão afirma que que os órgãos públicos que gerenciam o uso da água devem se coordenar com agricultores para minimizar prejuízos em caso de secas.
“Ao se detectar que haverá menor oferta de água, é melhor que o agricultor plante menos, mas consiga irrigar e colher sua produção, do que perca boa parte do plantio por causa da falta de água.”
Reutilização
Maranhão defende ainda que agricultores usem métodos de irrigação que poupem água e que privilegiem plantas adequadas ao clima de sua região.
Ele cita o caso do Ceará, onde lavradores costumavam plantar arroz, cultura que exige bastante água. Com o tempo, porém, decidiram substituir as plantações por produtos mais adaptados à região, como côco, manga e goiaba.
“Não faz sentido gastar um monte de água para produzir algo que você pode comprar de fora pagando menos.”
Para o secretário, o Brasil deve ainda investir na reutilização da água, técnica que praticamente inexiste no país.
Na Califórnia, diz ele, já se testa o reaproveitamendo de água tratada de esgoto em indústrias ou para fins que não ponham a saúde humana em risco.
Outra ação prioritária, segundo Maranhão, é despoluir rios que cruzam grandes cidades.
“É inadmissível que uma cidade como São Paulo não possa usar a água do Tietê ou do Pinheiros porque estão poluídos e tenha que buscar água lá longe. Por muito tempo não protegemos nossos rios, mas agora precisamos recuperar esse passivo para o futuro.”
–
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.