Desde o final do ano passado, e mais intensamente nas últimas semanas, muito tem se discutido sobre os chamados “rolezinhos”, encontros promovidos por jovens das periferias em shopping centers de várias cidades. Seja na imprensa, nos ônibus, no intervalo da novela ou nas mesas de bar, todos têm algo a dizer sobre o fenômeno.
Na imprensa, a polêmica entre os comentaristas gira em torno do tema dos direitos, do racismo e da segregação. Teriam hordas de jovens o direito de utilizar o espaço do shopping para se encontrar e “zoar”? E, simetricamente, teriam os proprietários de shoppings o direito de impedi-los?
O fato de os rolezinhos serem protagonizados por jovens de periferia e, portanto, majoritariamente não brancos, acende também o tema do racismo: seriam os shoppings espaços de lazer e consumo exclusivos de brancos, onde estes “outros” não poderiam entrar?
Estas duas dimensões – dos direitos e do racismo – articulam-se no tema da segregação: em tese, os shoppings são espaços privados de uso público e, portanto, abertos para qualquer pessoa. Mas um administrador de shopping, em entrevista à imprensa justificando a liminar na Justiça que impedia a entrada de “rolezeiros”, afirmava que “o shopping não foi projetado para este uso”. Ou seja: estes estabelecimentos são abertos para certos tipos de público e certas formas de encontro e lazer. Não todas.
Que o produto shopping center já nasce como um projeto de segregação e celebração do consumo nós já sabemos de longa data. O que pareceu surpreender foi que a cultura dos participantes de rolezinhos – expressa em músicas, roupas e atitudes – seja justamente a celebração do consumo… Como entender, então, essa “invasão” e o incômodo que ela provoca?
Para além das intencionalidades ou da ideologia desses meninos e meninas, o que me chama a atenção nos rolezinhos é a ocupação em si, ou seja, a ocupação como ato. Desse ponto de vista, este fenômeno tem um forte elemento de continuidade com as jornadas de junho e mesmo com os movimentos Occupy em todo o mundo. Também se aproxima das ocupações urbanas de moradia, por exemplo.
Não importa tanto se esses jovens se reúnem por pura diversão ou para reivindicar qualquer coisa. O fato é que os rolezinhos que promovem são, concretamente, a ocupação de um espaço da cidade de forma inabitual. Tais eventos incomodam pelo deslocamento que geram, ao evidenciar algo “fora de seu lugar”, colocando em pauta, imediatamente, conflitos importantes de nossa política social e urbana.
Não é à toa que a denominação do movimento que se espalhou por diversas cidades do mundo é “Occupy”. Seja nas ruas, pontes, viadutos e praças, seja em imóveis vazios e subutilizados e, agora, em shoppings, ocupar não é necessariamente um meio para obter isto ou aquilo, mas um ato em si, que, para além de reivindicar, transforma direta e imediatamente o sentido de um lugar.
É isso que acontece quando o “pancadão” ocupa o shopping…
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*Urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada.