“O jornalismo investigativo leva muito tempo para ser produzido, ele não é lucrativo, ele nem sempre vende. No entanto, é extremamente necessário para a democracia”, afirma a diretora da Agência Pública de jornalismo investigativo
IHU On-Line/Ecodebate
Em tempos de internet, a lógica que há séculos orientava a produção jornalística vem precisando ser constantemente repensada. A articulação em rede, a facilidade de produção e a livre circulação de informações abriram novas possibilidades comunicacionais em todo o mundo, que independem das grandes corporações de mídia. São iniciativas independentes, sem fins lucrativos ou até voluntárias, financiadas e mantidas por fundações, entidades filantrópicas ou mesmo pelo próprio público leitor.
É um “jornalismo crowdfunding”, que produz material de direito livre (creative common) e ganha a web através de uma rede de parceiros e replicadores. Um jornalismo que não perde de vista o interesse público e oferece um trabalho denso de reportagem e investigação que, muitas vezes, não encontra mais espaço nos grandes veículos de mídia.
No Brasil, um dos exemplos deste tipo de iniciativa é o caso da Pública – Agência de reportagem e jornalismo investigativo. Fundada em 2011 por três amigas jornalistas, a agência já emplacou diversas reportagens premiadas e com grande repercussão. Em 2013, por meio de uma plataforma de Crowdfunding, a agência conseguiu angariar R$ 59 mil em doações para a concessão de microbolsas para reportagens independentes, com 12 jornalistas contemplados. O trabalho mais recente foi o lançamento do primeiro livro-reportagem, intitulado Amazônia Pública.
Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, Natalia Viana, uma das fundadoras daPública, compartilha sua visão sobre o mercado e seus profissionais, e as possibilidades midiáticas geradas por experiências de jornalismo independente. “Pública faz parte de uma rede que tem dez outros sites semelhantes, cada um com sua especificidade”, elenca. Em uma época em que a mídia hegemônica reinava absoluta, seja na televisão ou nas bancas de jornais, fazia sentido pensar em uma mídia alternativa. No entanto, em um contexto de perda da audiência, circulação e credibilidade das grandes corporações, tal oposição perdeu o sentido. “Na imprensa estamos passando de um cenário de mídia de massas para um cenário de massa de mídias”, pontua ela. “A tendência agora é reverter a concentração.”
Para Natalia não existe uma crise do jornalismo, mas uma crise na indústria. “A internet traz uma possibilidade tecnológica que acaba com aquilo que conformava a indústria da notícia: o fato de que eles tinham os meios de produção e de divulgação em suas mãos”, esclarece. As diversas iniciativas de jornalismo independente espalhadas por todo o mundo são evidências claras de que a atividade jornalística permanece relevante, independente das grandes corporações. “O jornalismo é uma produção humana, uma produção cultural. Ele não vai deixar de existir por uma crise no modelo de produção”, finaliza.
Natalia Viana é graduada em Jornalismo pela PUC/SP e possui mestrado em Radiojornalismo no Goldsmiths College, na University of London. Trabalhou e colaborou com diversos veículos nacionais e internacionais, como a Revista Caros Amigos, Carta Capital e o The Guardian (Reino Unido). Como jornalista independente, atuou também como colaboradora do WikiLeaks.
Viana é autora de Plantados no Chão – Assassinatos Políticos no Brasil de Hoje (São Paulo: Conrad, 2007) e Jornal Movimento, uma reportagem (Editora Manifesto, São Paulo, 2011). É ela também quem assina a introdução do livro de Julian Assange, Cypherpunks: Liberdade e o futuro da internet (São Paulo: Boitempo, 2013).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A Pública surgiu em 2011 como uma iniciativa sua e de outras duas jornalistas, propondo um modelo de negócios sem fins lucrativos para financiar as grandes reportagens. Como manter a empresa funcionando seguindo este modelo?
Natalia Viana – A Pública não é uma “empresa”, porque as empresas têm fins lucrativos. Também não gosto muito do termo “modelo de negócios”, porque implica que você tem um “negócio”. Nós produzimos no sistema de creative commons, onde tudo é livremente e gratuitamente reproduzido. Temos uma série de mais de 50 republicadores, que utilizam nosso conteúdo gratuitamente, quer dizer, não tem essa coisa de direitos autorais. Não comercializamos a nossa produção.
O nosso financiamento vem basicamente de aportes financeiros de fundações. Temos uma parceria muito forte com a Fundação Ford, com a Open Society Foundation e também com outras duas fundações, a CLUA (Climate and Land Use Alliance) e a Omidyar Network, que começou a dar um apoio bastante bacana no nosso projeto de crowdfunding, uma receita bastante importante de financiamento. Fizemos um crowdfunding ano passado, conseguimos arrecadar R$ 59 mil para distribuir bolsas para jornalistas independentes fazerem reportagens. Nós chamamos todas as pessoas que doaram para este crowdfunding para uma votação que elegeu quais seriam os projetos que deveriam ser realizados. Conseguimos distribuir 12 bolsas para reportagens que vão ser publicadas em 2014.
IHU On-Line – Com que objetivo a agência foi criada?
Natalia Viana – A nossa missão é produzir e fomentar o jornalismo investigativo independente no Brasil. Sentimos que era necessário ter um grupo independente de jornalistas dedicados a fazer jornalismo investigativo, que é uma área do jornalismo que está em crise no mundo inteiro — aí sim, por causa do modelo de negócios, que é o da mídia de massas. Um modelo que visa ao lucro. O jornalismo investigativo leva muito tempo para ser produzido, ele não é lucrativo, ele nem sempre vende. No entanto, é extremamente necessário para a democracia. Esse tipo de iniciativa já existe em vários países do mundo, nos Estados Unidos existe desde o final da década de 1970. São organizações sem fins lucrativos cujo objetivo é fazer jornalismo com viés público, jornalismo investigativo, jornalismo sem ser partidário.
IHU On-Line – Na América Latina existem outras experiências similares?
Natalia Viana – Muitas. A Pública faz parte de uma rede que tem dez outros sites semelhantes, cada um com sua especificidade. O CIPER (Centro de Investigación e Información Periodística) no Chile, IDL-Reporteros no Peru, La Silla Vacía na Colômbia, Plaza Publica na Guatemala, Confidencial na Nicarágua, El Faro em El Salvador, Animal Político, que é um site mexicano… Acabei de conhecer um grupo interessante no Equador que se chama Plan V, então existem muitos. É uma tendência que está aparecendo na América Latina bem fortemente.
IHU On-Line – Você encara estas experiências como imprensa alternativa? Se sim, alternativa a quê?
Natalia Viana – Não. Eu não uso muito esse termo. Justamente porque o uso do termo faz parecer que existe uma coisa que é “normal” e outra que é alternativa. Cada vez mais o que os estudiosos dizem, e eu concordo, é que na imprensa estamos passando de um cenário de mídia de massas para um cenário de massa de mídias. Ou seja, a tendência agora é reverter a concentração. Os grandes conglomerados estão perdendo não só a credibilidade como a visitação para iniciativas pequenas, então vão começar a pipocar muitas. Neste contexto, penso que o termo “alternativo” não faz muito sentido. Fazia na época da Ditadura, por exemplo, hoje não mais.
IHU On-Line – Qual você acredita ser o elemento fundamental do jornalismo? A reportagem? A investigação?
Natalia Viana – É a informação. A informação e o fato. Outro elemento que para mim também é muito importante no jornalismo é a narração. Saber contar uma história. O jornalismo que nós praticamos é assim: é fato — não opinião, mas fato, e o saber narrar. Eu não concordo com as pessoas que dizem que todo jornalismo é investigativo, que se não é investigativo não é jornalismo. Ou que dizem que o investigativo seria um jornalismo puro, ou melhor. Eu não acho. Penso que o jornalismo de cobertura é tão importante quanto, que o jornalismo de entretenimento é tão importante quanto… São tipos diferentes de jornalismo praticados por tipos diferentes de profissionais.
IHU On-Line – Existe uma crise no jornalismo? Ou existe uma crise de modelo de negócios do jornalismo?
Natalia Viana – É uma crise da indústria. Não só do modelo de negócio, mas da indústria de jornalismo em si. Isso é uma coisa bastante normal. O que acontece é que a internet traz uma possibilidade tecnológica que acaba com aquilo que conformava a indústria da notícia: o fato de que eles tinham os meios de produção e de divulgação em suas mãos. Agora já não é assim, porque todo mundo pode produzir e pode distribuir. Necessariamente, há uma queda importante na estrutura de produção.
É essa crise que está acontecendo agora. O jornalismo continua acontecendo, estão pipocando muitas iniciativas bacanas, muitas nem mesmo calcadas em financiamento. Muitas voluntárias, como é o caso do Mídia Ninja. O jornalismo é uma produção humana, uma produção cultural. Ele não vai deixar de existir por uma crise no modelo de produção.
IHU On-Line – Se todos conseguem produzir, como fica a preocupação com a apuração, tendo em vista a opinião e interpretação que muitas vezes envolvem o fato?
Natalia Viana – Aí vai de quem está produzindo e do leitor. Na internet há realmente muita opinião, e isso não é ruim. Mas nós, desde o começo da Pública, sempre tivemos a visão de que o nosso papel era o de publicar fatos, dados e reportagens fundamentadas. Tanto que não produzimos nenhum artigo de opinião, não produzimos análises, só reportagem, porque era justamente o que achávamos que estava faltando.
IHU On-Line – Em que medida você acredita que a internet impacta na produção jornalística? Seria possível repetir uma experiência como a Pública em matéria de circulação e relevância social em um mundo off-line?
Natalia Viana – Não acredito que seja possível fazer esse tipo de relação, porque as iniciativas são frutos do seu tempo. No Brasil, durante os anos 1970, houve iniciativas importantíssimas neste sentido, como foi o jornal Movimento (1975-1981). Eu escrevi um livro sobre a história do jornal junto com a Marina (Amaral), a outra diretora da Pública, e o (Carlos) Azevedo, nosso conselheiro. Uma das coisas que eu estudei para esse livro é justamente como eles faziam a distribuição, que era uma história fantástica. Era um jornal pró-democracia em plena Ditadura, que era impresso em uma gráfica aqui em São Paulo; as pessoas faziam um mutirão de sexta para o sábado de manhã para embalar, levar ao aeroporto e despachar por avião. Havia voluntários em cada uma das cidades, normalmente estudantes, que recebiam o jornal e iam vendê-lo de bar em bar. Foi uma iniciativa bastante importante, que teve impacto político significativo; em outra época, mas teve impacto. Cada iniciativa é fruto da história, a Pública apareceu agora porque nos são dadas as ferramentas que utilizamos.
IHU On-Line – Qual a sua opinião sobre a necessidade de um diploma em jornalismo?
Natalia Viana – É muito importante ter uma boa formação, e o jornalista precisa ter uma formação sólida. Pessoalmente eu não sou favorável à obrigatoriedade do diploma, mas esta é a minha opinião e não a da Pública. Se o profissional é formado, é claro que ele vai ser um melhor jornalista, mas a questão é se nossas universidades estão provendo isso ou não. Essa discussão é extremamente polêmica no mundo inteiro, não há uma regra única. Existem vários países onde o diploma não é obrigatório e o jornalismo funciona muito bem. No Brasil, adotar o diploma também teve uma função importante na profissionalização da atividade jornalística, e historicamente essa conquista foi muito importante, mas penso que isso está aberto para debate.
IHU On-Line – O que distingue um bom jornalista?
Natalia Viana – Eu discuto muito isso com a Marina (Amaral) e chegamos a uma conclusão inesperada. Obviamente, além de se ater aos fatos, o jornalista tem que ser completamente comprometido e apaixonado, muitas vezes obcecado para chegar o mais próximo da realidade do fato, incansável, persistente e muito chato. Mas, para nós, a ausência de preconceito é um ponto fundamental. O preconceito afeta muito a sua capacidade de ouvir o outro, e todo bom jornalista precisa saber ouvir. O bom jornalista não tem preconceito.
(Por Andriolli Costa)