*para Combate Racismo Ambiental
A velocidade imposta pelo capital nas suas prioridades atropela tudo que encontre pela frente, desde gatinhos que miam de medo até tigres consideráveis. Engole-os, chuta-os com as balas de chumbo ou os engambela com migalhas de balas de açúcar ou apenas com promessas vazias.
A barragem de Belo Monte é um caso típico dessa atrocidade desde o início do seu processo de implantação, sem as oitivas indígenas como manda a Constituição brasileira, com uma Licença de Instalação parcial, coisa totalmente exótica no licenciamento ambiental, e, agora, com a construção de casinhas de concreto em Altamira e começo da expulsão de famílias das baixadas, onde moram atualmente.
A velocidade vai a jato! Constrói-se a casa num dia e, em alguns segundos, destrói-se a antiga moradia, no ritmo da sede de antecipação do lucro pela geração e comercialização de energia numa hidrelétrica cuja construção foi decidida por impérios econômicos transnacionais imiscuídos no Estado brasileiro e financiada com dinheiro público.
Na abertura da II Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, iniciada em Havana ontem (28), Raul Castro defende que ‘os países da América Latina e Caribe devem ser soberanos na prerrogativa de exploração dos recursos naturais’. Essa advertência de Castro calha bem em especial para o setor energético no Brasil, nas mãos do capital financeiro internacional.
Mas o dia da expulsão do alagado em Altamira é como um oásis em meio a esse padrão histórico de violação ao direito humano na construção de barragens. Só na aparência, o que o torno ainda pior. É como um porco do qual você cuida com ração de primeira qualidade para abatê-lo em tempo recorde e transformá-lo numa carne apetitosa. É como o bandido que, tendo enfiado a faca na sua vítima até as entranhas, sem dó nem piedade, lhe promete morte indolor, sedando-a, arranjando um último argumento para a sua própria defesa no tribunal.
O dia da expulsão das famílias das baixadas em Altamira é um oásis no deserto, uma espécie de morte sem dor, que durará até que seque a pouca fonte de água ou até terminar o efeito do anestésico.
A dor sedada fica incubada, e vai incomodar muito no dia seguinte. Importante dizer que essa dor, se for doída demais, incomoda o atingido; mas, também, podem sobrar umas caneladas para os que hoje se acham em cima da carne seca, impondo a hidrelétrica com arrogância e sendo, eles mesmos, critério absoluto do certo e da verdade.
A dor, quando é sentida demais no estômago e na cabeça, não respeita limites. E qualquer império pode desfazer-se em fração de segundos.
Os golpes primeiros foram dados há muito através de relatórios e mais relatórios encaminhados ao IBAMA, com decisões de bastidores. Destinos traçados em documentos sigilosos! Hoje a empresa ‘sabe’ mais do atingido do que ele próprio. É claro que isso o põe numa situação vulnerável.
Claro ainda que no início muita gente gosta dessa ‘solução’ por forças ocultas, crendo que alguém vai resolver o seu problema crônico. Esse é um dos vícios de nossa sociedade: crer que um salvador da pátria ou que alguém puro de espírito altruísta vai resolver o nosso problema! Mas essa fé vai diminuindo, diminuindo, até afunilar-se por completo no dia seguinte à expulsão transmudada em favor.
A dor da expulsão é traumática demais, por isso o dia precisa ser tão especial! E faz do dia seguinte um tempo tão arriscado, conflitivo, com potencial de desencadear um processo libertador.
A pessoa é tirada de sua casa e colocada numa outra em cuja construção não pôde dar nenhum ‘pitaco’: a família não escolheu o local, não decidiu o tamanho da casa, a sua planta, nem se deveria ser de alvenaria ou de concreto. Isso equivale à pessoa ser obrigada, por enquanto, a saltar num abismo sobre os braços de um estranho.
O aparato montado para cercar a família de todos os cuidados é admirável. Uma equipe lá dos escritórios com ar condicionado, sob a batuta da Norte Energia, cuida de selecionar a família e de agendar o dia de sua mudança. A família é escolhida a dedo, após estudo minucioso, e avisada com dois dias de antecedência para preparar-se. Não é qualquer família que pode ir quando bem quer.
A expulsão sumária, nessa circunstância, soa como prêmio. Aquela família, antes que as outras, vai pisar na nova área. Aquela, que sempre tivera o direito negado pelos governos e pelo Estado brasileiro, é agora contemplada por uma empresa privada, numa espécie de privatização da política pública. Aquela, justamente aquela, é premiada, com tantas outras que, igualmente morando no alagado, também por causa dos direitos históricos negados, vão sair sem casa (ainda) que de concreto e sem nenhuma indenização porque estão fora da lista de atingidos pela barragem.
Um exemplo são os carroceiros. Eles somam 130 pais de família e garantem a subsistência de aproximadamente 600 pessoas. O trabalho de carroça é histórico em Altamira, com mais de 70 anos. Com o processo de implantação de Belo Monte, a vida deles ficou complicada: os fretes diminuíram, o trânsito virou um caos (apenas em 2013 houve 13 acidentes com carroça). O carroceiro que chegava a tirar R$ 200 por dia hoje ganha R$ 400 por mês. Apesar disso, não são reconhecidos como atingidos pelo IBAMA.
No dia da expulsão, com tantos cuidados, alguma família pensa que há outras tantas fora da lista e se sente privilegiada.
Não é por coincidência que as primeiras treze famílias retiradas dos alagados, do dia 15 de janeiro até hoje, são as famílias mais lascadas, às quais mais se negou direito.
Isso faz parte de uma grande orquestra, que ensaiou durante muito tempo e, agora, precisa tocar em tom suave. A música que rola no senso comum e na imprensa é que a família do alagado está melhorando de vida.
Selecionada a família, o dia fatídico com gosto de prêmio é agendado. Aí uma segunda equipe e duas empresas terceirizadas, a Granero e a CNEC, entram em ação.
A equipe vai até o endereço indicado no documento. São números, não pessoas! São objetos, não gente! Mas são objetos preciosos, que demandam, ao menos nesse dia, cuidados especiais. A área do alagado precisa ser limpa para a elite ocupá-la em nome do lago.
Os funcionários da empresa ajeitam tudo. Há móveis que se desmontam com um toque de nada. Colchão, fogão, um sofá, uma rede, tudo vai sendo colocado no caminhão. Cachorro, gato, tudo pode ir junto. Crianças, que são muitas no alagado, vão num carro à parte, muitas vezes sem a presença de um pai. Quantas nem sabem quem é o pai!
O dia da mudança é o dia da mudança! O pedido da família é (quase) uma ordem! Se um menino espirra, vem logo alguém com um remedinho para livrar-lhe até do sintoma da gripe. No dia seguinte, essa gente dos remedinhos e dos cuidados vai toda embora.
Como é tudo uma questão de aparência, muita coisa preciosa no sentimento, ainda que carcomida do tempo, desaparece nesse dia.
Lembra-me Maria Amélia, atingida pela barragem de Emboque, em Minas Gerais. Sua casa também fora derrubada, com muita prepotência, sem poder levar nada. ‘Queria pegar ao menos a janela, ela era madeira boa’, disse.
A agressão aos sentimentos das pessoas deixa marcas profundas, que se revelam no dia seguinte.
A mudança da família expulsa do alagado segue para ajeitar-se na moradia nova. Uma equação difícil! Como colocar móveis numa casa que não foi preparada para recebê-los? Como colocar as crianças, que em geral são muitas, nos poucos quartos apertados. É como a mão grande que precisa enfiar-se numa luva pequena. As casas são todas iguais, na planta e no tamanho (63 m²) e as famílias são diferentes umas das outras. Por isso é uma equação difícil!
Nessa hora o coração acelera, e dá sinais de alguma angústia, e começa a bater o sentimento de que gente é feita para a liberdade na luta. Aqui entra uma nova equipe para tentar apagar qualquer semente de rebeldia, qualquer ‘razão’ para reclamo: a equipe de acolhida, especialmente preparada para sorrir. Então o coração aflito prefere calar-se. Sobrepõe-se, ao menos por enquanto, o sentimento de que ‘vale mais um pássaro preso do que dois voando’.
A equipe de acolhida até ajuda numa coisa e noutra. Sua função mais importante, porém, é não fazer absolutamente nada. Apenas sorrir!
Famílias habituadas a levar cascudos do sistema todos os dias por ser empobrecidas, agora, ao menos no dia da mudança, recebem largos sorrisos. Isso mexe com elas por dentro.
O alimento chega a tempo e à hora. É dia de mudança! Vem o lanche, o almoço e, se precisar, também o jantar. A criança recebe atenção, talvez um brinquedinho. Tudo fica às mil maravilhas!
À entrada da nova casa, a família recebe a chave e um manual de instrução.
A chave lhe dá uma sensação de poder, de posse, de decidir quando abre e fecha a porta de sua moradia. Dá também uma sensação de privacidade. Mas esconde o fato de que a morada está numa área totalmente controlada pela empresa. É um ‘poder’ submisso a uma força imperialista, com cancela na entrada do loteamento e com a Força Nacional dentro do canteiro das casas, que está apenas no início das obras.
A família recebe um manual de instrução e nem lhe dá tanta importância, pois sua vida até então não precisava desse papel. Certamente o deixará depositado em um lugar qualquer!
O manual de instrução serve mais à própria empresa do que à família. Ele é a bacia de Pilatos, onde a Norte Energia lava as suas mãos. A prova do crime, pois ele só existe por causa da fragilidade da nova moradia, vira uma espécie de salvo-conduto da própria empresa.
A partir desse ato, através do qual a empresa informa à família a necessidade de cuidados especiais da casa de concreto, a responsabilidade cai nas costas da família.
É uma diferença grande que ocorre, embora no dia da mudança seja imperceptível, quando tudo fica sob a tinta fresca e os sorrisos ensaiados. Na morada antiga, alguém da própria família ou um parente fazia um puxado, ajeitava uma tábua solta, colocava água, ligava uma luz, tudo sem nenhum custo. Agora não! O manual de instrução é que ‘manda’. A pessoa não pode fazer nenhuma intervenção sem a contratação de mão de obra qualificada. E isso fica caro!
Mas com tanto chamego, com profissionais adestrados nos bancos de universidades preparados para agradar e vender carinho para quem, talvez, não o tenha recebido de graça, o dia da mudança é dia de glória, quase a realização de antigas promessas de Belo Monte como a redenção dos povos do Xingu.
A trama toda é muito bem montada, e engana até bons espíritos. Cleide, da Casa de Governo, conta que viu, pessoalmente, a família recém-expulsa sorrindo na nova casa, enfiada numa casa de concreto. A família sorri mesmo, com tudo que a rodeia nesse momento. Em um dia. Mas, conforme afirma o ditado, ‘angu de um dia não engorda cachorro’. E há muita gente no alagado que não está disposta a trocar sua moradia ampla, bem construída, até de 120 m², por aquelas casinhas. Por isso, o dia seguinte é incerto, mas traz também a possibilidade da organização.
O sorriso de ambos os lados (empresa e família) não significa garantia do direito e das políticas públicas ainda que as mais elementares. Não significa também que as coisas estejam tranqüilas. É um barril de pólvora que pode explodir a qualquer momento.
Até aqui a Norte Energia e governo federal têm atuado como corpo de bombeiros, apagando pequenos incêndios. E tocando as obras lá embaixo, na Volta Grande do Xingu. Mas esses apaziguamentos ensaiados e forçados negam o direito e só adiam o conflito, que poderá caminhar para a completa barbárie ou para um processo organizado, esse sim, capaz de garantir a liberdade soberana até agora negado.
Enquanto a Norte Energia entretém umas poucas famílias extremamente empobrecidas no Jatobá, como o bandido que alicia o cão-vigia com um pedaço de carne para saltar o muro do outro lado da casa, outra equipe se encarrega de destruir tudo no local da ‘antiga’ moradia, não deixando tábua sobre tábua.
É recorde sobre recorde! Gasta-se em média um dia para construção de uma casinha de concreto, que tem vida útil de cinco anos, e se destrói uma casa de madeira, que pode durar algumas dezenas de anos, em poucos segundos.
No alagado não há sorriso! O trator entra e, com seu bufado, leva tudo ao chão. Os operários de empresa terceirizada da Norte Energia despregam tábuas, retiram madeiras, encostam o caminhão e, o que era uma casa, agora entulho, vai tudo para o lixão para ser incinerado.
Com os destroços, é muita história que vira cinza e fumaça. Mas fica a semente da indignação, o combustível da mudança.
Três cenários, assim, se descortinam. No Jatobá, sorrisos e amabilidades cercam as famílias no dia da mudança, mas, no dia seguinte, no mês seguinte, no ano seguinte, só Deus sabe. Casas, ruas, contenção de encostas em tempo de inverno, tudo feito às pressas, na velocidade exigida pelo capital de olho na obra civil da barragem, é coisa sem futuro. Além de insegura, a vida no Jatobá vai ficar cara, com a conta de água, de luz e outros gastos. Além da vida insegura e cara, faltam equipamentos de políticas públicas elementares como saúde e educação.
No alagado, de onde as famílias são expulsas, o dia da mudança é marcado pela destruição. Uma área historicamente abandonada pelas autoridades, porque ali moram empobrecidos, agora será tratada como a menina dos olhos, e muito cobiçada. Ali haverá bosques, ciclovias, cais, área nobre de bacanas.
A expulsão pelo lago, em si dramática, tem a motivação subjetiva de limpeza social, de preconceito. O mesmo sistema político e econômico neoliberal que sobrevive do trabalho da classe trabalhadora e dos bens naturais destrói a natureza e expulsa os trabalhadores empobrecidos.
O primeiro cenário vai do sorriso ao abandono no Jatobá. O segundo cenário vai da destruição nos alagados à pretensão de construção de espaço para bacanas. Mas o terceiro cenário é o dia seguinte. O mais importante! Se ele for se materializando em rebeldia organizada, pois nenhum povo é bobo, a prepotência terá seus dias contados. O povo triunfará!
*Missionário na Prelazia do Xingu e militante do MAB.