Secretaria de Direitos Humanos da capital confirma que Unidade Experimental de Saúde funciona como prisão. Conselho do Ministério da Justiça nega desaparecimento de processo sobre ‘hospital psiquiátrico’
por Sarah Fernandes, da RBA
São Paulo – Os cinco jovens encarcerados em um hospital psiquiátrico do governo do estado sem cumprir pena ou receber tratamento médico poderão receber ajuda da prefeitura de São Paulo e da Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal. Após reportagem da RBA denunciando irregularidades a direitos constitucionais na chamada Unidade Experimental de Saúde (UES), os órgãos se comprometeram a cobrar Geraldo Alckmin (PSDB) pelo fechamento do edifício.
Os internos do “hospital”, localizado na Vila Maria, na zona norte de São Paulo, são egressos da Fundação Casa que cometeram atos infracionais considerados graves e que foram supostamente diagnosticados com transtorno de personalidade antissocial, com laudos médicos considerados duvidosos por instituições pró-direitos humanos. Eles já cumpriram as medidas socioeducativas previstas em lei e, sem terem praticado novos crimes, continuam detidos de forma “preventiva” – e aparentemente perpétua.
A ‘Guantánamo psiquiátrica’ paulista foi criada pelo governador-tampão Cláudio Lembo (então no DEM), que governou o estado de abril a dezembro de 2006, e mantida por seus sucessores, José Serra (2007-2010) e Geraldo Alckmin, ambos do PSDB.
Após a denúncia, a assessoria da Comissão de Direitos Humanos do Senado informou que ainda durante o recesso parlamentar vai solicitar por ofício informações sobre a ação civil à Procuradora da República. “Vamos começar a acompanhar o caso e fazer as gestões políticas em favor dos jovens que lá se encontram”, se compromete, em texto. O colegiado se comprometeu a fiscalizar o governo Alckmin para garantir o cumprimento do fechamento da unidade, caso a Justiça aceite denúncia encaminhada no ano passado por organizações da sociedade civil.
A Secretaria Municipal de Direitos Humanos de São Paulo também se posicionou sobre o caso: “Vamos conversar sobre o caso com a Secretaria de Segurança Pública e a Secretaria de Administração Penitenciária sobre o funcionamento da unidade”, afirmou o coordenador de políticas da criança e do adolescente, Fabio Silvestre.
Ele afirmou ainda que uma das metas da secretaria é elaborar um plano municipal de medidas socioeducativas. “Temos como avaliação que aquilo que pretendeu com a Unidade Experimental de Saúde não funcionou. Lá não existe médico, projeto terapêutico e regimento interno. É uma unidade penal contendo pessoas que não tem pena a cumprir. Fere, por isso, direitos constitucionais.”
Silvestre lembrou que, em 2001, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e seu ministro da Saúde, José Serra, assinaram a Lei 10.216, que garante proteção às pessoas portadoras distúrbios mentais. “Já tem respostas que o Estado pode dar pra eles”, concluiu.
O Ministério da Saúde recomenda que as internações por distúrbios mentais durem de 7 a 15 dias. A maioria delas ocorre, atualmente, por abstinência de álcool e drogas, uma vez que os distúrbios devem ser tratados na comunidade. A chamada Autorização para Internação Hospitalar, que garante financiamento para as internações, tem como prazo máximo 30 dias.
A assessoria da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados informou que nunca recebeu denúncias a respeito da unidade e que o caso pode entrar em pauta por solicitação de algum deputado após o recesso parlamentar, que termina em fevereiro.
No ano passado, irregularidades como a falta de médico de plantão, de projeto terapêutico e de regimento interno motivaram a Procuradoria da República de São Paulo, entidades pró-direitos humanos e o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo a moverem uma ação civil pública exigindo o fechamento da unidade, que está sob responsabilidade da Secretaria Estadual de Saúde. Ela será julgada pela Justiça Federal porque eventual condenação internacional do país por violações aos direitos humanos recai sobre a União.
Além disso, a Organização das Nações Unidas realizou duas vistorias no local, em 2011 e em 2013, avaliou o funcionamento da unidade como irregular e pediu o encerramento das atividades. Segundo a assessoria de imprensa da ONU-Brasil, conclusões e recomendações serão apresentadas ao Conselho de Direitos Humanos, em maio, em Genebra, na Suíça.
“O tratamento que tem sido dispensado a esses jovens é medieval. São encarcerados sem o devido processo legal, por tempo indeterminado, em estabelecimento que não lhes proporciona tratamento adequado aos distúrbios de que são portadores”, diz a petição inicial do processo. “Além de estarem sendo responsabilizados duas vezes pela prática de um mesmo fato, a internação na UES se dá por tempo indeterminado, como se fosse perpétua.”
Uma das irregularidades encontradas na unidade é a presença de agentes penitenciários em instituições não penais. A RBA esteve no local duas vezes e identificou funcionários com o uniforme da Secretaria de Administração Penitenciária. O Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedeca) de Interlagos instaurou um procedimento jurídico no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça (CNPCP), em 2009, pedindo um parecer sobre a questão.
O conselho havia afirmado à RBA que o processo corre em segredo de Justiça. Já o advogado que acompanha a ação civil, Daniel Adolpho, havia sido informado pela assessoria do relator do processo, conselheiro Herbert Carneiro, “que o processo estava desaparecido do gabinete”.
Após a publicação da reportagem, o conselheiro disse à RBA que “nunca houve afirmação oficial” de que o processo houvesse desaparecido, que ele “ainda não foi finalizado” e que “a atribuição de inspeção do CNPCP continua em vigor.” Segundo Carneiro, não é possível responder “genericamente” se a presença de agentes penitenciários em equipamentos não penais é irregular. “Cada caso deve ser analisado na sua particularidade.” Ele reforçou que não cabe ao conselho investigar, e sim inspecionar estabelecimentos prisionais.
“Por diversas vezes, o CNPCP oficiou a entidade apontada para saber informações sobre seu funcionamento”, diz Carneiro. “Como respostas, obteve informações de que ali atuavam, sim, agentes penitenciários, mas que estes não tinham contato direto com os adolescentes, e mais, que nenhuma irregularidade havia sido constatada em razão dessa situação. Informou, ainda, que a mão de obra dos agentes penitenciários era usada em razão da falta de profissionais especializados para tal; e mais, que aquela entidade era constantemente fiscalizada por outros órgãos de controle da política de execução estadual das medidas socioeducativas. E que nenhuma restrição foi feita sob seu funcionamento.”
Não existe destinação orçamentária especifica para a Unidade Experimental de Saúde no orçamento do governo estadual de 2013. O estabelecimento não consta no organograma da Secretaria Estadual de Saúde e não está inscrito no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde. Segundo o Ministério da Saúde, responsável pelo cadastro, o registro só é obrigatório se a unidade receber financiamento do governo federal. O processo aponta que os recursos para a unidade são do Tesouro estadual.
A RBA tentou por diversas vezes contato com a Secretaria Estadual de Saúde, mas não obteve resposta até o fechamento das reportagens. A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República não se pronunciou sobre o caso.