O outro lado da história

Encontro. Vicent Carelli exibe antigas matérias de TV a integrantes de tribo Guarani-Kaiowá
Encontro. Vicent Carelli exibe antigas matérias de TV a integrantes de tribo Guarani-Kaiowá

Criador do projeto Vídeo nas Aldeias, Vincent Carelli prepara filme sobre índios Guarani-Kaiowá

Daniel Toledo – Especial para O Tempo

Em outubro de 2012, boa parte da sociedade brasileira se impressionou com a divulgação de uma carta que anunciava a morte coletiva de 170 integrantes de uma tribo indígena do Mato Grosso do Sul. Escrita pelos próprios índios, a carta trouxe à tona o retrato instantâneo de um conflito que há décadas – senão séculos – se estende a diferentes pontos do território brasileiro: a violenta disputa de territórios entre grupos indígenas e grandes produtores rurais.

Foi com a intenção de subsidiar essa discussão e tratar com a devida complexidade a questão indígena brasileira que o antropólogo Vincent Carelli, fundador do projeto Vídeo nas Aldeias, deu início à produção do documentário “Martírio”, com previsão de lançamento para o início do segundo semestre de 2014.

Recentemente impulsionado por uma bem-sucedida campanha de financiamento coletivo, através da qual superou a meta de R$ 80 mil, o projeto se volta exclusivamente à trajetória dos índios Guarani-Kaiowá, combinando imagens atuais a registros de arquivo, produzidos pelo próprio Carelli ao longo das décadas de 1980 e 1990. “Àquela altura, começava a germinar a organização política de várias tribos brasileiras, dentre as quais os Guarani- Kaiowá”, pontua o cineasta.

“A ideia de fazer um filme sobre a questão do Mato Grosso do Sul já me rondava há alguns anos, mas, após os assassinatos de 2012, a questão se mostrou emergencial. Achei, então, que era tempo de retomar esse filme e rebater versões que tratam os índios como ‘invasores’ e até mesmo ‘assassinos’”, justifica, para em seguida apresentar uma visão ampliada em torno do conflito.

“Queremos esclarecer que não se trata de um embate político sobre questões de terra, mas de um embate entre duas perspectivas de mundo”, defende Carelli, 59, há mais de 40 anos envolvido na defesa dos direitos de povos indígenas brasileiros.

Histórico 

Se, aos olhos de muitos, o conflito entre as tribos Guarani-Kaiowá e os grandes produtores rurais do Mato Grosso do Sul teria ganhado relevância somente nos últimos anos, Carelli menciona aspectos históricos que devem ganhar destaque em “Martírio”. “Pouca gente sabe, por exemplo, que o debate se refere a regiões disputadas durante a Guerra do Paraguai, e que até hoje os ruralistas acusam os índios de não serem brasileiros, mas, sim, paraguaios. Esse é um argumento que surgiu lá na década de 1940 e, infelizmente, é usado até hoje, tanto na mídia quanto no Congresso”, observa.

As mesmas terras, conta o cineasta, serviram ao império da companhia Erva Mate Laranjeiras, que por décadas ocupou o território Guarani-Kaiowá, não raro empregando os próprios índios como peões. “Depois disso, houve um processo igualmente excludente de loteamento e venda desses terrenos”, relata, chamando atenção à irresponsabilidade de governos anteriores em relação à negociação de terras indígenas.

É a esse contexto, assim como aos anos que o sucederam, que se refere o material de arquivo produzido pelo cineasta. “Além de depoimentos dos próprios índios, vamos utilizar matérias de televisão sobre os vários despejos realizados naquela época. É preciso jogar luz sobre essa violência”.

Com grande parte do material já gravado, o documentarista planeja uma nova viagem ao Mato Grosso do Sul entre fevereiro e março, com a intenção de registrar o período de colheita da soja. “Como uma espécie de contraponto à pobreza e à precariedade que caracterizam a vida dos índios naquela região, vamos trazer algumas cenas de rodeios e também do agronegócio, duas forças que movimentam o Estado”, adianta.

Ainda que festivais de cinema e documentário surjam como importantes destinos de “Martírio”, Carelli chama atenção para o caráter público do longa, sobretudo quando considerada a sua forma de financiamento. “É claro que ele deve circular por diferentes festivais, mas é antes de tudo um filme de domínio público, que surge como fruto de um movimento e certamente será disponibilizado ao público por meio da internet”, garante o diretor de “Corumbiara” – finalizado em 2009 e realizado a partir de conflito semelhante no Estado de Rondônia, o documentário sagrou-se vencedor dos prêmios de melhor filme e diretor no 37º Festival de Cinema de Gramado.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.