Grilagem terceirizada, por Teoney Araújo Guerra*

assassinatos

Como grandes empresas expulsaram posseiros de terras que hoje estão em poder do agronegócio da celulose, na Costa do Descobrimento.

Em WRM Uruguai

Há dois anos, os irmãos Geraldo e Derolino Pereira dos Santos, o Dedé, pequenos proprietários cujas terras foram griladas no município de Eunápolis, tentam reaver a propriedade onde plantavam e colhiam feijão, mandioca, milho e criavam animais, que lhes foi tomada à força. Uma tentativa única de retorno, entre centenas de posseiros que, nas décadas de 1970, 80 e 90, tiveram suas terras griladas, na região da Costa do Descobrimento, no extremo sul baiano, numa imensa, triste e violenta ação que foi articulada por grandes empresas e cujas terras estão hoje em poder do agronegócio da celulose.

A grilagem teve início em meados da década de 1970, tendo como principais personagens: José Maurício Marcondes, Colombiano Batista de Vasconcelos, Ojackson Martins e Sílvio Carvalho dos Santos, de quem pouco ou quase nada se sabe das suas vidas pregressas, até a chegada à região, por volta de 1974. Chegando, aqui se estabeleceram num suposto negócio de compra e venda de terras, que, de acordo com inquéritos e documentos do Instituto de Terras da Bahia (Interba), não passava de “trambiques”. Uma suposta compra de propriedade feita pelo Sílvio Carvalho, em 10 de junho de 1974, imóvel que pertencia a dona Estelita Batista do Nascimento ilustra bem o modus operandi da quadrilha.  Nessa suposta transação que foi relatada pelo servidor do Interba, Samuel Gomes Lima, num ofício encaminhado a Jayro Nunes Sento-Sé, diretor Executivo do órgão, Ojackson “aparece como assinante à rogo da vendedora, que nos parece fantasma, visto que ninguém consegue localizá-la, nem dar notícia de que, se realmente existe”, relata o  servidor. De posse desse documento forjado, o grileiro tomou à força a terra adquirida por ocupação primária por dona Estelita.

Outra forma de “aquisição” de terras se dava pela brutal expulsão dos posseiros das suas terras, como ocorreu em novembro de 1979, com José Wilson Pereira Costa, mais conhecido como Wilson da Cachaça, dono de uma pequena propriedade já registrada no Interba, localizada na margem do rio Santo Antônio, no município de Santa Cruz Cabrália. De acordo com o que consta no inquérito, “Wilson foi surpreendido com uma ação violenta chefiada por Ojackson Martins e outros acompanhantes que exigiam a desocupação das terras, destruindo [em seguida] duas casas, móveis e utensílios e telhas de alumínios, que foram cortados a facão”, relata o documento.

Igualmente cruel foi a invasão da propriedade de Fausto Souza Santos, na mesma região, em Santa Cruz Cabrália. Episódio também registrado em inquérito, no qual foram ouvidas três testemunhas. “Fausto foi procurado na sua casa por Colombiano, que exigiu a sua imediata retirada do local, sob pena de, no dia seguinte, aparecer com a barriga inchada [o que quer dizer, morto]; que o declarante, achando-se com sua mulher no último mês de gestação, com ainda mais três filhos de colo, apavorado com a ameaça de Colombiano e meio a dois indivíduos que atendiam pelos nomes de Almerindo e Cabo Nilo, abandonou o local e nunca ali apareceu, deixando sua casa, seu capim braquiara, sessenta coqueiros, jaqueiras, abacateiros, trezentas mudas de bananeira, além de criações de pequeno porte”, registra o inquérito policial.

A violência crescente levou a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) a enviar para a região, em fevereiro de 1980, um delegado especial, o coronel PM Gethsenani Galdino Souza, que, em 11 de março do mesmo ano apresentou um Relatório que foi concluído reconhecendo que José Marcondes, Colombiano Batista, o Colô e Ojackson Martins eram responsáveis pelas grilagens e demais crimes.

Porém, nada continha a ação dos grileiros por essas bandas, que atravessou os anos 1980 e chegou à década seguinte, quando a Veracruz Florestal já iniciava a implantação do empreendimento que é hoje a Veracel Celulose. Foi em 1994, no mês de agosto, que Geraldo e Dedé tiveram suas terras “confiscadas” por grileiros. Era uma sexta-feira, ambos tinha ido para a cidade de Eunápolis fazer compras, resolver negócios, deixando os trabalhadores Valmir dos Santos e Clarindo Pereira cuidando das roças e da criação.

Dedé foi o primeiro a voltar, no lusco-fusco do anoitecer. Ao chegar, encontrou a casa semidestruída, assim como as plantações, objetos espalhados pelo terreiro e animais mortos, numa cena desoladora. A um canto, sentados num tronco caído, os trabalhadores, que relataram o ocorrido. Jagunços com caras cobertas por panos, armados, ameaçaram e destruíram, exigindo a saída imediata dos que ali viviam. “Foi difícil de acreditar, ver que tudo que a gente tinha feito em anos, tava destruído,” relembrou Dedé. Os irmãos ainda tentaram, nos dias seguintes, falar com a direção da empresa: em vão. Depois, tentaram volta às suas terras, mas não foi possível, uma vez que, homens armados bloqueavam todos os acessos. A via judicial foi tentada, mas não deu resultado.

São centenas de histórias de invasões, espancamentos, destruição de bens e até assassinatos de posseiros indefesos registradas nos livros de ocorrências das delegacias de Polícia das cidades da microrregião durante mais de duas décadas, que resultaram na grilagem de áreas enormes, porém tantos crimes nunca foram, sequer, transformados em processos. Cópias de cartas, expedientes internos e telegramas enviados pelo servidor do Interba no município, e pelos próprios delegados na época, Pascoal StolzeMagnavita e José Dantas da Cruz, aos seus superiores, relatam muitas dessas ocorrências.

De acordo com o mesmo Relatório da Secretaria de Segurança Pública, o próprio José Maurício Marcondes afirmou ser dono de mais de 10 mil hectares, numa área constituída de aproximadamente, 60 posses. Em outro documento do Interba, há uma afirmação do mesmo Marcondes, de que já vendera mais de 40 mil hectares de terras para a Flonibra.

PAUS MANDADOS

Essa ação dos grileiros em toda a Costa do Descobrimento, não se dava de forma individual, autônoma. Grandes empresas estiveram direta ou indiretamente envolvidas nos atos criminosos. Inicialmente a Indústrias Cabrália S/A, e a Florestas Nipo Brasileiras, a Flonibra, que, durante muitos anos, compraram terras com essa procedência. O elo da ligação entre as duas empresas era o coronel José Macedo de Andrade, que muitas vezes se apresentava como gerente das fazendas das Indústrias Cabrália, mas tinha ligação estreita com a empresa nipo-brasileira, como afirmou Joselito do Nascimento Maciel, lavrador já aposentado, que chegou à região em 1957, e é testemunha ocular de toda essa tragédia que se abateu sobre os pequenos posseiros em Santa Cruz Cabrália.

Outra empresa cujo histórico na Justiça é marcado por processos de invasões de terras, atos de violência e assassinatos é a Brasil Holanda de Indústria S/A (Bralanda), uma multinacional holandesa que por quase três décadas, atuou na região.

De acordo com processos que ainda hoje tramitam na Justiça – há quase 40 anos, sem solução -, a Bralanda se utilizou desses mesmos expedientes, tendo expulsado mais de uma centena de pequenos lavradores de terras das quais tinham a posse por ocupação primária, no Vale Verde, município de Porto Seguro.

PROJETO GOVERNAMENTAL

A grilagem de terras foi incentivada por um processo de inclusão do extremo sul baiano nas novas áreas onde deveriam se dar a expansão dos negócios de celulose. Projeto idealizado pelo governo federal, no início de 1974, que previa a criação de Distritos Florestais no norte-nordeste. Até então, essa atividade agroindustrial estava restrita ao sudeste.

Para incentivar a implantação do Distrito Industrial no extremo sul baiano, o governo do Estado apresentou ao Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), o documento intitulado “Zoneamento dos Distritos Florestais do Estado da Bahia”, que previa a implantação de dois polos florestais no estado: um no Extremo Sul e outro no Litoral Norte. O do Extremo Sul abrangia 16 municípios.

A investida inicial no sentido de implantar o Polo Florestal na região foi feita pela Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), empresa criada pelo presidente Getúlio Vargas, em 1942 – cujo objetivo de explorar as minas de ferro na região de Itabira (MG), que na segunda metade da década de 1960 passou a diversificar suas atividades –, em associação com  a Japan Brazil Pulp Resources Deveolpment Co. (JBP), que juntas, criaram a Flonibra, que adquiriu também milhares de hectares de terras griladas pela Indústrias Cabrália.

Durante todo esse processo de invasão de terras, a Flonibra desmatou imensas áreas, fazendo a exploração da madeira, que era comercializada para o Japão e países da Europa. “A empresa embarcavaessa madeira num embarcadouro que tinha aqui em Santo Antônio”, como informou seu Joselito.

A investida final, a partir da década de 1980, resultou na implantação da Bahia Sul Celulose no município de Mucuri, e no início da década seguinte, o Grupo Odebrecht implantou na microrregião de Eunápolis, a Veracruz Florestal, embrião da Veracel Celulose. A implantação desse empreendimento deu-se [oficialmente] com a compra de centenas de propriedades, porém, movimentos sociais, o Cepedes – ONG sediada em Eunápolis – e o próprio Ministério Público já denunciaram a empresa por haver ocupado ilegalmente milhares de hectares de terras devolutas, além de adquirir centenas de propriedades rurais pertencentes à CVRD, as mesmas que foram griladas nas décadas de 70 e 80, por Marcondes, Colô e Ojackson.

Hoje, transformado em polo industrial de celulose, o extremo sul baiano é um imenso eucaliptal, gerador de impostos para o Estado brasileiro. Porém, um imenso passivo sócio-ambiental foi deixado no rastro da implantação desse projeto de “desenvolvimento”, que vitimou centenas de famílias que hoje vivem nas periferias das cidades da região, sem nenhuma perspectiva de vida, e sem a mínima chance de voltar para o chão de onde foram expulsas.

Fazendo da sua força de trabalho um recomeço de vida, Geraldo e Derolino voltaram a ocupar há cerca de dois anos as terras onde viveram parte das suas existências. Depois dessa ocupação, em setembro de 2012, a Veracel mandou dois funcionários seus, Jovane Vicente Ferreira, assistente Florestal e Leones Dorneles, técnico de Segurança, fazerem uma vistoria no local, que foi reconhecido pelos empregados como área não pertencente à empresa. “Aqui vivi uma parte da minha vida, e aqui vou ficar pelo restante dela”, disse Geraldo, que com o irmão, construiu entre o eucaliptal, uma casa de taipa e plantou roças que já deram as primeiras colheitas, e vive a feliz sensação de voltar a plantar e colher. Em local um pouco distante de onde as jaqueiras, mangueiras, laranjeiras, piteiras e os lírios, testemunhas de toda a violência que há mais de duas décadas, ali aconteceu, ainda dão flores, frutos e mantêm viva a memória de um tempo que para eles é de más recordações, mas acalenta a esperança de agora,poderem viver com suas famílias, em paz.

*TeoneyAraújo Guerra é jornalista (MTb-2166 BA)

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ivonete Gonçalves.

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