Por Pedro Portella*, em Rio On Watch
Quanto vale todo o tempo em que Nelson Mandela esteve preso por defender o fim do apartheid na África do Sul? Esta é uma questão que não se cala após um conflito num shopping da cidade de São Paulo que foi palco do polêmico rolezinho, nada mais do que um simples encontro combinado pelo Facebook, frequentado em sua maioria por jovens negros e pobres da periferia da mesma cidade.
Claramente percebe-se que as pessoas das classes mais baixas da sociedade não são bem vindas nestes espaços, a não ser quando servindo de mão de obra barata para os empresários lojistas. O paradoxo é que a maioria desses trabalhadores dos shopping centers também são moradores da periferia, porém quando frequentam estes espaços sofrem com o poder coercitivo gerado pela criminalização da pobreza, que anda de mãos dadas com o racismo e outros tipos de ‘ismos’ que assolam a convivência humana.
Diferente da África do Sul, a segregação no Brasil é velada e não assumida, também não tão cruel e separatista quanto lá, mas levando em consideração as fortes evidencias de que um sistema perverso e malicioso se instala no Brasil desde Cabral, que começou com a escravidão, a qual dispensa explicações, cujo os seus efeitos são sentidos até hoje. No Rio de Janeiro a linha que separa os ricos dos pobres é muito tênue, em geral só há interação num grau mais elevado quando é estabelecido uma relação de poder exercida sob o trabalhador, percebemos isso quando surgem casos como o rolezinho, que colocou em evidencia o que acontece silenciosamente em diversos locais; no Shopping, na Universidade, nos Centros Culturais e etc…
Existe uma Engenharia do Consentimento que sustenta a base dessa permissividade para que sejam construídos esses mecanismos, sistemas de punição, que são muito eficaz aos olhos dos algozes que semeiam a desunião entre as pessoas. São formas de punição tão sutis e simples que as pessoas nem percebem quando praticam no seu cotidiano, pois a Engenharia do Consentimento possui meios de validar essas ações socialmente como corretas, porém são punições altamente destruidoras. Essas punições são de cunho preconceituoso por uma questão econômica e racial, na maioria das vezes são ações vistas como algo normal pela maioria das pessoas.
Posso citar com propriedade um fato que aconteceu comigo num shopping situado na Gávea, bairro nobre de classe alta da Zona Sul do Rio. Este é um caso muito peculiar, pois a pobreza e a riqueza são acentuadas pela proximidade geográfica, é uma região onde os prédios e as mansões mais valiosos da cidade são rodeados por favelas e comunidades populares, como é o caso da Favela da Rocinha e da Vila Parque da Cidade, uma pequena comunidade situada dentro da reserva florestal no vale da Gávea, local onde eu moro há quatro anos. Na última ida ao shopping local, simplesmente fui escoltado por quatro seguranças que ao me verem entrar no shopping logo trataram de se movimentar em torno de um procedimento preconceituoso e puramente sustentada pelo medo. Fui acompanhado pelos seguranças por todo o percurso de compras, o que durou um pouco mais de uma hora. Eles se comunicavam por rádios e revezavam as vezes para não ficar tão evidente a perseguição, mas estava claro que eles me perseguiam e me vigiavam como se a minha condição social e racial determinassem uma possível atitude criminosa de minha parte.
Este desabafo surgiu após repercutir uma publicação irônica que fiz sobre o caso no Facebook. Diversas pessoas declararam passar pelo mesmo constrangimento e se sentiram contempladas pela minha fala:
Casos como esse me levam a crer que existe um apartheid em curso, o que invalida todos os anos de luta de pessoas como Nelson Mandela, que deram suas vidas para que a união dos povos fosse absoluta. São pequenos acontecimentos diários que ocorrem quase imperceptíveis, mas quando somados e amplificados tomam proporções gigantescas, culminando em casos como o do rolezinho por exemplo.
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*Pedro Portella é músico e sound designer brasileiro, nascido em São João de Meriti em dezembro de 1984. Estudante de mecânica quântica, trabalha profissionalmente com startups de produção de audio, arquitetura da informação, experiência do usuário (UX) e design thinking. Ele é morador da comunidade Vila Parque da Cidade.