Num mundo de 840 milhões de famintos, as despesas militares dos países superam US$ 1,7 trilhão em três anos, o equivalente a US$ 260 dólares por habitante do planeta
Por Renato Brandão, RBA
Há pelo menos 70 mil anos o Homo sapiens já era dotado da capacidade de produzir armas. Junto com a capacidade de desenvolver a linguagem e dominar o fogo, a construção de instrumentos acompanhou a espécie humana nas tarefas de conquistar e se consolidar por diversas regiões do planeta. Transformações posteriores, em especial após os períodos Paleolítico e Neolítico, abririam uma nova etapa da evolução do homem, culminando com a formação de pioneiras organizações sociais e o surgimento da escrita, colocando fim à Pré-história. Homens e armas evoluíram pela Antiguidade até os dias atuais, em uma história de mais de 5 mil anos que vai do uso de metal derretido para fazer espadas, flechas e lanças, até o domínio biológico, químico e nuclear para construir armas de destruição em massa capazes de aniquilar o planeta em poucos minutos e por várias vezes.
Depois da Revolução Industrial surgiu o que se conhece hoje como setor aeroespacial, defesa e segurança, um dos mais lucrativos e poderosos do mundo. Envolve empresários, políticos, militares, agentes de inteligência e negociantes de armas – e não é raro uma mesma pessoa se mover entre essas funções; a indústria bélica é repleta de poder e segredo, difícil de ser estudada e fiscalizada.
Estimativas sobre o setor normalmente são imprecisas e incompletas, especialmente porque países e empresas não revelam detalhes sobre o negócio, por sigilo militar ou pelo caráter das transações. As poucas informações divulgadas dão uma ideia da força da indústria de defesa. O comércio internacional de armas convencionais movimenta cerca de US$ 80 bilhões por ano – embora essa cifra deva ser bem maior, uma vez que alguns dos principais exportadores, como a China e o Reino Unido, não dão informação precisa sobre suas exportações.
Essa estimativa diz respeito a apenas uma parte dos negócios. Não estão incluídas vendas para o mercado doméstico. “O comércio mundial de armas representa apenas uma minoria do total da produção da indústria de armamento no planeta. Embora empresas de países menores sejam mais dependentes das exportações, a realidade é que a maioria das vendas feitas por grandes fabricantes dos Estados Unidos e demais potências é para dentro do país”, explica Samuel Perlo-Freeman, do Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo, Suécia (Sipri, na sigla em inglês).
Segundo Perlo-Freeman, esses grandes contratos locais entre indústria e Estado englobam não apenas venda de equipamentos, mas também prestação de serviços militares. “Por isso, os valores de vendas totais de equipamentos e serviços das empresas são muito mais elevados do que quaisquer estimativas para o comércio mundial de armas”, completa. De acordo com um ranqueamento do Sipri, a soma das vendas e serviços militares das 100 maiores empresas de armamento e equipamento bélico foi de US$ 465,7 bilhões em 2011 – só as vendas das dez maiores corporações globais chegaram a cerca de US$ 220 bilhões.
O Sipri estima que as despesas militares de todos os países ultrapassaram US$ 1,7 trilhão, em média, nos últimos três anos – cerca de US$ 260 dólares para cada habitante do planeta. Em vez de empregarem mais investimento em saúde, educação, ciência e bem-estar, o contribuinte está financiando gastos armamentistas atualmente superiores à era final da Guerra Fria, encerrada há mais de duas décadas. “Mesmo com a crise econômica internacional, os gastos estão em níveis historicamente elevados, porque os governos prepararam pacotes de estímulo e muitas empresas ainda estão trabalhando em encomendas anteriores”, diz Perlo-Freeman.
De acordo com o instituto sueco, sete das dez maiores corporações do setor de defesa ficam nos Estados Unidos – onde se beneficiam também do comércio doméstico devido a uma legislação pouco rigorosa e à falta de políticas de controle de armas. A forte pressão política exercida por entidades de extrema-direita, como a Associação Nacional do Rifle (NRA, na sigla em inglês), contamina as poucas iniciativas de se debater o assunto. Mais influente instituição pró-armas estadunidense, a NRA gasta fortunas em lobby sobre políticos e com uma propaganda paranoica contra o desarmamento.
Influência perversa
Além de serem grandes clientes, os governos também concedem grandes benefícios à indústria bélica – muitas vezes maiores do que a outros setores produtivos. “Como a indústria está muito perto de vários níveis de governo e também de políticos e partidos, essa relação íntima resulta em decisões ruins e corrupção. Isso também significa que a indústria tem uma influência desproporcional sobre a política de governo, não apenas em relação a defesa e política externa, mas até mesmo sobre as políticas econômica, social e ambiental”, avalia Andrew Feinstein, ex-membro do Parlamento da África do Sul, autor de O Mundo das Sombras: Por Dentro do Comércio de Armas Global e uma das mais respeitadas autoridades mundiais no assunto. “Por causa dessa relação estreita, há pessoas enriquecendo e que nunca enfrentam as consequências legais de seus atos. O comércio de armas enfraquece a democracia responsável, o Estado de direito e prejudica a própria segurança que se destina a reforçar”, critica.
Nessa relação intricada entre políticos, militares e indústria, o próprio Estado pode atuar ativamente em prol dos interesses da indústria bélica. Contratos internacionais de venda, mesmo sendo negócios particulares das corporações de defesa, só podem ser firmados em nível governamental. Ou seja, para fazer uma venda a um país comprador, a empresa precisa de autorização e assinatura de um representante do governo de sua matriz. Não por acaso, os contratos militares recebem tratamento de “segredo de segurança nacional”.
Um estudo da organização Transparência Internacional sugere que as transações da indústria de defesa respondem por quase 40% de toda a corrupção no âmbito do comércio mundial. “O comércio é tão corrupto porque está estruturado para ser assim. Pouquíssimas pessoas tomam a decisão sobre o que e de quem comprar. E tudo isso acontece em segredo. Nos 13 anos que tenho investigado essas transações, nunca deparei com um negócio que não tivesse algum elemento de ilegalidade”, lamenta o ex-parlamentar sul-africano, que lista a corrupção por meio de suborno aos tomadores de decisão, ações em empresas que se beneficiam de acordos, presentes e viagens, entre outros agrados.
Um dos casos mais notórios de corrupção no comércio global de armamentos foi o dos acordos de Al Yamamah. Avaliado em 40 bilhões de libras (cerca de R$ 160 bilhões), o contrato de 20 anos formalizado pelo governo do Reino Unido (liderado então por Margaret Thatcher) e Arábia Saudita em meados da década de 1980 envolveu a troca direta de aviões militares fabricados pela British Aerospace por petróleo saudita. Quase duas décadas depois, investigações independentes revelaram que no contrato a empresa pagou até 120 milhões de libras (aproximadamente R$ 480 milhões) em propina para dirigentes sauditas. A denúncia foi arquivada, já sob o governo Tony Blair (1997-2007), sob alegação de que poderia levar à “destruição completa de uma relação estratégica vital e à perda de milhares de empregos britânicos”.
Outra forma de corrupção está impregnada na estreita relação entre o comércio formal e o mercado negro, onde os negócios são construídos por intermediários – entre agentes, revendedores e traficantes, como o ex-empresário russo Viktor Bout. Popularizado pela mídia ocidental como o “senhor das armas”, esse ex-oficial da força aérea soviética fundou companhias de carga aérea que prestaram serviços de transporte, de alimentos a armas, para diversos clientes, do grupo extremista Taleban a forças de paz das Nações Unidas e tropas dos Estados Unidos. “Viktor Bout trabalhou para os Estados Unidos e para muitas grandes empresas de defesa, ao mesmo tempo em que estava fornecendo armas ilegalmente em várias zonas de conflito ou de embargos internacionais”, lembra Feinstein.
Por US$ 60 milhões, uma empresa aérea de Bout foi subcontratada para transportar munição e botas a soldados norte-americanos entre 2003 e 2004, um momento crítico da segunda guerra no Iraque. Anos depois, o russo foi preso, julgado e sentenciado pelos Estados Unidos. “Ele só foi preso depois que ele não era mais útil, porque, na verdade, o protegeram por muitos anos. Muitos negociantes de armas são empregados por agências de inteligência, o que os torna blindados e efetivamente acima da lei”, reforça.
Na tentativa de prevenir e erradicar o comércio ilícito, as Nações Unidas e organizações de diretos humanos aguardam a entrada em vigor do chamado Tratado do Comércio de Armas Convencionais (TCA). Primeiro instrumento jurídico internacional para regular o comércio global bélico, o tratado foi aprovado pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em abril do ano passado e aguarda a ratificação por 50 países para entrar em vigor. Embora muitas nações, entre as quais o Brasil, se comprometam a ratificá-lo, até outubro somente sete países o fizeram (Antígua e Barbuda, Costa Rica, Guiana, Islândia, Itália, México e Nigéria).
Seus defensores argumentam que o tratado poderá impedir que armas caiam em mãos de violadores de direitos humanos, organizações terroristas e crime organizado. De acordo com o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, as normas fornecidas pelo TCA serão importantes para avaliar os riscos de que as armas transferidas não serão usadas para alimentar conflitos, armar organizações criminosas ou apoiar a violação de normas do direito internacional humanitário. “Este é o único caminho para uma maior responsabilização, abertura e transparência no comércio de armas”, defende o líder.
Críticos ainda apontam falhas no tratado, como o fato de permitir que os países exportadores continuem a fazer o seu próprio julgamento subjetivo sobre vender ou não armas para um regime autoritário. “O TCA é importante simbolicamente, mas é muito fraco, na prática, sem mecanismos de execução significativos. Se é para fazer alguma diferença, isso exigiria vontade política por parte de todos os governos, e isso é altamente improvável, já que eles se beneficiam do comércio conforme este se apresenta atualmente”, critica Andrew Feinstein, que acredita em outro caminho para tornar o comércio de armas menos corrupto e mais transparente, sugerindo que os países divulgassem o nome de intermediários (identificando que eles são pagos e para qual finalidade exata) e proibissem o uso de compensações econômicas em negócios de armas. “Depois, empresas de defesa deveriam ser proibidas de fazer doações a partidos políticos e campanhas eleitorais”, defende o sul-africano.
Sexta maior taxa de homicídios do mundo
Oficialmente sem conflitos civis, emancipatórios, étnicos, raciais ou religiosos, o Brasil tem de 16 a 17 milhões de armas em circulação (sendo 6 milhões registradas) – média de uma arma para cada dúzia de habitantes. A taxa de mortes por armas de fogo cresce substancialmente desde a década de 1980 e mais de 1 milhão de brasileiros morreram vítimas da violência armada nas últimas três décadas, de acordo com o Mapa da Violência 2013, elaborado pelo pesquisador Júlio Jacobo Waiselfisz.
Entre 1980 e 2000, o número de assassinatos saltou de cerca de 14 mil para quase 50 mil. Em algumas ocasiões, a taxa de homicídios brasileira ultrapassou diversas nações em guerra – quase 193 mil pessoas foram assassinadas no Brasil de 2004 a 2007, enquanto a soma das vítimas dos 12 maiores conflitos armados internacionais nesse período ficou em 169,5 mil.
Em outubro de 2005, o “não à proibição” obteve 60% dos votos num referendo sobre o comércio de armas. O país ainda tem a sexta maior taxa de homicídios do mundo, com 26 mortes por ano a cada mil habitantes. A chamada “bancada da bala”, grupo de parlamentares que defendem os interesses da indústria de armas no Congresso, é uma das mais coesas no Parlamento. Distribui a parlamentares, jornalistas, associações e outros formadores de opinião a cartilha Mitos e Fatos, a respeito da legalidade do comércio de armas, entre outras táticas de convencimento.
Impacto de US$ 9,5 trilhões
Segundo um estudo divulgado pelo Instituto para a Economia e a Paz (IEP), organização de pesquisa com sede em Sydney, Austrália, o impacto da violência na economia internacional foi de US$ 9,5 trilhões em 2012, valor equivalente a 11% de todas as riquezas produzidas no planeta e a quase o dobro da produção total de alimentos. Há forte correlação entre o impacto da crise financeira mundial de 2008 e a perda de paz no planeta. “Os cortes nos serviços públicos e nas proteções sociais, somados a um crescente desemprego, levaram ao aumento das manifestações violentas, dos crimes violentos e da percepção da criminalidade em muitos países”, diz o documento.
Muito dessa violência está vinculada às mais de 875 milhões de armas leves que circulam no mundo. Parte dessas armas é obtida legalmente e outra parcela, ilicitamente. Mais de 70% delas estão nas mãos da população civil, estima o projeto Small Arms Survey, do Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra, na Suíça.Não é por acaso que a maioria das mortes violentas no planeta ocorra em países não afetados por conflitos armados. Das mais de 740 mil vítimas da violência armada anualmente, 490 mil dizem respeito a homicídios, segundo a Declaração de Genebra sobre Violência Armada e Desenvolvimento.
Esse tipo de violência causa perdas de produtividade em até US$ 163 bilhões anuais somente em países sem conflitos declarados – boa parte deles na América Latina (incluindo o Brasil), onde a violência está fortemente vinculada a baixo desenvolvimento, alta desigualdade e reduzidas oportunidades socioeconômicas.