Como funciona a “higienização” no Brasil

Nas comunidades que beiram o córrego até o Jabaquara ainda existem condições precárias de moradia (Raoni Madalena/RBA)
Foto: Raoni Madalena/RBA

Por Eustáquio José, em Um Brasil de Verdade

Esse texto pretende elucidar, de uma forma assaz singela e didática, como se dá o processo social mais comum em nosso tempo: a higienização.

Antes um parêntese aberto: só mesmo no nosso país para nos caracterizarmos por algo tão caricato, pequeno, mesquinho e perverso como esse processo de higienização. Nós estamos cercados de preconceitos, conservadorismo e problemas de aceitação do outro, mas nada consegue ser tão brutal quanto colocar todas essas mazelas em público e na prática e fazer com que todos os meios de desigualdade social transformem-se em realidade desigual e injusta. Prova disso são os rolezinhos marginalizados, são as favelas “pacificadas”, são os Amarildos desaparecidos e os problemas de toda a natureza que se pode extrair dessas “ações sociais”.

Feito o parêntese, vamos então ao passo a passo da higienização no Brasil.

1- Escolhe-se um evento. O Brasil, por uma pequenina forma de enriquecimento (ao menos a aparência disso) e matéria-prima (ainda que de exploração e com desigualdade) em abundância atrai investidos e aí se tem uma possibilidade de mostrar “o que é que o Brasil pensa ter”. Nesse conjunto de coisas nós vemos algo bem interessante: os eventos mundiais, continentais e regionais que o Brasil abriga sempre se dão da mesma forma através de um claro processo de sumir das vistas com aquilo que incomoda seja por desaparecer com o problema ou mesmo fazer com que, por acordos escusos, hajam jogos pan-americanos no Rio de Janeiro, com traficantes. Assim se tecem as entranhas do evento. Privilégio para cá, vista grossa pra lá, lobby forte aqui, lei da compensação acolá. Assim se vai conseguir fazer algo inédito: copa do mundo e jogos olímpicos no Brasil e em sequência.

2- Ao invés de se construir vias de acesso ao povo e de mobilidade urbana, prefere-se construir pedaços e se destruir comunidades, favelas, entre outras aglomerações de pessoas. O que acontece em Camaragibe-PE (na região metropolitana de Recife e ainda próximo a São Lourenço da Mata, local da Arena Pernambuco, uma das sedes da copa do mundo) ou o que ocorre no Rio de Janeiro é degradante, humilhante e dá nos nervos. Mas aí está o modus operandi usado. Sempre que se precise construir algo, algo que salte aos olhos, é melhor fazê-lo pela via mais barata. indenizações para ricaços custa caro, então vamos impor a lei, império do juspositivismo brasileiro mode on, para os pobres que, mesmo que tenham respaldo legal, nós negaremos seus direitos sob a alegação fria e fajuta de que “não é preciso ser um gênio para perceber que o Estado precisando o Estado pode imperiosamente conseguir. Mas a que custas…”, e o resultado é desapropriar terras e abrir caminho comunidades carentes adentro, à força, sem mérito algum.

3- Coloca-se uma grande dose de propaganda em duas frentes:

a) Uma mídia suja e cheia de interesses escusos por detrás. Não é segredo para ninguém que essa Copa do Mundo gera grande receita para quem controlará os direitos de transmissão, as patrocinadoras locais sempre já patrocinadoras dos canais, com as propagandas de vários jogadores e a vinculação da imagem de que o Brasil é um paraíso natural e cultural (escondendo a todos num longo e isolado tapete para que não sejam percebidos) no qual se pode investir e no qual se tem tudo de bom acontecendo (good vibrations). Obviamente os vários casos de estupro a turistas e de roubos, latrocínios, crimes contra pessoas daqui e de fora, são levemente maquiados para que não se macule o slogan de a “melhor copa das copas”.

b) Personalidades e pessoas que lucram diretamente com essa jornada esportiva, entre outras, no caso de Pelé e de Ronaldo, que costumam vender um país sem crise de saúde, sem educação precária, sem necessidade de protestos, um “país maravilhoso” e inigualável. Um país de mentira para um evento artificial. Sem contar na situação de exceção na qual o estado brasileiro mergulhará em tempos de uma FIFA mandar até mesmo soberana por cima da CF 88, carta magna brasileira. Assim o discurso de “Brasil ame-ou ou deixe-o” paira no ar não como um fantasma do passado, mas como uma imagem do presente, já que o Brasil não se livra desse maniqueísmo de tudo (midiático e político) que escraviza a tudo e a todos.

4- Desvia-se vultuosamente recursos públicos e se diz que se deixará o legado. A palavra “legado” virou modé desde que gastos estratosféricos passaram a ser cobrados. Qualquer evento que se preze enquanto grande evento deve incluir em seu plano de ação exatamente esse fastioso legado. Um legado estranho e injustificável para um estádio monstruoso em plena Floresta Amazônica que, a qualquer momento, também deixará de existir. Sabe-se lá que tipo de legado se terá com um evento que tende ao fracasso social. Mas quantas pessoas já perderam suas casas, suas vidas, seus cantos por conta dessa necessidade biltre de se conseguir espaço para gastar dinheiro e acumular dinheiro sem se prestar contas pela pessoa. Eis aí os quatro passos fundamentais da higienização.

Para que pessoas pobres e miseráveis morando em barracos ou comunidades carentes? O que não é coberto por projetos assistencialistas e as pessoas que não podem ser submetidas a uma mutação social, uma solução trágica: perder tudo até mesmo o direito a um pedaço de chão. A higienização esteve nos estádios da Copa das Confederações quando se viu a cor das arquibancadas bem nítida e bem clara. Assim, amiga e amigo, a solução é simples: ou se joga o povo fora (ou se esconde ele debaixo do tapete) ou se faz uma tomada séria de consciência e se nega ter eventos enquanto a casa não estiver devidamente arrumada. Difícil pensar que se escolha a segunda alternativa. Até lá vamos ver eventos e mais eventos se repetirem e repetirem ao mundo todo a farsa que esse país: gigante anestesiado que sofreu alguns espasmos, porém não se recuperou totalmente. Assim é que se faz algo aqui nesse país. Recentemente o Papa Francisco esteve aqui e viu um país totalmente diferente na Jornada da Juventude. Um país cheio de valores e sorrisos, sem qualquer alusão ao sofrimento diário das pessoas. Um país de fantasia. Fabuloso e inexpressivo. Esse é o mesmo país que teremos: sem violência, sem machismo, sem transfobia e homofobia, sem preconceito e ainda alegre, festeiro e unido. Esse país rústico e ideal é fruto de uma forma de se jogar no lixo quem deveria estar livre da sujeira, mas que se transforma em massa de manobra, saindo sempre que se apresente o contingente como regra. Ê Brasil!

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