Uma leitora me escreve informando que o marido de uma amiga a espanca, com triste frequência, principalmente quando ela chega tarde de algum evento social ou do trabalho e calha dele estar bêbado. Apesar dos insistentes pedidos da leitora e das intermináveis conversas, ele nunca foi denunciado porque a amiga pondera que, apesar de violento, isso seria sinal de que tem ciúmes e se importa. O casal tem boa condição financeira e não possui filhos – para afastar possíveis justificativas injustificadas.
A leitora me pergunta: é possível denunciá-lo mesmo assim?
Mas é claro! Não só você pode, como deve.
Já tratei disso aqui antes, então vale retomar. Um dos provérbios populares recorrentes que mais me irritam é “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Pois, por trás do que parece um conselho para que a comunidade deixe o casal resolver seus problemas através do diálogo e se respeite a privacidade, está embutido o fechar o olho para outras coisas. Uma vez que não se sabe quem começou ou de quem é a culpa por um problema, o “correto” tem sido se calar. Pelo menos, essa é a recomendação do dito popular.
Como se existisse qualquer razão que justificasse uma agressão física. E como se a coletividade não tivesse responsabilidade pela garantia da dignidade de todos os seus membros – dignidade que é a razão que nos une como seres humanos, pois todos nascemos – pelos menos, em teoria – com direito a ela.
Muitas vezes, não se escutam gritos de socorro ou pedidos de ajuda. Ou eles são retirados após o calor do momento por medo do presente ou do futuro. Ou por saudade do passado, que sustenta a esperança.
Ou por uma miríade de outros motivos que não foram suficientemente fortes para impedir que o Supremo Tribunal Federal decidisse que um agressor pode ser processado por violência doméstica mesmo que a vítima não apresente queixa ou a retire. Por dez votos a um, a Corte seguiu o voto do relator Marco Aurélio Mello, liberando o Ministério Público para ajuizar ações sobre esses casos em 2012.
Em 1983, o ex-marido de Maria da Penha – o covarde Marco Antônio Herredia Viveiros – atirou nas costas da esposa e depois tentou eletrocutá-la. Não conseguiu matá-la, mas a deixou paraplégica. Muitos anos de impunidade depois, ele pegou seis anos de prisão, mas ficou pouco tempo atrás das grades.
A busca por justiça tornou-a símbolo da luta contra a violência doméstica. Em agosto de 2006, foi sancionada a lei 11.340, a Lei Maria da Penha, para ajudar no combate à violência doméstica. O STF confirmou a validade da lei em votação que antecedeu a decisão de tornar desnecessária a denúncia da agredida.
A confirmação foi importante. Ainda há juízes, promotores e policiais que cismam em não aplicá-la, arquivando casos e deixando a justiça naufragar em nossa sociedade patriarcal e machista.
Maria da Penha recebeu R$ 60 mil do governo do Ceará devido a uma condenação de 2001 da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Não alivia o que teve que enfrentar, mas faz com que a responsabilização do Estado fique cada vez mais clara. O Brasil se omitiu diante dela, como se omite diante de milhares de mulheres que, agredidas diariamente em silêncio, inventam quedas da escada para justificar olhos roxos ou usam roupas compridas para esconder hematomas.
Em uma sociedade que diz que um “tapinha não dói” (que vergonha alheia quando ouço alguém cantarolando isso…), a decisão do STF é uma lufada de ar fresco.
Deve ter deixado muitos “homens e mulheres de bem, seguidores das tradições e dos bons costumes” irritadíssimos com uma suposta “interferência do Estado na vida privada”.
Afinal de contas, quem esses ministros pensam que são? Eu bato na minha mulher/filha/mãe/irmã na hora que quiser, com o objeto que quiser, aonde eu quiser!
Ainda bem que as decisões do STF sobre a interpretação da Constituição Federal visando à garantia de direitos não são tomadas com base em pesquisas de opinião ou para onde sopra a opinião pública em determinado momento. Uma democracia verdadeira passa pelo respeito às minorias, garantindo sua dignidade mediante a uma maioria que pode ser avassaladoramente violenta.
Então denuncie, sim, sem medo. Pois não é apenas a vida da sua amiga que você está preservando. Mas também a dignidade de milhares de outras mulheres que apanham, ficam cegas, tornam-se cadeirantes ou morrem diariamente em todo o país.