Nota Pública – Repúdio aos programas policiais: nossa dor não é espetáculo

Na tarde do dia 7 de janeiro de 2014, o programa policial Cidade 190, da emissora TV Cidade, afiliada da Rede Record no Ceará, exibiu uma reportagem de mais de 17 minutos com cenas de estupro de uma criança de nove anos. O flagrante, feito através de uma gravação por uma câmera dos pais, foi veiculado pela emissora local repetidas vezes durante a matéria, enquanto a repórter entrevistava a família. Durante a transmissão do crime cometido por um vizinho, o telespectador pode ver os rostos, corpos e toda a cena de violência, apenas a imagem dos genitais do agressor e da criança fica embaçada. A criança pode ser identificada por aparecer de corpo inteiro, pela exposição dos familiares, do nome da rua, bairro e número da casa da vítima.

O vídeo do caso teve grande repercussão nas redes sociais e no site oficial da emissora chegando a ter 30 mil visualizações até as 17h desta do dia 08 de janeiro de 2014. Somente foram retiradas do ar as cenas de sexo explícito, por solicitação à coordenação de jornalismo da TV Cidade. As demais cenas com os familiares e o agressor permaneceram e, ainda, ensejaram a produção de novas reportagens, inclusive uma em que expõem o diálogo prévio entre o agressor e a criança, sem a preservação da imagem ou distorção da voz.

Mesmo após ser informada que a veiculação das imagens em questão configurava crime, a emissora voltou a veicular o caso na tarde do dia 08 de janeiro de 2014, bem como outros programas policiais também o fizeram, como o Rota 22, da TV Diário.

Não se trata, contudo, de um caso isolado. Desde 1990, quando o primeiro programa policial produzido no Ceará foi ao ar, assistimos, diariamente, violações de direitos de toda ordem: apelo à violência, criminalização da pobreza, exposição e ridicularização de vítimas e agressores. Até onde pode chegar o abuso e a irresponsabilidade ‘jornalística’ de um canal de TV através de seus programas policiais?

O vídeo do estupro em questão retrata agressões aos direitos da criança em diversos aspectos, desrespeitando a legislação infantojuvenil e as normas em vigor para a radiodifusão. Mostra-se reiteradamente o ato sexual entre o homem e a criança, caracterizando o crime previsto no artigo 217-A do Código Penal, Estupro de Vulnerável. Ao mesmo tempo, viola-se o Art. 241-A do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que estabelece como crime “oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”, com pena de 3 a 6 anos de reclusão. A Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso X, prevê ainda a proteção à imagem, afirmando que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, não sendo possível, deste modo, a exibição da criança ainda que mediante autorização de seus pais ou responsáveis.

Destacamos ainda que o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), Lei nº 4.117/62, determina: “os serviços de informação, divertimento, propaganda e publicidade das empresas de radiodifusão estão subordinados às finalidades educativas e culturais inerentes à radiodifusão, visando aos superiores interesses do País” (Art.38, d); e “a liberdade de radiodifusão não exclui a punição dos que praticarem abusos no seu exercício” (Art. 52).

Vale lembrar que o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros afirma, em diferentes artigos, a responsabilidade social dos meios de comunicação: são deveres do jornalista “defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos” (Art. 6º, I), “respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão” (Art. 6º, VIII); e “defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, adolescentes, mulheres, idosos, negros e minorias” (Art. 6º, XI). O inciso III do Art. 2º, diz que a “liberdade de imprensa, direito e pressuposto do exercício do jornalismo, implica compromisso com a responsabilidade social inerente à profissão”. Diz ainda que o jornalista não pode “expor pessoas ameaçadas, exploradas ou sob risco de vida, sendo vedada a sua identificação, mesmo que parcial, pela voz, traços físicos, indicação de locais de trabalho ou residência, ou quaisquer outros sinais” nem “usar o jornalismo para incitar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime” (Art. 7º, IV e V). No inciso II do Art. 11, o Código afirma que o jornalista não pode divulgar informações “de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes”.

Apesar do caso em questão ser emblemático, a violação de direitos de crianças e adolescentes em programas policiais não é prerrogativa exclusiva da TV Cidade; trata-se de uma prática comum a todos os programas policiais. Esta emissora já foi alvo de uma Ação Civil Pública em 2003 proposta pelo Ministério Público Federal por violação aos direitos humanos, a qual envolveu outras emissoras (TV Diário e TV Jangadeiro). A decisão da ação determina que “os programas de cunho jornalístico-policial vêm desrespeitando vários dispositivos do artigo 5º da Constituição Federal, como o direito à honra e à imagem das pessoas, bem como aviltando a dignidade da pessoa humana”, ACP n° 2003.81.00.031437-4).

Os programas policiais utilizam-se do grande poder da mídia para moldar e formar opiniões. Incita-se, a todo momento, à violência e à intolerância, seja pela incitação da população a fazer “justiça com as próprias mãos”, seja pela polícia ao estimular a tortura. Ancoradas na ‘liberdade de imprensa’ as emissoras distorcem as finalidades pedagógicas e recreativas da concessão pública de radiodifusão e violam direitos em nome da audiência. Esta realidade precisa mudar.

Portanto exigimos:

– Responsabilização imediata da emissora TV Cidade (Cidade 190) e de seu corpo editorial pela transmissão do vídeo que expõe criança em cena de violência sexual;

– Retirada imediata de circulação da reportagem e de vídeos que identifiquem a criança e sua família;

– Atuação dos Ministério Público Estadual e Federal de modo a garantir que os programas policiais veiculados no Estado do Ceará respeitem a legislação protetiva de crianças e adolescentes, responsabilizando-os por quaisquer violações de direitos;

– Adoção pelo Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação, vinculado a Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça (DEJUS/SNJ), conforme portaria 1220/2007 no Ministério da Justiça, de procedimento de classificação indicativa para os programas policiais no Ceará tendo em vista que tais programas não se enquadram como jornalísticos ou noticiosos, pois recorrentemente violam o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, como o inciso II do Art. 11, que afirma que o jornalista não pode divulgar informações “de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes”, ou ainda no inciso III do Art. 2º, no qual a “liberdade de imprensa, direito e pressuposto do exercício do jornalismo, implica compromisso com a responsabilidade social inerente à profissão”.

– Cumprimento por parte de todas as emissoras que veiculam programas policiais das normas legais previstas aos concessionários de serviços de radiodifusão, como as previstas no capítulo V da Constituição Federal, da Comunicação Social, notadamente a determinação que as liberdades de expressão e de informação respeitem outros direitos fundamentais previstos, como o direito à privacidade e à intimidade dos indivíduos; além das normas do Decreto Presidencial 52.795/63, que regulamenta os serviços de radiodifusão, proibindo as concessionárias de “transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico” (Art.28, item 12).

Subscrevem* essa nota (em ordem alfabética):

  • Agência da Boa Notícia
  • ANDI – Comunicação e Direitos
  • ANDES Regional NE 1
  • Articulação Psicanalistas e Psicólogos Iara Iavelberg (ARPIA)
  • Associação Barraca da Amizade
  • Associação Estação da Luz
  • Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e Adolescente (ANCED)
  • Campo de Juventude Nacional Rompendo Amarras
  • Cáritas Arquidiocesana de Fortaleza
  • Cáritas Brasileira Regional Ceará
  • Centro Acadêmico Livre de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (CALSS)
  • Centro de Assessoria Jurídica Universitária da UFC (CAJU)
  • Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos da Arquidiocese de Fortaleza
  • Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA Ceará)
  • Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Interlagos (CEDECA Interlagos)
  • Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Maria dos Anjos (CDCA-RO)
  • Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Zumbi dos Palmares (CEDECA Alagoas)
  • Coletivo Nacional de Juventude Negra (ENEGRECER)
  • Comitê Nacional de Enfrentamento a Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes
  • Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal do Ceará
  • ECPAT Brasil
  • Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social – ENECOS (Coletivo Ceará)
  • Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA)
  • Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ)
  • Fórum Cearense de Mulheres
  • Fórum Permanente das ONGs de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ceará (Fórum DCA)
  • Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
  • Laboratório de Direitos Humanos Cidadania e Ética da Universidade Estadual do Ceará (Labvida)
  • Levante Popular da Juventude
  • Mandato Cidade em Movimento – Vereadora Toinha Rocha (PSOL)
  • Mandato Ecos da Cidade – Vereador João Alfredo (PSOL)
  • Marcha Mundial das Mulheres
  • Movimento Mulheres em Luta
  • NIGÉRIA Comunicação e Audiovisual
  • Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisa sobre a Criança (NUCEPEC)
  • ONG Fábrica de Imagens – ações educativas em cidadania e gênero
  • ONG Instituto Janus
  • Partido Socialismo e Liberdade Ceará (PSOL Ceará)
  • Pastoral do Menor
  • Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares
  • Serviço de Assessoria Jurídica Universitária Popular da UNIFOR Ceará (SAJU)
  • Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado do Ceará (Sindjorce)
  • Terre des Hommes Lausanne no Brasil
  • União dos Grafiteiros

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