Vem sendo divulgado por vários meios, sem identificação da fonte responsável, um texto referido como projeto de portaria em vias de publicação pelo Ministério da Justiça. Esse texto reproduz, com maior amplitude, evidentes e graves inconstitucionalidades que figuravam em outro texto, divulgado em 2013, que seria minuta de portaria a ser editada pela ministra da Casa Civil. Foram tantas e tão bem fundamentadas as manifestações contrárias àquele projeto, apontando, inclusive, inconstitucionalidades e ilegalidades nele constantes, que tal ameaça foi abandonada, sem que, no entanto, seus autores abandonassem a má ideia.
Com efeito, agora vem sendo renovada a ameaça, com a divulgação de um texto que, obviamente, foi elaborado pelos mesmos autores daquele anteriormente atribuído ao Ministério das Cidades. Tentando superar uma das objeções, que era a falta de competência daquele ministério, o que se anuncia agora é que as gravíssimas agressões aos direitos constitucionais dos índios e das comunidades indígenas serão impostas por meio de uma portaria do Ministério da Justiça. O novo texto, agora divulgado, contém vários absurdos jurídicos, afrontando a Constituição e a legislação vigente, o que, obviamente, não tem qualquer valor jurídico quando figurando numa portaria. Nesse novo texto foram usados vários artifícios para simular o enquadramento jurídico de supostas interferências nos procedimentos de demarcação das terras indígenas, querendo dar a aparência de legalidade de tais interferências. A par disso, esse novo texto gera um emaranhado burocrático, prevendo tantas e tais interferências nos procedimentos de demarcação que cada um deles levará muitos anos para ser concluído, consumindo grande parte dos recursos disponíveis para as demarcações, já muito atrasadas por falta de recursos e de boa vontade.
Um dos absurdos jurídicos contidos no texto de suposta portaria, agora atribuída ao Ministério da Justiça, é um dispositivo segundo o qual o processo de demarcação poderá ser iniciado atendendo a pedido deinteressados. Isso deixa mais do que evidente a intenção de dar aparência de legitimidade aos invasores de terras indígenas. Eles poderão formalizar um pedido de demarcação, simulando a vontade de garantir a proteção da ocupação indígena, mas tendo por real objetivo legitimar a ocupação da parte da área indígena por eles ocupada ilegalmente. Dirão ter interesse legítimo na demarcação, alegando serem proprietários ou ocupantes legítimos da área pretendida pelos índios ou de parte dela.
Na realidade, esse pedido não tem cabimento, pois, além de estabelecer que são nulos e não produzem efeitos jurídicos os atos que tenham por objeto a ocupação de áreas indígenas, a Constituição é clara e expressa quando, no artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que «a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição», o que, como se sabe, ocorreu em 5 de outubro de 1988. A União tem a obrigação constitucional de dar início às demarcações, sem necessidade de qualquer pedido, sendo oportuno observar que, com base nos dados constantes dos registros da Funai e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), verificou-se que no ano de 2013, ou seja, vinte e cinco anos depois de promulgada a Constituição, tinham sido identificadas 1.046 terras indígenas, das quais apenas 363 estavam demarcadas.
Ainda como sinal evidente da má-fé que esteve presente na elaboração da suposta portaria do Ministério da Justiça, no texto divulgado está dito que quando a Funai tomar conhecimento de fundada notícia ou de indícios de terra tradicionalmente ocupada por povos indígenas, seu presidente constituirá um grupo técnico para elaboração de estudos de identificação e delimitação da terra indígena. E mais adiante a má-fé se torna gritante quando se diz, textualmente, que do grupo técnico fará parte, obrigatoriamente, «um profissional com formação superior ou técnica de nível médio na área agronômica ou fundiária». Aí está, escancarada, a porta para a participação obrigatória do agronegócio nos procedimentos de demarcação, pois, evidentemente, a Funai não tem em seus quadros, por não haver necessidade, profissionais com tal qualificação. E o texto da suposta portaria diz que, se isso ocorrer, ou seja, a inexistência de funcionários com tal qualificação, poderão ser contratados profissionais especializados.
Não é preciso dizer mais. A denúncia do absurdo jurídico de atribuir ao Ministério da Casa Civil a competência para expedir portaria regulamentando o procedimento de demarcação de terras indígenas levou à reelaboração do texto pretendido, transferindo para o Ministério da Justiça a responsabilidade pela expedição de uma absurda portaria, que, entre outras coisas, terá como pressuposto o desconhecimento dos registros minuciosos, da Funai, do Cimi e de outras entidades, das terras tradicionalmente ocupadas por grupos indígenas existentes no território brasileiro. É necessário e urgente denunciar e divulgar amplamente essa nova tentativa, inclusive e sobretudo para alertar o ministro da Justiça, José Eduardo Martins Cardoso, que tem uma história de procedimento rigorosamente ético e de real compromisso com o direito e a justiça. Uma portaria como a que vem sendo apregoada transformaria o Ministério da Justiça em verdadeiro e desprezível Ministério da Injustiça, afrontando gravemente o dispositivo constitucional que define o Brasil como Estado Democrático de Direito.
*Dalmo de Abreu Dallari é jurista.