Hipótese de assassinato de líder indígena alimentou conflito étnico na região. Família de tenharim morto diz, contudo, que não acredita em homicídio porque viu que ‘ele caiu da moto’
Por Fabiano Maisonnave, enviando especial à T.I. Tenharim, na Folha
Acostumada ao ritmo lento da vida amazônica, a índia Telma Tenharim, 45, no intervalo de um mês, perdeu o marido, foi obrigada a se refugiar no quartel de Humaitá por seis dias para não ser linchada, teve a aldeia atacada por vândalos e agora vê parentes e amigos serem tratados como suspeitos de assassinato.
“Só queríamos viver o luto familiar em paz”, disse, com lágrimas nos olhos, Gilvan, 24, filho de Telma e do cacique Ivan, 55, encontrado desacordado ao lado da sua moto no dia 2 de junho, na rodovia Transamazônica, a 20 km de sua aldeia, Kampinhu’hu, com 65 moradores.
A região, a 130 km de Humaitá (AM), está no centro das buscas da Polícia Federal por três homens desaparecidos desde 16 de dezembro. A PF anunciou ontem ter encontrado peças queimadas de um veículo Volkswagen. O material será avaliado por peritos para verificar se pertence ao Gol no qual viajavam os três homens desaparecidos.
Levado a Porto Velho (RO), distante cerca de 330 km, o cacique não resistiu e morreu no dia seguinte. No atestado de óbito, consta que a causa foi traumatismo craniano provocado por acidente.
“Em nenhum momento a gente falou que o meu pai foi assassinado. A gente não protestou nem chegou a acusar ninguém”, disse Gilvan. Ele explicou que, por questões culturais, a família não autorizou a autópsia completa.
Mas a reação do coordenador regional da Funai (Fundação Nacional do Índio), Ivã Bocchini, foi diferente. Em texto publicado no blog oficial do órgão dias após a morte, ele levantou a hipótese de assassinato.
Para o filho do cacique, houve uma “precipitação” da Funai. “A gente viu que ele caiu da moto.”
Contatado, Bocchini desligou o telefone após a reportagem se identificar. O texto foi apagado do blog da Funai.
A afirmação de Bocchini teria passado despercebida, mas o sumiço de três homens da região que viajavam juntos nesse trecho da Transamazônica, no último dia 16, fez os moradores de Humaitá relacionarem os dois casos.
Logo surgiu a versão de que o funcionário da Eletrobras Aldeney Salvador, o representante comercial Luciano Ferreira e o professor Stef de Souza foram mortos pelos índios por retaliação.
Ecoando boatos, um jornal local, “A Crítica de Humaitá”, afirmou que os três morreram porque um pajé tenharim teria sonhado que um carro preto –a mesma cor do veículo no qual viajavam os três homens também desaparecidos– atropelou o cacique, provocando sua morte.
Os cerca de 900 tenharim, no entanto, não têm pajés. A maioria é evangélica –e torcedora do Corinthians e do Flamengo. Moram em casas de madeira com eletricidade. Quase todas as famílias são bilíngues, têm TV e moto, e duas aldeias estão conectadas à internet.
ATAQUES
Na véspera do Natal, a falta de notícias sobre os desaparecidos levou parentes e amigos a bloquearem a balsa sobre o rio Madeira que liga Humaitá à Transamazônica, impedindo o regresso de indígenas que estudam na cidade ou que vão até lá para fazer compras. Orientados pela Funai, 115 se refugiaram no quartel do Exército. Telma Tenharim era um deles.
“Eu só soube [do desaparecimento] quando começaram a se manifestar na cidade”, afirmou Telma, uma mulher miúda com poucos traços indígenas –seu pai era o filho do primeiro branco que teria entrado em contato com os tenharim, nos anos 1940.
No dia seguinte, em pleno Natal, centenas de moradores atacaram as instalações da Funai e da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena).
A fúria continuou no dia seguinte. Acompanhada pela PM, uma caravana de moradores do vilarejo Santo Antônio do Matupi, a 180 km de Humaitá, saiu pela Transamazônica destruindo cerca de 10 pedágios indígenas que funcionavam de forma rotativa.
A cobrança, que varia de R$ 15 a R$ 120, gera atrito com os moradores desde a sua implantação, em 2006. Nos tribunais, as decisões têm sido favoráveis aos índios.
Na aldeia Vilanova, o cacique Domingo Tenharim, 54, disse que os PMs roubaram R$ 540 arrecadados no pedágio e levaram duas espingardas de caça calibre 28. A PM diz que agiu apenas para evitar confrontos.
Na quinta-feira, quando a Folha esteve na aldeia, os caciques se reuniram com um advogado. Decidiram não dar mais depoimentos aos policiais por causa do tratamento ríspido e retomar a cobrança do pedágio a partir de fevereiro. Eles negam participação no sumiço de Aldeney Salvador, Luciano Ferreira e Stef de Souza.
Nas cinco aldeias visitadas pela Folha, as lideranças afirmam que comida e medicamentos estão acabando porque não podem ir à cidade, por falta de segurança. A Funai, que teve todos os 11 veículos de Humaitá incendiados por manifestantes, não vem dando nenhum tipo de assistência.
Anteontem, o Ministério Público Federal recomendou o envio de mantimentos aos índios da região, onde vivem outras três etnias, não envolvidas diretamente no conflito, mas igualmente afetadas.
“Estamos sendo tratados como bandidos, mas somos seres humanos, temos raciocínio”, afirma o cacique Domiceno Tenharim, da aldeia Taboca, principal foco da investigação da polícia.
(*) – Título da matéria modificado por Combate Racismo Ambiental.