Xingu SA: Quem viver, verá

Antônio Claret*

Ouvem-se muitas histórias de regiões inteiras do mundo atrasadas por falta de recurso financeiro. Cria-se uma série de programas sociais, supostamente para a classe rica ajudar a classe pobre. É antiga a questão mundial entre o Norte e o Sul. E sempre se apresenta o dinheiro como a solução definitiva de todos os problemas, ainda que, por trás dele, haja intenções inconfessas.

Mas é interessante! Aqui na Amazônia, há situações em que ocorre o contrário. Indígenas estão sendo estraçalhados por ‘excesso’ de dinheiro. As fontes podem secar ou não da noite para o dia a bel prazer da Norte Energia, colocada como a dona de Belo Monte, e do governo. Os nativos não têm o controle dos cifrões. E uma cidade inteira está em agonia, impactada pelo volume financeiro de Belo Monte advindo da mercantilização do Xingu.

Esse é um elemento curioso! Já não é mais suficiente dizer que o erro está no fato de nossa riqueza ir embora em forma de remessas ao capital imperialista, materializado em transnacionais privadas ou estatais: Eletrobrás, Eletronorte, Chesf, Neoenergia, Vale, Cemig, os gigantes donos de Belo Monte. Pois os vinténs que ficam, controlados por uma estrutura política totalmente viciada, não se traduzem em políticas públicos a benefício do povo e da classe trabalhadora.

Essa estrutura de organização capitalista de sociedade, cujo motor é a exploração, gera pessoas-monstros miseravelmente ricas; são tão pobres, mas tão pobres de valores humanitários, que fazem tudo pelo dinheiro, e se comportam como macaco em casa de louça (sem querer ofendê-lo), quebrando tudo pela força bruta do poder.

Vitória do Xingu, município-sede de Belo Monte, é um caso típico, e virou um canteiro de obras! A cidade, que tem cerca de sete mil habitantes e um ISS – Imposto Sobre Serviços – próximo de dez milhões/mês, está com as ruas, todas, reviradas. A poeira toma conta nesse verão. Mesmo que se jogue água, tudo seca rapidamente com o calor intenso, trazendo complicações respiratórias, em especial para idosos e crianças. E não é fácil encontrar uma ficha para consulta médica.

Antes o sofrimento em Vitória fora o inverno. O lamaçal se agravara com a remoção do calçamento das ruas – ainda bom -, e da terra arenosa para colocação de argila, própria para receber o asfalto, que não veio até hoje. A promessa é de asfaltamento de toda a cidade. Por enquanto tudo são buracos e terra nua.

Uma conhecida nossa, que se mudara de São Paulo para Vitória, em março de 2013, contara o ‘seu’ caso, ao mesmo tempo exótico e dramático. Ela passava pela rua, desviando-se aqui e ali de um buraco, de uma lama; ia ao bairro Santa Clara, onde sua casa estava em construção. De repente, desequilibrara-se, ficara atolada no meio da rua, até o joelho. Jamais pensara que ali fosse assim tão fundo.

O jeito fora pedir socorro. Um senhor, que passava numa trilha firme, na rua próxima, ouviu os seus gritos. Ele ia de bicicleta. Ficara em dúvida, seguira adiante, mas logo resolvera voltar, vendo-a naquele estado lastimável. Tirara, então, o sapato, que estava limpinho, e se metera na lama, arrastando a mulher do atoleiro.

A parte central da cidade tem verdadeiras crateras. Estão furando tudo, e colocando manilhas enormes para rede pluvial. A rede de abastecimento de água, também em construção, foi testada, os canos não suportaram a pressão e se romperam, e os serviços agora estão parados. Os canos de rede de esgoto são mais finos, e há dúvida se suportarão. Não se sabe, também, se o esgoto será tratado, conforme promessa, ou apenas lançado ‘in natura’ no rio. O sal dos dejetos humanos corrói as turbinas da barragem, e lhe diminui a vida útil, mas Vitória está abaixo do muro de Belo Monte e, isso, deixa os construtores da barragem numa posição tranqüila.

O barulho das máquinas pesadas é ensurdecedor. Bem à frente da casa onde Pedro, também conhecido, esteve hospedado, uma retro-escavadeira na rua fura um rasgão. Ele disse que foi obrigado a passar da sala para a cozinha, nos fundos. Não resolveu! Ao barulho, juntam-se as batidas fortes no chão seco, fazendo o computador tremer em cima da mesa. Pior, disse, foi o rolo logo após, compactando; o vidro da janela tremia todo, parecia que a casa viria a baixo.

A intensidade da ‘zuada’ constante dói os miolos. Quando a máquina dá ré, solta apitos finos e estridentes. A retro-escavadeira, com aquela munheca grande, e forte, fuça o chão, dando aqueles arrancos, com seus pés fincados em área firme e, enchendo a pá de terra, despeja tudo de uma só vez na caçamba do caminhão, cujo impacto provoca uma espécie de estrondo. A poeira sobe e espalha-se, alta e densa, encobrindo a visão.

Nas ruas vicinais, todas mexidas e remexidas, além da poeira no verão ou da lama no inverso, o compactador, um grande rolo que passa algumas dezenas de vezes no mesmo local, vem causando rachaduras nas casas. Marinalva conta que já se pode enfiar o dedo nos buracos da parede de sua morada.

Funcionários da empresa terceirizada da Norte Energia fotografaram tudo antes do início das intervenções, há mais de um ano, supostamente para comprobação de possíveis danos, e reparos ou indenização. Mas agora, quando alguém reclama, eles apenas dizem que foi a outra empresa. Algumas famílias, já impacientes, estão consertando por conta própria.

Uma jovem questionara a razão pela qual a intervenção está sendo feita na cidade toda ao mesmo tempo. ‘Não seria melhor terminar um bairro, e, depois, começar  outro’? Mas a empresa, entre o desdém e a displicência, apenas disse: ‘fizemos assim em outra cidade, mexendo em tudo de uma só vez, e deu certo’. A jovem ficara em silêncio. Muitos se calam por completo, pois percebem o descaso! Por dentro, porém, ela se contorcia.

Parece, de fato, não haver um planejamento do ponto de vista técnico. Na barragem é tudo calculado, tim-tim por tim-tim, a tempo e a hora, e, ali, é como um experimento. Vitória é cobaia! Muitos serviços feitos, e desfeitos com as chuvas do inverno, já foram refeitos mais de uma vez. Muita terra foi carreada para o igarapé Facão, um crime ambiental. Existem áreas de lazer, umas muito próximas a outras, com equipamentos exóticos que, provavelmente, jamais serão usados por gente do povo.

A empresa parece não se importar com isso. É preciso entender a sua lógica. Por um lado ela faz a obra apressadamente, pois, assim, terá mais dinheiro em menos tempo. Ainda mais que ela tem frentes de serviço em diversas regiões do Brasil.  Por outro lado, refazer serviço – o que seria um desperdício – e demorar com a obra – o que seria prolongar o transtorno – não é problema para a empresa; ao contrário, é até uma forma de mostrar um grande volume de trabalho e justificar a dinheirama gasta. Quanto às notas, frias ou quentes, é só uma questão de formalidade.

Diversos outros problemas vão aparecendo junto desse caos chamado progresso. Uma cidade antes pacata já não consegue ter paz. Duzentos reais que Clotilde levara na carteira para possíveis gastos em sua estadia em Vitória, e sua viagem de volta a Altamira, escafederam-se. Suas colegas desconfiam de um rapaz; elas deram razão de sobra para a desconfiança, mas não têm uma prova material. O fato é que as famílias já não têm mais o sossego de outrora, dormindo com janela e porta abertas. Quando saem, trancam tudo.

Cada espaço público já construído ou em construção na cidade tem três vigias, que revezam. Somam, ao todo, cerca de 200 vigias contratados numa cidade tão pequena. Chico pensa que o Prefeito se aproveita desse clima de insegurança para garantir emprego, cumprindo, assim, uma de suas promessas de campanha. E perpetuando-se no poder.

Lena, que alimenta um verdadeiro ódio contra a barragem, quase um fanatismo, sofre náuseas quando o dever lhe impõe o uso do tele-centro (público). Somente ali a internet tem sinal bom.

Sua raiva tem um viés familiar: o irmão dela perdeu a vista na barragem. Ele trabalhara lá. Num dia, estava no ônibus, e o pó de brita da estrada lhe penetrara a vista. Como ardia muito, procurara o médico da Norte Energia, que lhe receitara um colírio, e lhe dissera que poderia continuar trabalhando. Isso foi a desgraça dele! Passados quarenta dias, com o olho doendo, resolvera voltar ao médico, que o encaminhara para outro em Altamira e constatara uma úlcera dentro do olho esquerdo. Sua vista estava perdida.

Seu irmão fora afastado do serviço, e recebe uma espécie de pensão da empresa. A solução é o transplante do olho, mas fica muito caro, e a Norte Energia não assume.

O espaço do tele-centro, em Vitória, é todo controlado pela Norte Energia. À frente do prédio está escrito em letras grandes: ‘Balcão de informações – usina hidrelétrica Belo Monte’. A porta fica fechada. Abrindo-a, a pessoa dá de cara com um segurança. Do lado esquerdo, acha-se uma moça com ar de secretária atrás de um computador.  O estômago de Lena revira por dentro cada vez que vai lá. Mas não tem outra opção.

Sempre mais a Norte Energia faz de suas obrigações legais um instrumento de dominação dos gestores públicos – através de uma e outra obra – e das famílias – através do emprego, ainda que precário e temporário.

As autoridades e a Norte Energia fazem gracinha. As festas se multiplicaram. Distribuíram-se Tabletes e Notebooks para estudantes e professores. Cada vereador ganhou uma Hilux, com fornecimento de mil litros de combustível/mês.  A Prefeitura deu um desconto no ISS. Essas mordomias evidenciam que o Município nada em dinheiro, como se tivesse ganho na loteria. Essa dinheirama, porém, não tem significado melhora na qualidade de vida do povo.

A falta de recursos deixa muita gente à míngua no Brasil e no mundo. Altamira, situada no remanso do futuro lago de Belo Monte, reclama, com razão, do não cumprimento de condicionantes, em especial as estruturantes. Vitória do Xingu, ao contrário, tem um ‘excesso’ de recursos, que redunda em obras, mas que não se materializam em benefício real à população.

Aqui há uma verdade escancarada: a evolução de um povo não é uma questão de dinheiro e, muito menos, de obras feitas a deus dará, por formalidade.

A situação das populações ribeirinhas ainda é pior. Boa parte das casas são palafitas, às margens dos igarapés Gelo e Facão, somando quase três centenas de famílias. Corre boato de que serão todas desalojadas para construção de cais. Uma empresa terceirizada passou, cadastrou os moradores, mediu tudo, mas não conversou nem fez reunião com ninguém.

O boato da realocação divide as pessoas, e as deixa inseguras. Algumas ficam seduzidas com o sonho de uma nova casa, e com a cidade linda, rodeada pelo cais. Outras ficam vivamente chateadas, pois gostam da vida ali, ainda que precária.

 O pior de tudo, porém, é a falta de informação. Uma arrogância, de quem pensa que o ‘técnico’ é que entende de obras, e que o povo não tem nada a contribuir. Enquanto tudo é boato, a vida fica parada, não se faz um puxado, não se constrói uma varanda, não se coloca uma pintura nova… O futuro é incerto!

Dona Graça mora à beira do Facão. Enquanto lava a roupa, num sábado de manhã, dentro do igarapé, com água até o joelho, vai contando a sua história. Foi pescadora, hoje já se aposentou por idade. Seu marido ainda exerce a profissão. Ela afirma com ar indignado:

‘A empresa diz que a barragem não interfere na vida do pescador. Ela não reconhece ninguém abaixo do muro. Mas é claro que interfere! O peixe diminuiu! A canoa vinha até aqui – apontando com o dedo. Agora é o que estas vendo. A terra da rua escavada desceu tudo para o rio. O igarapé virou um filete de água’.

Carla, que fora visitá-la, e ouvia a sua história, olhou para um lado, para outro, era mesmo tudo verdade. Perguntou-lhe se poderia tirar uma foto. Carla pensava que era importante registrar o que ela relatava. Aquele filete de água correndo, ela com a bacia cheia de roupa, as marcas da enxurrada da rua e a areia, cobrindo tudo.

‘Pode tirar foto sim! O que falei é tudo provado. O pessoal aqui tomava até banho no igarapé. Agora é só terra. Se a empresa quer construir cais aqui, tem que olhar o nosso lado. Aqui a gente está instalada, tem morada. Sair sem rumo não tem jeito’.

Dona Graça, na sua simplicidade e idade bem avançada, é uma mulher decidida.

Carla tirou a máquina da sacola, bateu a foto, e ainda a ouviu por uns instantes. Depois se despediu, apertando-lhe a mão. Ela abriu um sorriso, e disse:

– Volte depois!

– Vou voltar sim, em meados de outubro.

Enquanto ia passando pela areia, rumo à rua, já olhava o calendário. Pois a organização do povo somente caminha dentro de um processo. No mínimo, pensava Carla, precisamos buscar todas as informações e repassá-las às famílias. Informação também é poder.

Não é que Carla se admirasse do que as pessoas enxergam e sentem em Vitória. Apenas fica indignada, com a confirmação de que o desrespeito aos atingidos não é um caso isolado. Há um padrão de agressão aos direitos humanos, já reconhecido mas ainda não assumido pelo Estado brasileiro.

As mesmas promessas mirabolantes em Altamira também ocorrem ali, em Vitória do Xingu. Mas o certo é que tanto o descumprimento das condicionantes em Altamira quanto o ‘cumprimento’ em Vitória não têm incidido na melhora da qualidade de vida do povo. Pode ser mesmo que Vitória fique linda, como costumam dizer, mas com uma população sem garantia efetiva das políticas públicas elementares. Embelezam-se artificialmente as coisas, mas as pessoas ficam de lado.

Mas essa gente simples, em seus casebres e palafitas, não perde o humor. Com tantos buracos na cidade, estão apelidando o Prefeito de tatu de bigode. Não é fácil consumir 10 milhões/mês. E a questão é que esse dinheiro vai aumentar. Quando da sua operação, a partir do início de 2015 – se a barragem realmente seguir em frente -, a maior parte dos royalties de Belo Monte vai ficar na Prefeitura de Vitória. Não é sem razão que uma vaga no legislativo local, e no executivo, é disputada quase a tapa.

Belo Monte é um crime, cujas obras se iniciaram com uma licença parcial e com uma prepotência arrogante, numa ditadura econômica cacifada com dinheiro público pelo governo federal.

O mau exemplo se espalha como rastilho de pólvora. É de se prever o aumento significativo da corrupção em municípios, como Vitória, onde os gestores públicos terão que inventar formas para gastar todo o dinheiro. E não faltará criatividade! Ainda que as campanhas eleitorais acaloradas e as administrações quentes passem pelas notas frias turbinadas na energia do Xingu SA.

*Missionário da Prelazia do Xingu e militante do MAB

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