Patrick Mariano: Nas praças de Brasília, desprezo pelos Galdino

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Nas praças de Brasília, o desprezo pela vida

por Patrick Mariano*, especial para o Viomundo

O monumento estampado em foto neste artigo, talvez seja hoje, em Brasília, o mais importante de todos os pontos turísticos a ser visitado. O Palácio do Itamaraty com seu jardim de Burle Marx, as estupendas torres do Congresso Nacional e a ponte JK, entre tantas outras obras, belos templos da arquitetura moderna, nenhum deles supera, em relevância atual, este da foto.

Quase esquecido numa praça movimentada, representa o repúdio e a memória da cidade ao trágico e repugnante episódio da morte do índio Galdino, ocorrido na madrugada do dia 20 de abril de 1997, em um ponto de ônibus da 703/704 sul, da via W3 (movimentada avenida comercial da cidade).

Como todos sabem, Galdino dormia enquanto jovens da classe média brasiliense, derramaram gasolina em seus cobertores e atearam fogo. Disseram que queriam fazer uma brincadeira e que imaginavam se tratar de um mendigo.

É bom que se diga, que a capital do Brasil com suas agradáveis entrequadras, ruas largas e avenidas de belo traço urbanístico, já produziu ícones da juventude como a Legião Urbana, Plebe Rude e Capital Inicial, todos num contexto de contestação e de afirmação da juventude, como capaz de revolucionar os costumes e as ideias.

A Universidade de Brasília, projeto educacional fantástico concebido por gênios como Darcy Ribeiro e Roberto Salmeron, foi símbolo da resistência contra a indigência moral e intelectual do conservadorismo no Brasil, personificada, à época, pelo regime ditatorial.

Honestino Guimarães, estudante desaparecido por lutar contra a truculência estulta dos militares é lembrado até hoje pelos jovens idealistas da UNB. Ou seja, embora sendo uma capital jovem, não faltam heróis para cultuar.

No entanto, o monumento que representa a não aceitação dos brasilienses à morte do índio Galdino está abandonado pelo poder público. Pichado, com pintura descascando, representa também o pouco caso, infelizmente, com importante fato histórico. As torres do Congresso sempre estão com a pintura em dia, assim como o acervo do Itamaraty, mas o memorial do índio Galdino padece.

Pobre do povo que não reflete sobre o seu passado. Pobre dos cidadãos cujos governantes, pela inércia, abandonam às intempéries da chuva, seca e poeira, monumentos de reflexão, partes da história de uma sociedade. O risco é que as novas gerações, por não saber o que se passou, insistam nos erros do passado.

“Vou ensinar como se põe fogo em mendigo”

Na madrugada de 1 de agosto deste ano, jovens de classe média da mesma Brasília, numa cidade satélite próxima ao lugar em que o índio foi assassinado, despejaram gasolina sobre o corpo de  Edvan Lima da Silva, 49, e atearam fogo. Edvan faleceu três dias após, em decorrência das queimaduras.

A “razão”, se é que se pode encontrar racionalidade nesta ação, teria sido dada por uma jovem de 17 anos: por ter sofrido tentativa de assalto praticada pelos moradores de rua, resolveu se vingar. Inexiste qualquer registro policial desta ocorrência.

A frase acima foi proferida pelo autor do fato, um jovem de 18 anos.

O desprezo com que é tratada a população em situação de rua nas grandes cidades brasileiras, somado à banalidade da vida e a ausência de valores como alteridade e solidariedade, constituem a marca de uma sociedade doente.

Dados consolidados pelo Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos das Pessoas em Situação de Rua, nos dá a dimensão do problema: em onze meses de 2012, foram registrados 165 assassinatos.[1]

A invisibilidade de alguns seres humanos ocorre em cada semáforo, estacionamento ou praça e é estimulado dia a dia pelo medo incutido pelos grandes meios de comunicação de massa, fruto de uma sociedade injusta, desigual, baseada no consumo e egoísmo desenfreado.

A resistência da sociedade

Acho louvável a atitude da igreja em ajudar os pobres, e a gente colabora sempre que possível, mas aqui ao lado vai atrair pessoas indesejáveis.[2] 

Recentemente, no bairro de Santa Cecília, cidade de São Paulo, moradores se insurgiram contra ação do poder público em construir um Centro Social de acolhimento para as pessoas em situação de rua.

A frase acima, dita por uma das moradoras do bairro, representa bem o distanciamento entre o Brasil que consome e os outros Brasis. E o que é mais preocupante, retrata o preconceito que ainda, infelizmente, se faz presente em alguns setores da sociedade.

A desinformação e o preconceito sobre as pessoas em situação de rua levam, na maior parte dos casos, a ações de esquecimento e anulação do outro, como se a vida dessas pessoas fossem indignas de serem vividas. Seriam então, seres humanos sem direitos. Essa falta de alteridade e solidariedade com a vida humana termina por justificar pensamentos e ações bárbaras que, vez ou outra, assistimos estarrecidos.

Quando se quer melhorar urbanisticamente um bairro é comum usar o termo revitalização. Por ironia, a primeira ação que se faz, para tanto, é retirar para bem longe, a vida daqueles indesejáveis. Quando isto não se faz possível, se pratica violência contra seus corpos. Ou seja, não se revitaliza nada! Apenas se nega a vida em plenitude para estes seres humanos.

Ainda há esperança

Em Montevideo, na última onda de frio polar que atingiu nosso continente, três dias antes da previsão de neve pela meteorologia, autoridades saíram a las calles para atender pessoas em situação de rua. Na TV, o fato era constantemente repetido e o termo era esse mesmo: “pessoas em situação de rua”.

O cuidado com o outro estimulado por autoridades públicas e divulgado em rede nacional de televisão representa o valor da solidariedade e alteridade e, claro, nos chama a atenção.

No próprio Distrito Federal, a Secretária de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda-CEDEST tem feito trabalho importante nesta área. Assim como várias iniciativas em âmbito federal, como o Consultório de Rua.

A Pesquisa “Renovando a Cidadania”, realizada pela Universidade de Brasília, verificou que, das 2.512 pessoas que vivem em situação de rua no DF, 71% dos adultos trabalham para o próprio sustento, sendo que os casos de drogadição são minoria, sendo o maior percentual (23,3%), de pessoas que romperam vínculos familiares. [3] 

No entanto, muito ainda há que ser feito. Infelizmente, estereótipos como mendigo, morador de rua, traficante, criminoso e bandido reforçam a separação entre a sociedade que consome e “paga seus impostos” daqueles que vagam excluídos pelo capitalismo, em busca de uma vida digna e plena.

Talvez, se déssemos mais atenção ao nosso passado, poderíamos evitar tragédias como as que vitimaram e vitimam essas pessoas. Quem sabe, se o monumento acima estivesse mais bem cuidado e melhor localizado, os jovens de hoje refletissem sobre os erros do passado.

Quem sabe desejariam se tornar um Renato Russo ao invés de, covardemente, atear fogo em seres humanos que, inofensivamente, dormem sobre os bancos de praças e pontos de ônibus, em grande parte das cidades brasileiras.

*Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP.

[1] http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-03-15/dados-do-cnddh-mostram-que-165-moradores-de-rua-foram-mortos-no-pais-desde-abril-de-2011

[2] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1289361-centro-social-para-morador-de-rua-provoca-discordia-em-santa-cecilia.shtml

[3] http://noticias.r7.com/distrito-federal/noticias/71-dos-adultos-moradores-de-rua-do-df-trabalham-para-o-proprio-sustento-20121119.html

Enviada para GT Combate ao Racismo Ambiental por Rodrigo de Medeiros Silva.

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