Blog Especial: Gustavo Guerreiro, indigenista da Coordenação de Dourados, fala de Apyka’i e diz que o alvo real de quem tenta denegrir a Funai é enfraquecer a luta indígena

acampamento Apyka'i
Dona Damiana, liderança de Apyka’i, conversa com Gustavo Guerreiro, na frente da sua barraca .

Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental

Gustavo Guerreiro é indigenista especializado na Funai de Dourados. Pude conhecê-lo pessoalmente no início deste mês, quando participei do I Encontro Nacional de Psicologia, Povos Indígenas e Direitos Humanos e, paralelamente, estive presente à reunião da Aty Guasu com o Secretário Geral da Anistia Internacional, Salil Shetty, na Aldeia Jaguapiru. Já havíamos trocado e-mails antes, e desde o incêndio da semana passada venho acompanhando a preocupação, a dedicação e o cuidado com que ele vem buscando soluções para os Guarani Kaiowá de Apyka’i. Ontem, ao descobrir que estava a caminho de lá, decidi fazer com ele uma pequena entrevista por e-mail, ao mesmo tempo que pedia que me enviasse também algumas fotos. Aí vão as respostas de Gustavo Guerreiro, algumas das fotos tiradas no acampamento, e um comentário sempre angustiante: “O que destaco, no entanto, é que há na região sul do estado, contando a jurisdição da Funai de Dourados e de Ponta Porã, mais de 30 acampamentos em situação similar. Apyka’i é apenas mais um desses”.   

1. Diversas informações foram publicadas, inclusive em redes sociais, dizendo que 24 e até 48 horas depois do incêndio a Funai ainda não havia aparecido. Sei que isso não é verdadeiro, mas gostaria que você falasse a respeito…

Não sei no que se basearam para tais alegações. Em qualquer evento que ocorra desta natureza, nas aldeias ou acampamentos, a Funai é o primeiro contato dos indígenas, porque confiam na gente. O incêndio ocorreu no período da tarde. Às 17h entraram em contato conosco. Às 17h30min já havia uma viatura com dois servidores no local, com cestas de alimentos e agasalhos, sendo que no dia 19 (três dias antes do ocorrido) havia sido feita entrega de cestas de alimentos ao acampamento. Por sorte não perderam o alimento. Quem divulgou essas informações nem se deu ao trabalho de verificar os controles de tráfego das viaturas ou os relatórios de entrega de cestas. Está tudo às claras, pra quem quiser ver!

Esse tipo de informação tem um alvo certo e não é a Funai. A crítica é absolutamente necessária, mas quando se tenta denegrir a imagem do órgão com fatos inverídicos, creio que o intuito seja deslegitimar o principal órgão oficial para a defesa e promoção dos direitos dos indígenas, enfraquecendo os próprios indígenas. A Aty Guasu, instância política máxima do movimento Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul reconhece a importância do órgão. Mantém uma relação de independência, confiança e também uma postura crítica à Funai. Não fosse isso, não soltariam essa nota confiando ao órgão o recebimento das doações.

Outra questão é que se atribui erroneamente à Funai o monopólio de todo e qualquer tipo de atendimento aos indígenas. A responsabilidade sobre eles é de toda a rede de atendimento do Estado, seja na esfera federal, estadual e municipal. O indígena é cidadão nacional tanto quanto os demais e tem seus direitos constitucionais garantidos como os demais, além de suas especificidades também garantidas pela Constituição.

Como está determinado no artigo 231 da Constituição Federal, a tutela não existe quando se reconhece aos índios seus direitos à organização social. A atenção ficou relegada somente à FUNAI e à atual SESAI. Conforme a LOAS [Lei Orgânica da Assistência Social] e outras políticas de Estado, como as referentes à educação ou produção de alimentos, outros serviços públicos que não atuam diretamente com os indígenas também têm responsabilidades. Devem atuar, de preferência em articulação com os órgãos indigenistas, como uma rede de serviços de proteção e promoção de direitos.

Ao se atribuir à Funai a ‘tutela’ exclusiva, tenta-se colocar o indígena como um cidadão de segunda classe. Por isso entendemos que, quando se questiona apenas a presença da Funai nos assuntos que afetam os indígenas, não se trata de uma injustiça com o órgão, mas com os próprios indígenas. É preciso que esta pergunta se estenda aos demais órgãos de assistência social e de defesa dos direitos humanos.

Um grupo de indígenas de Apyka'i conversa com o Coordenador da Funai Dourados, Vander Nishijima.
Um grupo de indígenas de Apyka’i conversa com o Coordenador da Funai Dourados, Vander Nishijima, com a mão esquerda erguida. Á direita, o tráfego intenso e perigoso da BR.

2. A Aty Guasu soltou uma nota, já no dia seguinte, pedindo ajuda e solicitando que as doações fossem encaminhadas para a Funai ou entregues diretamente na aldeia. E as pessoas de outros estados, como devem proceder?

Nesse caso específico de Apyka’i, não temos como pegar doações em outros estados. Também não recebemos doações em dinheiro. Mas posso adiantar que algumas pessoas daqui estão fazendo doações. Os estudantes da UFGD estão organizando uma campanha de doação também. A única coisa que podemos oferecer é nosso espaço para armazenar e viaturas para transportar as doações.

3. Nisso tudo, como está dona Damiana, que já perdeu tanto nesta ‘guerra’?

É uma guerreira! Tudo que ela passa (as intimidações dos fazendeiros, a perda dos dois filhos atropelados na rodovia, os incêndios, o frio, o calor e todas as desventuras de se viver na beira da estrada) não são suficientes para que essa senhora, no alto de seu setenta e poucos anos, desista de seu tekoha. Mas como os demais, enfrenta o problema do alcoolismo, que é também um subterfúgio para aguentar as agruras da vida de acampada. Não a culpo; muito pelo contrário. É como a letra daquela música de Bob Marley, um leão em Zion.

Duas barracas novas, para substituir as queimadas.
Duas barracas novas, para substituir as queimadas, foram compradas por Valdelice Veron.

4. Afinal, Gustavo, quais as perspectivas para Apyka’i?

Essa pergunta é complicada. Os acampamentos indígenas são formas atuais de territorialização dos Kaiowá e dos Guarani no processo de recuperação dos territórios tradicionais. São espaços de luta, de sofrimento e de toda forma de privação. É a maneira que encontraram para enfrentar os interesses adversos, pressionar o poder público e enfrentar o avanço histórico do capital sobre suas terras.

A Funai tem atendido as demandas referentes à identificação das terras indígenas e ao atendimento básico, como cestas de alimentos e articulação junto aos demais órgãos públicos. Como já se sabe, as etapas pela qual passam os processos de demarcação de terras indígenas são longas e cheias de obstáculos.

Penso que o atraso na identificação e demarcação é resultado dos conflitos de interesses existentes na política brasileira, pautados por uma noção retrógrada de desenvolvimentismo, onde os índios e suas terras são tratados como empecilho ao crescimento econômico. Em alguns momentos, tais atores defendem que a situação de violência contra o povo Guarani-Kaiowá só será resolvida com ampliação da assistência e não com garantia de terras. Defendem que o direito indígena à terra deve estar subordinado aos interesses dos setores do agronegócio.

É uma guerra político-ideológica com inequívoco reflexo na esfera judicial e legislativa. E o Estado torna-se o palco desse conflito. Exemplo disso é a PEC 215/2000 que propõe que as demarcações de terras sejam autorizadas pelo Congresso Nacional, além das dezenas de outros projetos de lei que, de algum modo, restringem os direitos indígenas. Há também a judicialização dos processos de demarcação de terras. Tudo isso torna essas demandas por demarcações algo impossível de se executar num prazo razoável.

A situação de Apika’y insere-se nessa lógica e exige uma ação momentânea que vá além da espera da identificação da terra tradicional, pelo GT criado em dezembro do ano passado.

Entre as maiores perdas, uma das bicicletas destruídas.
Entre as maiores perdas, uma das bicicletas destruídas.

5. Voltado à situação atual, Gustavo, há outras informações desencontradas. Afinal, qual o número correto de barracos destruídos, quantas pessoas e quantas crianças foram prejudicadas, e como está Apyka’i agora, inclusive em termos de necessidades imediatas?

Do total de dez barracos, três foram consumidos pelas chamas; um não era habitado. Duas famílias (cerca de oito pessoas, sendo três crianças) foram diretamente afetadas. As demais se salvaram graças à ação do Corpo de Bombeiros, que conseguiu impedir que o fogo avançasse para os demais barracos. Das perdas materiais, as mais destacadas por eles são as bicicletas e as panelas. Também precisam de equipamento para cortar madeira e cavar para construir novos barracos.

Algumas doações de cidadãos mais sensibilizados estão chegando ao acampamento. Tive notícias de que um Centro Espírita está arrecadando alguns mantimentos para os indígenas. No momento em que estive por lá, havia chegado um senhor em uma caminhonete com bacias, alguns utensílios domésticos, roupas e um colchão. É tudo recebido com alegria e gratidão pelos indígenas. Aos poucos vão se recuperando.

O que destaco, no entanto, é que há na região sul do estado, contando a jurisdição da Funai de Dourados e de Ponta Porã, mais de 30 acampamentos em situação similar. Apyka’i é apenas mais um desses.

De um lado, a miséria do acampamento precário; do outro, atrás da cerca, as Terras Indígenas invadidas pela monocultura
De um lado, a miséria do acampamento precário; do outro, atrás da cerca, as Terras Indígenas invadidas pela monocultura

Comments (3)

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.