Especial – “Também somos alguém”: algazarras ou lutas por direitos

manifesto-BRPor Igor Vitorino da Silva*, para Combate Racismo Ambiental

Os protestos populares (manifestações, greves, mobilizações estudantis, motins, revoltas, quebra-quebras, saques etc) nascem da insatisfação social com algum dano ou prejuízo. Buscam, geralmente, a restituição, seja material ou simbólica, de alguma coisa que lhes foi retirada ou negada.  Emergem quando os valores, normas e acordos sociais (regras costumeiras ou codificadas) que tecem o cotidiano da vida social são agredidos, quebrados e feridos, gerando indignação e revolta.

Os protestos populares dão visibilidade às tensões e aos conflitos sociais, aos questionamentos e às reivindicações sociopolíticas que tecem a vida social. Eles tornam público os problemas que afetam um dado grupo social, proclamando que a sua solução seja acelerada ou reparada. O sentimento de indignação (injustiça) e de solidariedade, potencializado pelo reconhecimento do abandono, desamparo e desprezo, animam os corações daqueles que engrossam as fileiras das manifestações. Como no protesto jurídico, exige-se um reparo/restituição (ou instituição) de uma “inadimplência e o descumprimento de obrigação” social ou político , como revelou E. P. Thompson nas suas investigações históricas sobre a formação da classe operária inglesa.

Os protestos populares chamam a atenção para a ausência de negociação, para a surdez e a negligência das estruturas de poder frente às demandas populares (morosidade e lentidão).  Assim, o bloqueio de ruas, passeatas, cartazes, ocupação dos espaços do poder, irreverência e comicidade são estratégias e táticas importantes (e polêmicas) para a afirmação da existência social e política das classes populares para fazerem com que suas falas e reivindicações sejam ouvidas e suas demandas reconhecidas e respeitadas.

Quando os protestos populares atingem interesses constituídos ou potentados de poder do cenário social, logo são imediatamente identificados como algazarra, baderna, desordem ou bagunça. São automaticamente categorizados, no quadro da cultura política brasileira (paternalista, autoritária e clientelista) como “falta do que fazer”, “vadiagem” ou “vagabundagem”. Tal compreensão social, quase sempre, articula-se a um discurso pessimista: “para que fazer isso? Nada vai mudar! Coitados, acham que vão mudar alguma coisa”. Na realidade, essa atitude política, cuja estratégia é a neutralização e a desqualificação dos protestos populares, visa desmobilizá-los e deslegitimá-los socialmente, reduzindo sua potencialidade sediciosa.

Nessa retórica política, abriga-se um julgamento moral negativo sobre aqueles que se agregam às fileiras dos protestos populares. Quanto maior for a presença dos desqualificados sociais, pobres e dos extratos sociais subalternos mais facilmente colam-se os estereótipos de desordeiros, insanos, baderneiros e irracionais nos que protestam, dificultando-se o reconhecimento social das demandas solicitadas, geralmente afirmando que são massa de manobra de políticos espertos e interesseiros.

Um certo medo político alimenta tal raciocínio social: o da emergência de um sujeito político coletivo e organizado, que possa imprimir ao debate público outra lógica de ação política. No Brasil, a ligeira possibilidade de uma espécie de coordenação/organização por parte dos grupos subalternos constitui-se num sacrilégio social ou crime social. A ideia de organização aparece como um grande pecado, pois estimula a secessão do corpo social, patrocinando os valores do conflito e da divergência como fundamento da prática política, o que entra em contradição com os valores da unidade e consenso hegemônicos na cultura política brasileira.

Na realidade, há um receio social ao aparecimento de um sujeito político não controlado e dirigido (petulante, indolente e insubordinado), que ocupe o espaço público, pacificamente ou violentamente, sem a tutela e autorização das forças políticas, judiciárias, policiais,  sociais e midiáticas. Os protestos populares aparecem como espécie de poluição que precisa ser isolada e suprimida, o que explica tradicional ação repressiva contra esses ao longo da história política brasileira.

Geralmente, esse pavor social das elites alimenta duas ações importantes no sentido de desmontar os protestos populares. A primeira é identificar os líderes e levantar sua biografia, descobrir algo que descredibilize suas demandas e discursos. A segunda é rastrear alguma ilegalidade cometida por manifestantes, buscando desarticulá-los legalmente, invisibilizando a repressão policial. Assim, realiza-se  um grande inventário de argumentos negativos contra os protestos populares: acusações de ganhos individuais, interesses obscuros, desestabilização social, uso da violência (incivilizados e mal-educados) e  desconhecimento dos motivos dos protestos (rebeldes sem causa). Isso tudo resulta no final numa celebração das elites (políticas, burocráticas e tecnocráticas) como seres mais autorizados para canalizarem as demandas populares.

A acusação de manipulação política é uma das qualificações negativas mais usadas. Ela apoia-se no preconceito social de que povo não é capaz de se organizar ou se manifestar, e quando o faz só pode ser sobre a tutela, o pastoreio ou orientação de um guia iluminado. É o mito da ignorância política e da pacificidade do povo brasileiro.  Os líderes, geralmente, são acusados de radicalismo e extremismo, assim como de poluírem as massas de ideias equivocadas e nefastas. Nesse raciocínio social somente pode-se chegar à conclusão de que não é preciso protestar, pois nada muda, nada se transforma, fortalecendo-se ainda mais a estratégia de neutralização dos protestos e de desvio da atenção ao problema denunciado.

Em relação às formas de realizar os protestos abre-se, também, outro grande debate social sobre a legitimidade e reconhecimento público dos protestos populares. Deseja-se sempre que eles sejam ordeiros e não quebrem as regras instituídas.  O que seria um protesto ordeiro? Seria aquele que não rompe com as normas jurídicas e morais em vigência do ponto de vista das autoridades judiciárias e policiais, mantendo a tranquilidade social?  Mas, como fazer ver e reconhecer suas demandas sem tornarem-se presentes no cenário político, chocando-se com a sociedade  ou rompendo seu cotidiano? Como se fazer ouvir sem atingir algum interesse social?  São questões cujas respostas ganham conteúdos distintos, conforme o lugar social e político daqueles que as respondem.

Submetidos à avaliação do olhar ordeiro, os protestos populares sempre são percebidos como ilegais socialmente, apesar de legítimos politicamente. Numa sociedade ainda marcada por princípios hierarquizantes, cujo lema é “tratar desigualmente os desiguais”, romper as fronteiras sociais significa quebrar a ordem social. Como a lógica social prima por colocar cada um no seu lugar e exigir daqueles que estão na base da hierarquia obediência, deferência e disciplina em troca de favores e proteção (gratidão do senhor), quebrar essa lógica (sair de seu lugar “natural”) é transformar-se num estranho/estrangeiro, é ser considerado um marginal. Daí os donos do poder se questionarem: quem são esses que ocupam as ruas? Serão brasileiros, cidadãos?

Assim, numa sociedade formada por desiguais, não cabe “dialogar” com um desigual, pois significa, principalmente para os superiores, um rebaixamento de sua posição. A ideia é restabelecê-lo em seu lugar e suprimir sua contestação.  Nessa perspectiva social, todos os protestos sociais já emergem como ilegais, justamente porque quebram os valores hierárquicos que ordenam a vida social brasileira, sendo o primeiro o rompimento: agir sem autorização.

Como argumenta o sociólogo Roberto DaMatta, num país em que opera-se “Você sabe com quem está falando”, valendo como princípios sociais  a “lealdade dos amigos e o amor dos parentes” (fidelidade à casa e à família), e que  a defesa do tratamento diferenciado frente às leis impessoais, abstratas e universais (regras democráticas) é contínua, os protestos populares, então, são uma maneira dos excluídos da “sombra do poder pessoal” dizerem o mesmo de  uma forma reativa e explosiva: “Também somos alguém”.

Nesse contexto cultural e político, as vozes adversárias ou dissonantes somente são reconhecidas e legitimadas quando pertencem ao mesmo grupo ou circuito de poder, lembrando a famosa sentença popular “em briga de cachorro grande”, aqueles que entram no espaço público sem a bênção de um grupo político ou sem uma rede de apadrinhamento são consideradas vozes não autorizadas, são reconhecidos como corpo estranho, associados imediatamente a desordeiros, encrenqueiros, marginais e vândalos, justamente por emergirem sem a tutela, sem padrinho, fora do lugar predefinido com deles.

Não se aceita, no Brasil, apesar de toda retórica democrática, como legítimos os atores políticos que “entram em cena” sem credenciais políticas ou autorização “de um senhor”, jogando todos que protestam desautorizadamente para os campos da baderna e algazarra. Seguimos como baderneiros e desordeiros exigindo nosso direito de decidir, participar e engajar-se nos governos de nossas vidas, riquezas e trabalhos. É isso que clamam as massas que ocuparam as ruas do país.

*Historiador e professor de História do Campus Nova Andradina/IFMS.

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