Bom Samaritano (Lc 10,25-37): estudo literário

Por Frei Gilvander Luís Moreira[1] especial para Combate Racismo Ambiental

Para uma interpretação sensata e libertadora do episódio-parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) é preciso, entre vários exercícios, fazer um estudo literário do texto. Eis o que segue.

1 – Estudo literário do texto

O texto de Lc 10,25-37 está organizado em duas partes de tamanhos diferentes com estruturas literárias com várias equivalências, conforme se segue:

1a parte (Lc 10,25-28)            –          2a parte (Lc 10,29-37)

Pergunta do escriba                    –          Pergunta do escriba

Contrapergunta de Jesus            –          Jesus narra um episódio paradigmático

O escriba cita a lei                        –          Contrapergunta de Jesus e Resposta do escriba

Diretiva de Jesus                          –          Diretiva de Jesus.

As palavras “próximo” e “fazer” são duas colunas-mestras no texto. Percebe-se uma ênfase sobre o outro, um desinstalar-se de si mesmo e uma defesa forte de uma prática libertadora, de ação concreta. Sinalizam que uma postura misericordiosa implica um sair de si mesmo, um arregaçar as mangas e colocar mãos à obra. Não basta ter boas intenções.

Na segunda parte (Lc 10,29-37) temos o episódio-parábola propriamente dito (Lc 10,30-35) e a sua aplicação (Lc 10,36-37). Nos versículos 25-27 encontramos a primeira questão levantada pelo escriba e alguns textos bíblicos do Primeiro Testamento que apareceram para iluminar a questão, em um diálogo profundamente educativo (Dt 6,5 e Lv 19,18).

No versículo 28, Jesus responde citando, implicitamente, um texto de Lv 18,5: “Faça isso e viverás”. Importante observar que Jesus não diz “terá vida eterna”, mas diz “viverás”. Em outros termos, o Jesus de Lucas quer provocar conversão nos discípulos e discípulas que estavam olhando para o céu esquecendo-se de abraçar os desafios do aqui e do agora, na terra. Olhe para o “aqui e agora!” Eis o caminho que leva à vida em plenitude.

2 – Introdução (Lc 10,25-28)

Nos evangelhos encontramos basicamente dois tipos de perguntas dirigidas a Jesus. Uma é a pergunta feita pelos marginalizados e excluídos, que pedem para andar, para voltar a enxergar, para serem curados, para serem saciados. Com a vida ameaçada aqui e agora, eles clamam por vida aqui e agora. O outro tipo de pergunta dirigida a Jesus nos evangelhos é aquela feita por pessoas ricas, as quais já têm o aqui e agora assegurados e estão preocupadas com o pós-morte. Nesse grupo se insere a pergunta de Lc 10,25: “Mestre, que coisa devo fazer para herdar a vida eterna?

A pergunta sobre o caminho para alcançar a “vida eterna”, feita por um “escriba”, aparece também em Lc 18,18 na boca de um rico notável. O evangelista tem a finalidade de reforçar a importância do decálogo como caminho para a vida plena. À primeira vista, parece que estamos diante de duas tradições diferentes ou em face de episódios distintos do ministério de Jesus.

“Amar a Deus” é uma das constantes características de todo o corpo deuteronomístico[2] e está intimamente interligada com “amar o próximo”. Não existe um amor integral a Deus se falta amor ao próximo a partir do outro mais injustiçado. O caminho que leva a Deus passa necessariamente pelo próximo. Dedicar-se a Deus e ao próximo são duas faces da mesma medalha e é significativo que Dt 6,5 e Lv 19,18 estejam em Lc 10,27 como uma “leitura” da lei que revela a íntima ligação entre amar a Deus e amar o próximo: “O que está escrito na lei? Como tu lês?” (Lc 10,26).

3 – Episódio-parábola do bom samaritano (Lc 10,29-35)

A própria forma estilística do episódio-parábola é profundamente relevante. Com repetição progressiva, somente na terceira vez chega-se a um desfecho favorável. Isso cria um suspense e prende a atenção do leitor. E é de fácil memorização, o que se revela tremendamente pedagógico em uma cultura com um alto índice de iletrados, onde predominava a oralidade.

Em Lc 10,29, com a pergunta do escriba “Quem é meu próximo?”, estabelece-se a conexão de Lc 10,25-28 com Lc 10,29-37. Na segunda parte (Lc 10,29-37), Jesus não responde imediatamente, mas acrescenta o episódio-parábola e indica a importância que deu ao escriba, que lhe perguntou. A lei apresenta uma resposta mais direta, enquanto o episódio-parábola interroga e interpela, o que é muito mais incômodo. Jesus não dava respostas prontas. Ao não responder diretamente e ao contar um episódio-parábola, Jesus agiu pedagogicamente, visando tornar o escriba um próximo. Jesus não o excluiu a priori, mas empreendeu uma caminhada pedagógica que visava promover a conversão do escriba.

4 – Conclusão do relato (Lc 10,36-37)

Jesus, depois de contar o episódio-parábola, retomou o diálogo com o escriba redimensionando completamente a pergunta feita no versículo 29: “Quem é o meu próximo?” Jesus perguntou: “Em sua opinião, qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” (Lc 10,36). Essa nova pergunta redimensiona completamente a forma de entender a relação com o próximo. A relação se dará não mais a partir de mim mesmo, mas sim a partir do outro, e principalmente do outro que sofre por ser injustiçado.

Para o sacerdote e o levita, o homem semimorto havia-se transformado em um obstáculo, enquanto para o samaritano esse mesmo homem caído à beira do caminho transformou-se em motivo para proximidade. O sacerdote e o levita não apenas ignoraram o homem semimorto, mas foram-lhe indiferentes, distanciaram-se e contornaram o “obstáculo”. De outro modo, o escriba, mesmo evitando pronunciar a palavra samaritano, reconhece o samaritano como referência a seguir (Lc 10,37). Jesus, com dois imperativos — e faça!—, convida o escriba a ser um discípulo do “bom samaritano”, o que pode causar desconforto, pois normalmente pensa-se que só se pode ser discípulo de Jesus.

Belo Horizonte, MG, Brasil, 19 de agosto de 2013.

Frei Gilvander Moreira: www.gilvander.org.br, www.freigilvander.blogspot.com.br, [email protected]

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[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; e-mail: [email protected] – www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira

Obs.: Esse texto é a “5ª parte” do artigo “Seguir Jesus, desafio que exige compromisso”, de Gilvander Luís Moreira, publicado no livro  “RECRIAR O CAMINHO com as Comunidades de Lucas, uma leitura do Evangelho de Lucas feita pelo CEBI-MG, São Leopoldo, CEBI, 2013, pp. 48-77.

[2]    Cf. Dt 11,13.22; 19,9; 30,16; Js 22,5; 23,11.

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