As manifestações de 2013. “O impasse da ordem das linguagens da temporalidade.”. Entrevista especial com Eugênio Bucci

Foto: contextolivre.blogspot.com
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“O Estado ficou lento demais, há um confronto de temporalidade que é claríssimo, e o ritmo de fluxo das informações, das ideias, das interações na vida social na era digital encontra uma muralha quando se aproxima do Estado”, afirma o jornalista

IHU On-Line – Compreender as manifestações que iniciaram em junho no Brasil, e que permanecem com menos vigor dois meses depois, requer “um fio de interpretação”, diz o jornalista Eugênio Bucci à IHU On-Line, em entrevista concedida por telefone. Para ele, a compreensão deste fenômeno está na “ordem das linguagens”, ou seja, “não há um denominador comum, uma categoria única em todos esses protestos. Eles se parecem muito na forma, mas são muito diversos nos conteúdos”. Por um lado, acentua, há a presença de “pitboys”, sem nenhuma formação cultura e, por outro, “reivindicações mais socializantes, mais de esquerda, de tal maneira que o corte político ou ideológico não explica bem o que acontece”.

Na interpretação do jornalista, a linguagem das manifestações aponta “para uma incapacidade do aparelho do Estado e da administração pública de responder no tempo devido e com a eficiência necessária às demandas sociais”. E explica: “Como o Estado, em diversos países, parece não dispor de mecanismos de fluxos capazes de receber, processar e responder reclamos sociais, ele se enrijece, envelhece rapidamente, e a dinâmica da vida social entra em confronto com ele. Trata-se de um confronto de formas, não de conteúdo”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Bucci comenta a ação dos Black Blocs, e ressalta que, independente da opinião acerca dos atos anarquistas, é fundamental “entender por que isso acontece, como acontece, e o que tais ações querem nos dizer. (…) Quando digo que existe um sentido social com essa ‘quebradeira’, as pessoas consideram que estou apoiando a ‘quebradeira’. Não estou apoiando, mas estou preocupado em entender o que isso quer dizer”.

Eugênio Bucci é professor doutor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – USP, e diretor do curso de Pós-Graduação em Jornalismo com Ênfase em Direção Editorial da Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM. Escreve quinzenalmente no jornal O Estado de S. Paulo, e também é colunista quinzenal da Revista Época. Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor diz que as manifestações de junho não acabaram. O que isso significa do ponto de vista político e social? Que cenário vislumbra?

Eugênio Bucci – Fiz até um trocadilho com o livro do Zuenir Ventura. Ele escreveu o livro 1968 – O ano que não terminou, e eu disse que agora ele teria de escrever um livro intitulado Junho de 2013 – O mês que não acaba de jeito nenhum. As manifestações acabaram sendo chamadas de jornadas de junho, manifestações de junho, mas a ironia da história é que elas avançaram pelo mês de julho e já estão avançando no mês de agosto. Em alguns sentidos há um sinal de arrefecimento, porque o número de manifestantes é menor, algumas manifestações se desdobraram em acampamentos, os quais depois também esvaziaram. Outras ações geraram manifestações mais violentas, as quais também espantaram os manifestantes pacíficos. Mas o fato é que parece que também no Brasil, a exemplo de outros países, a onda de protestos é mais persistente do que se esperava, então esse barulho ainda vai ficar conosco por algum tempo.

IHU On-Line – Ao avaliar as manifestações, o senhor menciona que elas apontam para a ordem das linguagens. Pode nos explicar essa ideia?

Eugênio Bucci – Sim, vou explicar algo que ainda não publiquei com todas as letras como vou dizer agora. Mas, cada vez mais me parece ser esse o fio de interpretação que nós temos de explorar. As manifestações, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, trazem vertentes ideológicas, às vezes antagônicas: em alguns lugares elas surgiram contra ditaduras, em outros, surgiram contra regimes democraticamente eleitos, em alguns lugares se opuseram a governos de esquerda, em outros, a governos de direita. Então não há um denominador comum, uma categoria única em todos esses protestos. Eles se parecem muito na forma, mas são muito diversos nos conteúdos.

No Brasil, as reclamações também são diversas: os médicos se manifestaram, membros do Ministério Público se manifestaram, ou seja, as manifestações têm a presença do que chamei de “pitboy”, sem nenhuma formação cultural, e têm também, de outro lado, algumas reivindicações mais socializantes, mais de esquerda, de tal maneira que o corte político ou ideológico não explica bem o que acontece. É aí que eu lanço a hipótese: há um caráter de manifestação cultural em que a linguagem, nessas manifestações, aponta para uma incapacidade do aparelho do Estado e da administração pública de responder no tempo devido e com a eficiência necessária às demandas sociais. Como o Estado, em diversos países, parece não dispor de mecanismos de fluxos capazes de receber, processar e responder reclamos sociais, ele se enrijece, envelhece rapidamente, e a dinâmica da vida social entra em confronto com ele. Trata-se de um confronto de formas, não de conteúdo. Ou seja, o Estado ficou lento demais, há um confronto de temporalidade que é claríssimo, e o ritmo de fluxo das informações, das ideias, das interações na vida social na era digital encontra uma muralha quando se aproximam do Estado. Então, isso impõe ao Estado, aos ritos, aos processos, aos mecanismos de representação, e de deliberação próprios do Estado, uma modernização urgente e muito veloz. É nesse sentido que digo que o impasse colocado é o impasse da ordem das linguagens da temporalidade.

IHU On-Line – Em que consiste essa modernização?

Eugênio Bucci – Vou mencionar alguns exemplos: tornar mais ágeis os processos decisórios no Estado, tornar mais abertos os canais pelos quais os cidadãos podem participar e opinar, seja através de consultas públicas, formas de participação no orçamento, sistemas de plebiscitos, de referendos. Tudo isso precisa ser mais rápido. Hoje a pessoa escolhe o filme que vai passar na televisão dela, paga imposto de renda pela internet e não tem como participar de uma votação que vai acontecer no Congresso Nacional; então isso precisa ser revisto.

IHU On-Line – Como vê a ação dos Black Bloc nas manifestações? Qual é o limite entre manifestações e atos anarquistas?

Eugênio Bucci – Nós temos de tratar isso em dois planos – e algumas pessoas têm muita dificuldade de entender o que eu vou dizer. O primeiro e menos importante é a nossa opinião e a nossa concordância ou discordância com as práticas do Black Bloc. Se alguém me perguntar: “Eugênio, você é a favor de levar umas pedras na manifestação e quebrar vidros de agências bancarias?” Eu vou responder que sou contra, que não concordo com tais atitudes, porque elas só esvaziam as manifestações, porque são agressões gratuitas.

O segundo e mais importante plano é entender por que isso acontece, como acontece, e o que tais ações querem nos dizer. Esse segundo debate normalmente é confundido com o primeiro. Quando digo que existe um sentido social com essa “quebradeira”, as pessoas consideram que estou apoiando a “quebradeira”. Não estou apoiando, mas estou preocupado em entender o que isso quer dizer. Vejo nas manifestações, por exemplo, gente que não quer quebrar as agências bancárias, mas não reage contra aqueles que estão quebrando as agências. E as agências não são o melhor exemplo. O melhor exemplo são as repartições públicas, as sedes do poder executivo, que foram alvejadas.

Então, há uma atitude de muitos membros das manifestações que não se dirige para reprimir o quebra-quebra. Em alguns casos as pessoas se afastam, mas não querem reprimir. Como é possível que essas manifestações, então, abriguem pessoas que querem promover o quebra-quebra com alvos precisos, que são os símbolos do poder político econômico? O que está acontecendo? Essa é a pergunta que deve ser feita. Ou seja, o que quer dizer, no plano da linguagem, esse tipo de explosão de violência? Contra o que essa violência surge? O que isso significa? Mas essas perguntas não têm nada a ver em aceitar ou referendar aqueles que promovem a “quebradeira”. Mas temos de aceitar que existe um ódio social, uma indignação muito grande. Essa é a primeira consideração a ser feita no sentido de entender o que está acontecendo.

Além disso, podemos subdividir os que promovem o quebra-quebra em pelo menos três grupos importantes. Um seria o dos anarquistas, e aí há uma discussão se eles são de direita ou de esquerda. Para alguns, eles são de direita porque acabam fazendo a contrapropaganda das manifestações. O segundo grupo engloba pessoas do crime, e aí me refiro a pessoas ligadas ao tráfico, às milícias, ladrões comuns, criminosos, que são vistos quebrando lojas longe das manifestações. E um terceiro grupo mais complicado, mas que já começa a aparecer, está ligado à cúpula e à inteligência da polícia, levantando a suspeita de que há pessoas pagas para promover a baderna, ou seja, pessoas ligadas ao próprio aparelho de repressão do Estado. Se quisermos entender o que é essa face mais truculenta das manifestações, é preciso tentar subdividi-la. A categoria vândalos, nesse sentido, é insuficiente para entender o que acontece.

IHU On-Line – É possível falar no surgimento de uma mídia alternativa por conta das manifestações de junho e de outras que vêm ocorrendo há mais tempo no país, a exemplo da Mídia Ninja? O que a distingue da mídia tradicional?

Eugênio Bucci– Está surgindo uma diversidade de formas novas de imprensa. Ligadas a manifestações ou não, há explosão de novas formas de jornalismo por causa das novas tecnologias. Podemos até dizer que essas manifestações resultam também, mas não apenas isso, novas formas de interação da comunicação social. Então, essa ligação existe e, sem dúvida, vem muita coisa nova por aí. Mídia Ninja é um exemplo a mais.

Particularmente, gosto da Mídia Ninja, sou simpático a essa expressão que apareceu. Entretanto, acho que eles precisam estar em um site fora do Facebook. Estão surgindo novos formatos de informação, de circulação de ideias pelas redes sociais, pelas redes interconectadas, pela internet, vinculadas direta ou indiretamente à distância ou mais próximo com movimentos culturais, sociais etc.

IHU On-Line – A Mídia Ninja se apresenta como produtora de jornalismo independente e pediu financiamento público para expandir seu trabalho. É possível fazer jornalismo independente com financiamento público ou com financiamento coletivo?

Eugênio Bucci – A polêmica que surgiu no programa Roda Viva não diz respeito ao financiamento da Mídia Ninja, mas ao financiamento de outro movimento, que é o Fora do Eixo, e que tem uma ligação com a Mídia Ninja. E aí a questão é muito simples: quem recebe financiamento público, qualquer que seja a entidade, o movimento, a organização, precisa prestar conta minuciosamente e de forma muito transparente. Se a entidade recebeu dois reais de um apoio público para uma passagem de ônibus, precisa informar o dia em que comprou a passagem com esse dinheiro. A Mídia Ninja não é financiada assim. Ela tem ligação com as pessoas que fazem parte do Fora do Eixo.

Agora, pode se ter um jornalismo independente financiado pelo dinheiro público? Em termos, isso é possível. Vamos lembrar que o jornalismo da BBC é financiado com uma taxa cobrada nos lares com televisão por força da lei. Portanto, embora esse dinheiro vá diretamente para o caixa da BBC, ele é assegurado pela autoridade pública. O jornalismo da BBC é independente, talvez seja o mais independente do mundo. Então, temos aí um argumento de que se pode fazer jornalismo independente e crítico financiado com dinheiro público. Por outro lado, nós temos dezenas de exemplos no mundo, dos quais o dinheiro público domestica o jornalismo e pressiona o jornalismo a ter uma inclinação favorável ao governo, e isso é muito ruim.

Não é impossível financiar jornalismo com dinheiro público. É o modo mais seguro de se conseguir um jornalismo independente? Não, não é. O jornalismo independente deveria ser financiado pelo apoio das pessoas ou por outros mecanismos que não seja o dinheiro de governo. Não temos nenhum exemplo de organismos financiados pelo governo que conseguiram uma informação satisfatória no quesito independência e crítica. Tem coisas boas, mas na hora de ser crítico, o jornalismo financiado pelo governo deixa a desejar.

IHU On-Line – Qual sua impressão do trabalho desenvolvido pela Mídia Ninja, a partir da entrevista que o senhor realizou com eles no programa Roda Viva? Como avalia as críticas que eles têm recebido?

Eugênio Bucci – Os dois entrevistados, Bruno Torturra e Pablo Capilé, se saíram bem, são muito preparados. Eu achei que as perguntas foram pertinentes porque tínhamos de saber como um grupo que capta financiamento público, ainda que não seja um dinheiro tão expressivo, presta contas e como faz a sua contabilidade. Falamos pouco sobre a maneira como eles estão inovando, como poderiam melhorar, e o que significa esse novo tipo de articulação cultural.

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