Demora pela demarcação deixa rastros sociais e econômicos em MS

Índios enfrentam dificuldade para ter água potável em acampamento em Dourados. (Foto: Divulgação/MPF)
Índios enfrentam dificuldade para ter água potável em acampamento em Dourados. (Foto: Divulgação/MPF)

Em Japorã, índios esperam conclusão de processo há quase 3 décadas. Representantes de setores econômicos falam de prejuízos com impasse.

Por Fabiano Arruda, do G1 MS

Em Japorã, a 477 quilômetros de Campo Grande, cerca de 500 indígenas que vivem na terra Ivy Katu esperam o processo de demarcação da terra há 29 anos. Já em Dourados, a 277 quilômetros da capital sul-mato-grossense, pelo menos 15 famílias moram às margens da rodovia, em acampamento feito de barracos de lona. Lá, a espera dos guarani-kaiowá dura 15 anos. A situação é precária e falta acesso à água potável. A saída é utilizar um riacho que passa pelo local, conhecido como Curral do Arame.

“Nosso principal problema é a água. Quando chove vira um barro. A gente tem as crianças e não tem outra forma de pegar água limpa. A gente tem que beber água suja, tomar banho e fazer comida. A situação é terrível”, relata o vice-capitão da comunidade, Rogério de Souza.

O cenário dos indígenas nas duas cidades pode servir como exemplos dos impactos sociais que a lentidão do processo demarcatório no estado provoca. A demora pela conclusão de todo processo, que tem quatro fases, também causa reflexos na economia. “Tenho conhecimento de pelo menos dois grandes investimentos que deixaram de aportar em Mato Grosso do Sul por conta desta indefinição”, disse ao G1 o procurador da república Marco Antônio Delfino.

Em Japorã, comunidade espera demarcação há 29 anos. (Foto: Divulgação/MPF)
Em Japorã, comunidade espera demarcação há 29 anos. (Foto: Divulgação/MPF)

“E aí se você junta a indefinição, que é uma questão econômica, e a violência, que é uma questão de imagem, as empresas falam simplesmente: eu não venho para cá”, prossegue. “Há, infelizmente, morosidade do Judiciário. E esse tipo de indefinição só acirra o conflito. A indefinição, neste caso, mata as pessoas”.

De acordo com dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), Mato Grosso do Sul possui 50 terras indígenas. Deste número, 26 estão totalmente regularizadas. Os indígenas nas outras áreas ainda aguardam. Onze delas estão na fase de estudo antropológico, duas foram delimitadas, seis já receberam portaria declaratória do Ministério da Justiça e cinco foram homologadas, casos em que faltam apenas o registro final.

Reclamação

Para o assessor jurídico da Federação de Agricultura de Mato Grosso do Sul (Famasul), Carlo Daniel Coldibelli, algumas áreas reivindicadas pelos indígenas são “irreais”  [SIC]. Segundo ele, a fuga de investimentos em MS é recorrente por conta da insegurança jurídica no campo  [SIC]. “É uma realidade que atinge toda a região sul do estado. Há a redução de comercialização de terras e frustração de expectativa de novos investimentos, pois existe uma retração de compradores”, opina  [SIC].

Nos casos de conflitos, conforme ele, o produtor rural é a primeira vítima [SIC]. “A violência começa com a invasão de terra  [SIC]. Do dia para noite são invadidas por indígenas, que queimam sede, roubam gado, queimam pasto  [SIC]. É muito crítico e prejudicial essa permissividade que o governo vem tratando a invasão como mecanismo de reivindicação social  [SIC]”, diz.

O presidente da Federação das Indústrias de Mato Grosso do Sul, Sérgio Longen, considera que a fuga de investimentos em decorrência do conflito agrário pode piorar. “O atual contexto que se apresenta no estado cria obstáculos ao ambiente de negócios, pois a maioria dos municípios envolvidos nesses conflitos já é polo importante ou concentra as principais intenções de investimentos de novos setores, como, por exemplo, o sucroenergético”  [SIC], afirma.

Longen ainda diz que, diante do cenário, a geração de emprego em MS fica cada vez mais comprometida  [SIC]. “Todo ambiente de investimentos necessita de elementos indispensáveis à sua realização, como previsibilidade e segurança institucional”  [SIC].

Irritação

Do outro lado da ponta do conflito histórico, a espera causa irritação. “Chega de papel. Funai, Cimi [Conselho Indigenista Missionário], Ministério Público. Vocês vão ficar com os brancos, parentes de vocês, mas o índio vai morrer. Eu não confio no branco. Somos donos da terra, nascemos, floramos aqui e será que não temos direito?”. Esse foi o discurso de uma liderança indígena na região sul do estado.

"Eu não confio no branco", diz cacique durante reunião.  (Foto: Fabiano Arruda/G1 MS)
“Eu não confio no branco”, diz cacique durante reunião. (Foto: Fabiano Arruda/G1 MS)

As afirmações foram feitas durante reunião realizada no início de junho. O G1 acompanhou horas do encontro, que foi realizado em uma fazenda em Caarapó, ocupada por indígenas desde o mês de abril, dias depois de um indígena de 15 anos morrer na propriedade, atingido por um disparo feito pelo dono da fazenda. O adolescente pescava em um açude.

Na reunião estavam presentes representantes da Funai, Cimi e Ministério Público Federal. Homens, mulheres, idosos e crianças se espalhavam pelo acampamento. Em uma espécie de tenda, lideranças indígenas da região sul do estado se revezavam nos discursos, carregados de tensão.

"Vamos avançar, retomar e partir para cima", diz liderança. (Foto: Fabiano Arruda/G1 MS)
“Vamos avançar, retomar e partir para cima”, diz liderança. (Foto: Fabiano Arruda/G1 MS)

“A gente está nessa luta e vai continuar. A gente não vai parar. Vamos avançar, retomar e partir para cima. Não vamos brincar mais”, disse Ládio Verón, filho do cacique Marco Verón, assassinado em 2003. “Mataram meu pai na minha frente. Depois queriam me queimar vivo, começaram a me espancar. Mas graças a Deus estou vivo para lutar pelo meu povo”, diz.

Doutorando em Antropologia, o professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Tonico Benites, que é guarani-kaiowá, diz se lembrar de ações violentas da polícia na década de 80 contra as comunidades indígenas, quando ainda era criança. A experiência de vida, hoje, serve como instrumentos de pesquisa.

“A promessa sempre vem que vão resolver [governos]. E indígenas mostram que têm paciência ao longo dos anos. Mas tem horas que não quer esperar mais. Acaba a paciência”, diz. “Tem indígena que depois de 15 anos retoma uma área. Quinze anos debaixo de uma lona, passando fome, miséria. O movimento pela terra [retomada] não é de hoje, é antigo”.

Lentidão histórica

A demora pelo reconhecimento de terras indígenas é característica no estado. Segundo o doutor em Antropologia e também professor da UFGD, Levi Marques, foram quase 50 anos sem demarcação de áreas indígenas em MS. “Entre 1915 e 1928 foi feita a demarcação de terras e até 1977 não houve reconhecimento de outras terras”, relata.

Índios se reúnem em fazenda para discutir rumos do movimento. (Foto: Fabiano Arruda/G1 MS)
Índios se reúnem em fazenda para discutir rumos do movimento. (Foto: Fabiano Arruda/G1 MS)

Marques explica ao G1 que, naquele ano, a retirada de duas comunidades, pela própria Funai, de uma região do Sul do estado para serem removidas à reserva kadiwéu, em Bodoquena, mudou a história. Conforme o professor, os indígenas removidos de suas terras não se adaptaram à área dos kadiwéu, retornaram à pé para o município de Dourados, mas, em seguida foram despejadas no Paraguai. O fato gerou um conflito internacional, conta.

“O consulado do Paraguai acionou o estado brasileiro e a Funai negociou com proprietários da fazenda a doação de duas pequenas áreas para acomodar os índios. Em 1977 é a primeira vez que tem reconhecimento de novas terras”, diz, acrescentando que a partir de então e, posteriormente, com a constituição de 1988, surgem os movimentos indígenas em Mato Grosso do Sul, que passam a reivindicar cada vez mais seus direitos territoriais.

MPF-MS investiga 30 pessoas por arrendamento de terras da União (Foto: Fabiano Arruda/G1 MS)
MPF-MS investiga 30 pessoas por arrendamento de terras da União (Foto: Fabiano Arruda/G1 MS)

“O brasileiro tem memória absolutamente curta. A gente não pode esquecer as violações que as comunidades tiveram. O governo brasileiro tem que seguir o exemplo de outros países e reconhecer o erro histórico”, diz o procurador da república, Marco Antônio Delfino.

Segundo ele, desde 2009, o Ministério Público Federal conduz processo de negociação com representantes indígenas, produtores rurais, governo do estado e Ministério da Justiça. Nas discussões foram apresentadas quatro soluções para o problema, mas não se chegou a um acordo.

“Representantes de produtores rurais, num primeiro momento, entenderam que a via judicial era o melhor caminho e abandonaram a mesa de negociações. Num segundo momento, já no início deste ano, viemos para uma série de negociações que foram retomadas no fim do ano passado, que foram abandonadas porque se entendeu que a via política seria o melhor caminho”, conta.

Para ele, todo o processo construído pela mesa de negociação, que resultou em um parecer do Ministério da Justiça em 2010, não pode ser desprezado.

“O Brasil, infelizmente, por conta de ter uma memória muito curta, não toma conhecimento de decisões ou deliberações que já foram tomadas pelo mesmo caso. Nós vivemos de soluções mágicas, como se um problema de 100 anos pudesse ser resolvido em uma reunião de seis horas. Não vai ser resolvido nunca”, complementa.

Duas frentes

A morte de um indígena após o cumprimento de mandado de reintegração de posse na fazenda Buriti, em Sidrolândia, no final de maio, foi responsável pela criação de duas frentes para solução do impasse agrário em Mato Grosso do Sul. Uma liderada pela secretaria da Presidência da República e outra pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Embora tenham trabalhos paralelos, os grupos levam em conta a possibilidade de indenização de terras aos fazendeiros e desapropriação de áreas, hipóteses discutidas há anos e vistas como opções viáveis para resolver os impasses. Grupos de estudos foram criados para levantamento dos valores das áreas e viabilização das operações. O prazo para apontamento das soluções termina no dia 5 de agosto.

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