“O conflito entre o social e o ambiental é falso”

Comunidade do Horto, no Jardim Botânico, onde moram mais de500 famílias sob ameaça de remoção. Foto: Edézio Fernandes
Comunidade do Horto, no Jardim Botânico, onde moram mais de
500 famílias sob ameaça de remoção. Foto: Edézio Fernandes

Rogério Daflon – Canal Ibase

O professor, advogado e  jurista Edésio Fernandes é uma das maiores referências no campo do direito urbanístico no Brasil e no exterior. Com essa autoridade, Edésio, em entrevista ao Canal Ibase, classifica como absurda a intenção de se remover a comunidade do Horto. “Acho lamentável que essa decisão vergonhosa tenha partido não do prefeito Eduardo Paes ou do governador Sérgio Cabral, de quem se pode esperar esse tipo de atitude, mas do governo federal, que se diz comprometido com as propostas de inclusão socioespacial”, diz ele. O grande ponto, segundo Fernandes, seria buscar um equilíbrio entre as questões ambientais e sociais. Mas, infelizmente, muitos atores desse imbróglio estão optando pela desarmonia.

Canal Ibase: Como se consolidou a comunidade do Horto?

Edésio Fernandes: A questão do Horto é muito antiga, existem pesquisas históricas, especialmente da Laura Olivieri Carneiro (historiadora com mestrado em História Social) mostrando que os primórdios  da comunidade remontam a cerca de 200 anos, sendo que, desde o século XVI, já havia presença humana na área. Por meio de diversos processos de ocupação, direta ou indiretamente promovidos pelo governo federal, as famílias consolidaram sua ocupação. Historicamente, inclusive, havia uma demarcação mais clara entre Horto e Jardim Botânico. Em 1960, o então presidente da República, Juscelino Kubitschek, inaugurou a Escola Pública Júlia Kubitschek, visando exatamente a atender a comunidade do Horto.  Era um tempo em que o setor imobiliário não dava tanto valor àquele lugar. Tanto que,  ironicamente, nos anos 1970, cogitou-se fazer ali um conjunto habitacional do BNH (Banco Nacional de Habitação), para  receber pessoas removidas de outras favelas cariocas.  Ao longo do tempo, instituições como Ministério da Agricultura, Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal e a própria direção do Jardim Botânico deram autorizações para que se fizessem moradias  na área do Horto.

Canal Ibase:  Os moradores do Horto estão sendo chamados de invasores. Como o senhor vê essa classificação?

Edésio Fernandes: No Horto, há pessoas de 70, 80, 93 anos que nasceram e foram criadas lá. Essas pessoas têm filhos, netos e bisnetos que lá moram. Há mesmo quem tenha ligações com antigos escravos que viveram na area. Como chamar de invasor uma pessoa que nasceu lá há tantas decadas? O fato é que até os anos 1980 a “questão ambiental” nunca foi obstáculo à presença dessa comunidade, mesmo porque não havia essa questão como nós a articulamos hoje. Essa comunidade, portanto, nunca foi nociva ao Jardim Botânico. E o tempo cria direitos, esse é o princípio tradicional do direito. Você não pode penalizar toda uma comunidade se, no passado, as ações do poder publico foram no mínimo ambíguas, quando não muito assertivas, quando não houve fiscalização, mas sim tolerância de órgãos do governo federal e até mesmo incentivo à ocupação. Não há como ignorar tudo isso, taxando as pessoas de invasoras de maneira tão simplista.

Canall Ibase:  Quando a área passa a ser valorizada?

Edésio Fernandes: Com a chegada da Rede Globo nos anos 1980, as áreas vizinhas ao Jardim Botânico começam a ser ocupadas por mansões, sendo que, nos anos 1990, o Condomínio Canto e Mello, que é de alta renda, se instalou na área do parque e acima da cota 100 de edificabilidade, cometendo assim uma dupla ilegalidade. Mas essas não são situações veiculadas na imprensa, que também não questiona o fato de haver moradias de baixa renda em áreas de proteção ambiental nas periferias. Também nos anos 1980, por pressão da então recém-criada Associação de Moradores do Jardim Botânico, o governo federal entrou com uma ação judicial de reintegração de posse, pedindo a retirada de 120 das 620 famílias que lá vivem. Essa ação foi vitoriosa e transitou em julgado, mas as famílias permaneceram lá porque a ordem jurídica brasileira mudou profundamente com a Constituição Federal de 1988, que então passou a reconhecer o princípio da função social da propriedade, inclusive da propriedade pública. Também na Constituição de 1988 é aprovado no país o princípio do direito coletivo à regularização fundiária de assentamentos informais consolidados. Já em 2000 foi aprovada a emenda constitucional assegurando o direito social à moradia. E, em 2001, como complementação do Estatuto da Cidade que tinha sido aprovado, o governo federal baixou uma Medida Provisória (MP), a de número 2.220, disciplinando o instituto da Concessão de Uso Especial para fins de Moradia em bens públicos. Trata-se de uma medida que se aplica ao caso do Horto para garantir a permanência da comunidade, já que se trata de ocupação de terras da União. Essa MP não ignorou a questão ambiental, mas declarou que, quando há valores sociais de mo radia e valores ambientais a serem considerados, tem-se que buscar como princípio um cenário possível de equilíbrio entre o social e o ambiental.

Canal Ibase:    E como se deve buscar esse equilíbrio entre o meio ambiente e o social?

Edésio Fernandes:  São muitas as formas de se fazer a regularização fundiária compensando e ou mitigando os danos ambientais. Na impossibilidade de se encontrar esse equilíbrio, deve-se fazer um acordo com os moradores, pois eles também têm direitos previstos por leis que não podem ser ignorados. Não se pode mais hoje em dia, por exemplo, pensar em remover comunidades sem oferecer e discutir alternativas. Hoje, quem cuida do caso do Horto é a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), um órgão do Ministério do Planejamento. A SPU fez por dois anos um amplo levantamento das questões dos moradores do Horto e, em projeto de regularização fundiária discutido com a comunidade e elaborado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo  (FAU) da UFRJ levando em conta também a questão ambiental, propôs o reconhecimento do direito de permanência da comunidade.  Essa nova atitude do governo federal, de acordo com a nova ordem jurídica do pais, provocou uma resistência ainda maior da Associação de Moradores do Jardim Botânico, amparada pela poderosa Rede Globo.

Canal Ibase:  O que ocorreu depois disso?

Edésio Fernandes:  Surgiu então um fato inédito na história brasileira: a entrada em cena do Tribunal de Contas da União (TCU), órgão de controle interno da administração pública. Embora o TCU não seja aberto a esse tipo de interpelação direta de grupos, o órgão foi acionado pela Associação do Jardim Botânico e suspendeu o referido projeto de regularização fundiária de interesse social que vinha sendo feito pelo SPU em convênio com a  FAU. A julgar pela cobertura falaciosa da imprensa, o TCU seria um órgão do poder judiciário com poder de obrigar condutas do governo de maneira imediata. O TCU deu um prazo para que fosse feita uma nova demarcação do parque, para que fossem para executadas as remoções das famílias condenadas e ações de reintegração de posse, ainda que a ordem jurídica tenha mudado e que não fosse mais do interesse da União promover a retirada das famílias. O TCU determinou ainda que novas ações fossem propostas para remoção das demais famílias, a enorme maioria, que até hoje não foram objeto de qualquer ação judicial.

Canal Ibase:   Qual foi o resultado dessa determinação do TCU?

Edésio Fernandes:  Uma nova demarcação foi feita por uma comissão integrada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), pelo SPU e pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional (IPHAN, neste caso porque o parque é tombado), mudando os limites tradicionais entre Horto e Jardim Botânico com base em interpretação equivocada de documentos históricos e assim condenando mais de 520 famílias à remoçãoo. A SPU, que até outro dia era favorável à permanência da comunidade e à regularizacao fundiária, bem como o IPHAN, que de acordo com noticias de jornal até então era favorável à permanência da maioria da comunidade, mudaram de posição em vista da pressão do MMA, da Fundacao Jardim Botanico, do TCU  e da Rede Globo. É interessante notar que essa comissão do governo federal não incluiu o órgão federal que é encarregado do cumprimento do Estatuto da Cidade, da MP no. 2.220 e do reconhecimento do direito social de moradia, qual seja, o Ministério das Cidades.  É um absurdo, um verdadeiro fracasso do governo federal na busca de um equílibrio entre os vários interesses e direitos envolvidos. Querer que famílias que têm direitos subjetivos sobre essa área, já que a ocupam por tanto tempo, aceitem se cadastrar para um dia poderem pagar por um imóvel sabe-se lá onde do programa Minha Casa, Minha Vida é uma afronta à ordem jurídica e à dignidade dessas familias. Até hoje, por conta da resistência da comunidade do Horto, três famílias já foram removidas – e mesmo assim através de processos que desrespeitaram todos os critérios nacionais e tratados internacionais sobre a legalidade do despejo. As três familias foram removidas à noite, sem a presença de ambulância e assistentes sociais. Seus móveis foram colocados na rua até que chegou um caminhão – com uma ordem de serviço assinada por um membro da Associação de Moradores do Jardim Botânico que tem a concessão de uma loja dentro do parque do Jardim Botânico. A Associacao dos Moradores do Horto entrou com Mandado de Segurança junto ao Superior Tribunal Federal contra a decisão, e está aguardando um pronunciamento. A Relatora Especial da ONU para o Direito de Moradia escreveu para o Presidente do STJ defendendo o direito da comunidade à permanência no local. O Conselho Nacional das Cidades passou Resolução exigindo do Governo Federal que incluisse o Ministerio das Cidades nas discussões, para que, além das questões ambientais e culturais, também a questao da moradia fosse considerada.

Canal Ibase:   O que esses agentes não querem enxergar nesse caso?

Edésio Fernandes: Que o conflito entre o social e o ambiental é um falso conflito. Que há cenários possíveis de articulação entre eles. Que mesmo no caso de remoções, os direitos de moradia continuam válidos, e alternativas aceitáveis têm que ser discutidas com a comunidade. Que qualquer decisão do governo federal no sentido de remover a comunidade do Horto perde qualquer credibilidade quando o próprio governo federal aceita a permanência de um  condomínio de luxo dentro da mesma área. Trata-se muito mais de preconceito de classe do que de uma questão jurídica, ou de uma questão ambiental. Pessoalmente, acho lamentável que essa decisão vergonhosa tenha partido não do prefeito Eduardo Paes ou do governador Sergio cabral, de quem se pode esperar esse tipo de atitude, mas do governo federal que se diz comprometido com as propostas de inclusão socioespacial, da função social da  propriedade pública, do direito social de moradia e da regularização fundiária de assentamentos informais consolidados. Uma vergonha.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.