Os dois hemisférios do gigante

Por pouco, os dois hemisférios brasileiros não se encontraram
Por pouco, os dois hemisférios brasileiros não se encontraram

Por Stéphan Bry para Combate Racismo Ambiental

O Brasil é um gigante constituído de dois hemisférios. Enquanto um está entrando na primavera, o outro está mergulhado num outono de esquecimento. Enquanto um reivindica mais mobilidade urbana, o outro perde a sua mobilidade rural ou fluvial.

Enquanto o movimento primaveril urbano questiona, com toda razão, os investimentos bilionários para a Copa do Mundo, o outro hemisfério tem que aceitar os investimentos bilionários impostos para o “desenvolvimento” do país.

Enquanto estudantes de nossas cidades pedem o acesso aos transportes públicos, milhares de crianças do outro hemisfério andam horas em estradas cortadas por rios, às vezes intransponíveis, para ir numa escola que só tem de escola o nome. Outras milhares nem podem ir numa escola. Saúde, nem pensar.

Sou a favor da primavera para todos.

Entendo perfeitamente que estes dois hemisférios sejam tão distantes um do outro, que é difícil para quem vive num conhecer a realidade do outro. Mas estes dois hemisférios fazem parte do mesmo gigante. O gigante não pode estar plenamente acordado esquecendo um de seus dois hemisférios.

O que aconteceu com o levante anterior àquele que presenciamos hoje? Onde estão os integrantes da ocupação de Belo Monte? Continuam vagueando em Brasilia, tentando desesperadamente ser ouvidos, ou puderam, pelo menos, voltar às suas famílias? E no Mato Grosso do Sul? Continuam sendo assassinados e confinados em beira de estradas? E a reforma agrária? O desmatamento, o trabalho escravo, o envenenamento dos solos e das águas…? E a Aldeia Maracanã, que tem a particularidade de pertencer aos dois hemisférios, porque não a vi nas manifestações do Rio?

Isso não é coisa de outro hemisfério!

Um hemisfério não existe sem o outro. De onde vêm os alimentos do hemisfério urbano? A água, o oxigênio e, finalmente, tudo que é consumido nas cidades? A destruição do hemisfério rural e indígena também prejudica o hemisfério urbano. O modelo produtivo em vigor no interior tem consequências na vida urbana.

Agora, nossa presidenta (um amigo meu jornalista me falou que esta palavra não existe) fez um belíssimo discurso para tentar obter a simpatia daqueles que foram inicialmente qualificados de “vândalos”.

Segundo ela, é o seu governo que criou as condições para que um tal movimento democrático pudesse existir. Viva a Dilma que ajudou a jogar o país nesta grave crise!

“A grandeza das manifestações de ontem comprovem a energia da nossa democracia”. É certamente em nome desta democracia, “companheira”, que nega insistentemente qualquer diálogo com as populações afetadas pelas grandes obras na Amazônia e com aqueles que esperam até hoje que a Constituição seja cumprida.

“Sabemos, governo e sociedade, que toda violência é destrutiva, lamentável, e só gera mais violência”. Mas, pelo visto, matar indígena não é violência, deve ser um procedimento normal de um país que almeja o “desenvolvimento”. E por que dissociar o governo da sociedade?

“Essas vozes das ruas precisam ser ouvidas.” As vozes do campo ou da floresta, não.

Eu sei, alguns vão me acusar de fazer o jogo dos “conservadores” atacando a nossa querida presidenta tão apegada à democracia que ela pensa fortalecer com o seu “neo-desenvolvimentismo pós-neoliberal”.

Mas não fui eu que fiz aliança com esses “conservadores”. Se tivessem pedido minha opinião, jamais teria concordado que um partido dos trabalhadores se aliasse a um Maluf ou uma Katia Abreu.

Entendo que o Movimento Passe Livre queira manter o controle de suas ações.

Então vamos pôr também na pauta a mobilidade rural e fluvial; vamos pôr na pauta o direito de todos os brasileiros ao território, seja ele urbano ou não;  vamos pôr na pauta o questionamento dos investimentos em detrimento da saúde, da educação, da segurança, do direito de manifestar nos dois hemisférios do Brasil.

Lá em Belo Monte ninguém tem mais o direito de se manifestar, tanto os operários como os afetados pela obra.

Lá no Tapajós ou no Teles Pires, ninguém tem direito de ser consultado sobre os investimentos bilionários que modificarão irremediavelmente a vida de milhares de Brasileiros.

Lá no Mato Grosso do Sul, ninguém tem o direito de pedir que as leis sejam cumpridas, nem que seja para poder se manter vivo.

A democracia da Dilma não deixa.

Eu gostaria que o gigante acordasse mesmo. Mas, para isso, esse gigante deve reconhecer a existência destes dois hemisférios que não são incompatíveis nem antagônicos, mas complementares. E essa complementaridade deve se expressar pela solidariedade.

Apoio com todos os meus votos de sucesso  a onda de insatisfação que invadiu as cidades. Mas apoio sobretudo a luta contra o vandalismo institucionalizado que tomou conta do país inteiro e que depreda os patrimônios étnico, cultural, arqueológico, linguístico, hídrico, florestal, mineral, biológico, ambiental do Brasil.

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